Enriquecimento sem causa: muito citado, pouco conhecido
"Enriquecimento sem causa" é uma expressão muito comum no dia-a-dia do operador do Direito. Nem sempre, todavia, a utilização frequente de um termo reflete o domínio efetivo de seu significado ou de seus vários significados.
quarta-feira, 15 de setembro de 2010
Atualizado em 14 de setembro de 2010 14:23
Enriquecimento sem causa: muito citado, pouco conhecido
Lucas Fajardo Nunes Hildebrand*
"Enriquecimento sem causa" é uma expressão muito comum no dia-a-dia do operador do Direito. Nem sempre, todavia, a utilização frequente de um termo reflete o domínio efetivo de seu significado ou de seus vários significados. É de praxe dizer que a indenização não pode ser exagerada, sob pena de configurar enriquecimento sem causa. Fala-se que a reintegração de posse do imóvel pela promitente vendedora deve ser contrabalanceada com a devolução das parcelas pagas pelo promitente comprador inadimplente, para que não haja enriquecimento sem causa da primeira em detrimento do segundo. Sustenta-se, de outro lado, que a promitente vendedora tem direito de abater dessa restituição um percentual relativo aos custos administrativos, desta vez para que o promitente comprador não se enriqueça injustificadamente.
Em todas essas situações, e em muitas outras que se poderiam citar, o que se faz em realidade é afirmar a existência de um princípio jurídico, o da vedação do enriquecimento sem causa, que, na forma como é invocado, acaba por se confundir com a própria exigência de equidade e ou com o vetusto e generalíssimo preceito latino suum cuique tribuere, ou seja, dar a cada um o que é seu.
Nota-se, pois, que o enriquecimento sem causa é muito conhecido, ou ao menos reconhecido, pelo seu aspecto de princípio jurídico. O mesmo não ocorre, contudo, com o enriquecimento sem causa entendido como fonte de obrigações, que é regulado pelos arts. 884 a 886 do Código Civil. Mas por que o operador do Direito deve conhecê-lo, se o tráfego jurídico parece fluir normalmente sem maiores "intromissões" desse instituto? Porque aplicar o enriquecimento sem causa apenas como princípio significa insistir em resolver inadequadamente uma série de conflitos, recorrentes na jurisprudência, que se enquadram tipicamente como casos de enriquecimento sem causa no sentido de fonte de obrigações. Isso implica não somente desobedecer à lei, como também, em última análise, limitar o próprio princípio da proibição do enriquecimento sem causa, na medida em que, se ignorados os pressupostos legais, ora se concede mais do que é devido, ocasionando o locupletamento injustificado inverso (daquele que se disse inicialmente prejudicado), ora se confere menos do que tem de ser efetivamente restituído.
Analise-se um exemplo que ilustra o quanto dito. São comuns as ações que reclamam indenização pelo uso não autorizado da imagem de uma pessoa para fins comerciais. A jurisprudência, premida pela necessidade de sancionar uma violação do direito de personalidade, passou a entender que a reparação, nessas situações, prescinde de prova do dano. Tanto é assim que recentemente o STJ editou a súmula nº 403, que dispõe: "Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais." Veja-se, pois, como essa súmula, e boa parte da jurisprudência que ela pretende consolidar, podem ser questionadas a partir do ângulo do enriquecimento sem causa como fonte de obrigações.
A primeira inquietude do intérprete se origina da constatação de que a utilização da imagem alheia, diferentemente do registrado na súmula, não gera necessariamente dano ao titular do direito de personalidade. Pelo contrário, pode ocorrer até um benefício. Um dos precedentes que inspiraram o enunciado em debate representa exatamente esse tipo de situação.1 Um corretor de seguros bem sucedido teve sua imagem publicada de forma não autorizada por uma empresa corretora de seguros, que acabou por se beneficiar da excelente reputação desse profissional. O STJ, por maioria, considerou devida a indenização de cem salários mínimos, mesmo levando em conta a afirmação do próprio autor de que sua imagem foi beneficiada pela publicação não autorizada. Sustentou a maioria que "o dano é a própria utilização indevida da imagem com fins lucrativos, sendo dispensável a demonstração do prejuízo material ou moral."
No debate entre a maioria e a minoria, esta última, representada pelo ministro César Asfor Rocha, sugeriu, com certo tom de ironia, que, se houve ofensa à imagem pelo elogio feito, a indenização deveria ser reduzida a um real. O ministro relator, Sálvio de Figueiredo Teixeira, rebateu a divergência afirmando que a indenização seria necessária para tutelar o direito de oposição ao uso não autorizado da imagem, ainda que não fosse um uso nocivo. Afirmou ele ainda que, diante do conflito de interesses, deveria ser desestimulado o uso não autorizado da imagem com fins comerciais.
A ironia da manifestação divergente do ministro Asfor Rocha expõe a principal falha dogmática do acórdão. Na Itália, tem-se notícia de que também sucedeu de os tribunais analisarem as questões de uso não autorizado da imagem alheia sob o ponto de vista ressarcitório. Lá, porém, essa tendência fez com que a tutela fosse muitas vezes indeferida por falta de prova do dano2, ao passo que, no Brasil, como demonstra o teor da súmula nº 403 do STJ, a jurisprudência optou por proteger o titular da imagem. Essa opção, contudo, possui, no mais das vezes, um caráter mais político que jurídico, pois, inegavelmente, sob o ponto de vista dogmático, não há motivo para a dispensa generalizada da prova do dano3, mormente porque muitas vezes, como dito, a publicação da imagem pode até mesmo gerar um benefício ao titular - o que, aliás, ocorreu no caso em tela, conforme confissão do autor da ação. Disso se conclui que a presunção generalizada do dano, nessas situações, transforma a indenização em pena privada, o que não se coaduna com a função precípua da responsabilidade civil.4
Destarte, como afirmou P. GALLO em relação à jurisprudência italiana, seria mais adequado, no caso de uso não autorizado da imagem alheia, aplicar o instituto do enriquecimento sem causa, o que levaria ao resultado político e principiológico desejado (proteção do titular da imagem e sanção do ato de usurpação) por meios dogmáticos seguros, permitindo-se, ainda, a delimitação mais precisa e rigorosa do objeto da "indenização" (rectius, restituição do enriquecimento sem causa) e de seus pressupostos.
O julgado em análise involuntariamente deixa entrever o equívoco na subsunção dos fatos no seguinte excerto, que consta até da ementa: "A utilização da imagem do cidadão, com fins econômicos, sem a sua devida autorização, constitui locupletamento indevido, ensejando indenização." Ora, se houve locupletamento indevido, e não dano, a solução deve ser a restituição desse locupletamento, e não a indenização. Realmente é o que se verifica no caso: não se produziu o dano; ao contrário, houve benefício confessado, porém o titular da imagem foi agraciado com
uma alta indenização (indenizar o benefício?) arbitrada de maneira análoga à utilizada para os casos de dano moral.
A informação que falta aos operadores do Direito, nesses casos, é de que o enriquecimento pode derivar não apenas da retenção de uma prestação feita sem causa, mas também da intromissão indevida na esfera jurídica alheia, especialmente no tocante a direitos absolutos como os direitos de personalidade, entre eles o direito à imagem, e os direitos reais. Esses direitos absolutos conferem ao titular não apenas um poder de oposição à interferência de terceiros, mas também um monopólio de utilização e fruição. Se um terceiro se utiliza desse direito, invadindo-lhe o conteúdo de destinação exclusiva ao titular, e com tal atitude se enriquece, deve ele restituir esse benefício sob as regras do enriquecimento sem causa.
Assimilada essa informação, é possível reconhecer que a imposição da obrigação de restituir o enriquecimento sem causa do usurpador da imagem, nesse caso julgado pelo STJ e em inúmeros outros similares, é mais adequada que a condenação pela via da responsabilidade civil. A justificativa do ministro relator para conceder indenização mesmo na ausência de dano é de que seria necessário proteger o direito de imagem, ou, em outras palavras, tutelar o conteúdo de destinação do direito de imagem. Com isso se quis dizer que há apenas duas alternativas: ou se indeniza ou o usurpador fica impune. Mas as coisas não se passam exatamente assim. A proteção do conteúdo de destinação dos direitos absolutos, como explicado, longe de ser tarefa da responsabilidade civil, que se destina a eliminar o dano, faz parte do campo de atuação do enriquecimento sem causa. Em palavras bem diretas, o STJ, e com ele a maciça jurisprudência nacional, pretende curar a doença com o remédio errado. Ocorre que o uso do remédio inadequado, como de hábito, acarreta efeitos indesejados.
A grande vantagem de se usar o remédio adequado, ou seja, de se recorrer às regras do enriquecimento sem causa (além da óbvia circunstância de se estar atendendo ao comando legal) é a maior segurança na estipulação do montante a ser restituído. Se for interpretada como hipótese de responsabilidade civil, a situação ora estudada receberá, como de fato recebeu, um tratamento consideravelmente arbitrário, pois o julgador se vê frente à necessidade de estipular uma indenização para um caso em que o dano na verdade não ocorreu, como o próprio autor confessou.
Aí está o efeito colateral. De outro lado, buscando-se as regras do enriquecimento sem causa, bastará verificar a ocorrência dos pressupostos ou requisitos (enriquecimento a partir de uma intromissão na esfera jurídica alheia sem que haja autorização da ordem jurídica para a retenção do benefício) e determinar o objeto da restituição que, in casu, corresponde ao valor de mercado do uso da imagem, ao que se somaria, caso se provasse que os atributos pessoais do titular da imagem foram decisivos para o sucesso da campanha, um percentual do montante correspondente ao aumento de faturamento da empresa que usurpou a esfera jurídica do titular da imagem. O remédio correto, assim, permite a cura precisa, sem exageros, sem conseqüências laterais imprevisíveis e indesejadas, porque arbitrárias.
Não é tarefa destas breves considerações destrinçar todas as características do enriquecimento sem causa. Tencionou-se apenas demonstrar a necessidade e a vantagem de se estudá-lo com mais rigor. A análise de um único julgado já foi capaz de expor, acredita-se, importantes falhas conceituais que abundam na matéria. Não se pode fugir da constatação de que os fatos da vida se desvelam nas mais variadas formas, dificultando a correta subsunção aos enunciados legais. Esse dinamismo infinito da realidade jurídica impõe a todos, e especialmente às personagens do mundo do Direito, o dever de apreender adequadamente cada instituto, ao invés de se insistir no uso artificial de uns, mais conhecidos, em detrimento de outros.
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1 REsp 267.529/RJ, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. em 3/10/00, DJ 18/12/00, p. 208. O fato de o acórdão ser anterior ao Código Civil de 2002 não infirma as conclusões nem a análise, pois, como visto, o enriquecimento sem causa já era fonte de obrigações antes do advento do novo Código.
2 PAOLO GALLO, L'Arrichimento senza causa, Pádova, CEDAM, 1990, pp. 410-413.
3 Muito diferente é afirmar, como é pacífico, que o uso vexatório da imagem ocasiona dano in re ipsa, ou seja, independente de prova. No caso estudado, o uso é comercial, porém não vexatório, com confissão do autor nesse sentido, não se podendo alegar a presunção de dano moral. Aliás, mesmo que se admitisse a presunção, sendo ela de caráter relativo, seria desfeita pela confissão do titular da imagem de que não experimentou prejuízo nenhum.
4 PAOLO GALLO, L'Arrichimento... cit., p. 413.
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*Advogado. Sócio do ecsritório Hildebrand Advocacia e Consultoria Jurídica