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Direito e economia

Arthur Barrionuevo e Mário G. Schapiro

Desde há algum tempo, o diálogo entre os cânones do direito e os postulados da economia tem despertado curiosidade e desconfiança nos mais diversos âmbitos profissionais, de formuladores de política pública a profissionais de mercado, passando pelos circuitos acadêmicos.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Atualizado às 10:42


Direito e economia

Arthur Barrionuevo*

Mário G. Schapiro**

Desde há algum tempo, o diálogo entre os cânones do direito e os postulados da economia tem despertado curiosidade e desconfiança nos mais diversos âmbitos profissionais, de formuladores de política pública a profissionais de mercado, passando pelos circuitos acadêmicos. Originada de pesquisas interdisciplinares de economistas e juristas nos Estados Unidos, na década de 1960, a área de Direito & Economia tem se afirmado como um instigante e ainda incompleto campo de análise e proposição. Um campo que tem sido capaz de contribuir tanto para o refinamento das análises econômicas, como para a precisão das decisões jurídicas. Em uma síntese bastante estipulativa, entenda-se por Direito & Economia uma área disciplinar que procura conjugar o instrumental econômico à formulação e à aplicação do direito.

Aos juristas, que ainda vêem a análise econômica com alguma desconfiança e receio, dado o justo temor de ver o seu campo disciplinar colonizado por causas e conseqüências impróprias, convém argumentar que o Direito & Economia não envolve, necessariamente, uma opção moral de sociedade. Isso significa que aproximar o Direito da Economia não implica abdicar da justiça, em prol da eficiência ou supor que o interesse individual deva sempre prevalecer sobre as questões sociais e coletivas. Como o individualismo econômico e a eficiência são bastante identificados como atributos da economia, os juristas muitas vezes reagem ao Direito & Economia receosos de que esta aproximação possa conspurcar a justiça, a moral, os direitos humanos e os demais valores constitutivos de um Estado de Direito. Esta reação, no entanto, pode perder o sentido, na medida em que se compreenda que este diálogo interdisciplinar pode dotar o Direito de instrumentos realistas de análise e de decisão e com isso favorecer o alcance e a previsibilidade da justiça, o que, afinal, joga a favor do Estado de Direito.

Nessa linha, o diálogo com a Economia pode trazer dois ganhos para o Direito: (a) a ampliação do conjunto de evidências empíricas, garantindo, entre outros, decisões judiciais ou administrativas mais acertadas e (b) raciocínios consequencialistas, tornando os juristas mais sensíveis aos impactos econômicos de suas decisões, inclusive quanto ao efeito sobre o bem estar econômico da maioria da população. Vejamos três exemplos, dois deles relativos à ampliação do conjunto de evidências e um terceiro relativo a raciocínios consequencialistas.

O primeiro exemplo decorre da propriedade intelectual, particularmente do direito das marcas. Como se sabe, as marcas e os demais sinais distintivos (como o nome empresarial e o titulo de estabelecimento) são protegidos, respeitando-se, para tanto, o princípio da especialidade: em cada segmento (especialidade) garante-se a apenas um titular a utilização de um destes sinais. Essa proteção, embora pareça clara, é sujeita a inúmeras disputas judiciais entre concorrentes, que se acusam reciprocamente de utilizar indevidamente o sinal distintivo alheio, causando assim colidência e confusão. Nomes iguais, marcas parecidas, nomes empresariais semelhantes a marcas já existentes, entre outros. Estas e outras contendas até mais complexas, como as que envolvem marcas notórias (cuja proteção pode derrogar marcas comuns) são normalmente decididas apenas por critérios jurídico-formais. Nestes casos, o uso da análise econômica poderia imprimir ganhos de qualidade para julgados que pretendessem decidir se, de fato, os sinais distintivos em disputa partilham o mesmo mercado relevante ou se causam, mesmo, confusão aos consumidores. Ou ainda: como decidir se uma marca é notória, sem análises reais de mercado?

O segundo exemplo, ainda voltado aos possíveis ganhos na formação empírica das evidências, pode ser verificado nas demandas concorrenciais. Sem análise econômica e se valendo apenas de raciocínios jurídico-formais, é pouco provável que uma autoridade antitruste, como o CADE, possa decidir se há, de fato, uso ilícito do poder econômico. Veja-se o caso Federal Trade Commission, Plaintiff, v. Staples, Inc. and Office Depot, Inc., Defendants. Civ. No. 97-701 (TFH), julgado pela autoridade antitruste norte-americana, em 1997. Tratava-se da fusão de duas redes varejistas de material de escritório, e a questão era saber se esta operação provocaria, ou não, aumento de preços. Este caso é considerado o primeiro julgamento em que o estudo econométrico foi essencial para o seu desfecho. Em um primeiro estudo, apresentado pelas empresas, apontava-se que não haveria aumento de preços, o que permitiria a fusão das empresas. Todavia a autoridade antitruste (FTC), por meio de um estudo econométrico, conseguiu mostrar a prática de preços mais altos, naquelas municipalidades onde só uma das redes estava presente. Este elemento foi decisivo na formação da convicção dos comissionários, que decidiram o caso contra a fusão.

Finalmente, o terceiro exemplo. Além de ganhos na formação da base empírica e das evidências para um deslinde mais realista de casos, a análise econômica permite um raciocínio consequencialista. Veja-se o caso do direito à saúde. Os tribunais têm seguidamente condenado a Fazenda Pública a prover medicamentos de custo elevado, para demandantes individuais. Pesquisas realizadas com magistrados sugerem pouca sensibilidade quanto ao impacto econômico de suas decisões no orçamento público. Considerando que o acesso a justiça é limitado para população de baixa renda, a conseqüência de tais decisões pode ser a instituição de um desigual direito à saúde. Aqueles que têm acesso à justiça são beneficiados pelo direito, já aqueles que não têm podem ser duplamente privados: privados dos medicamentos (por falta de acesso à justiça) e, principalmente, privados de um sistema de saúde satisfatório, cujo orçamento tem sido comprometido com a concessão do raro, em detrimento do público. Não haveria ganhos em se reinterpretar o significado do direito constitucional à saúde, como um direito efetivamente social (cuja implementação dependente de políticas públicas sujeitas a realidade orçamentária)?

Os argumentos e os exemplos acima não pretendem sustentar que este campo de análise e de aplicação não tenha limitações ou contradições. Muitas vezes, os economistas esperam do Direito um grau de previsibilidade e certeza que não lhe é próprio. Outras tantas, a justiça é mal compreendida, como se só a eficiência alocativa presidisse as razões da vida em sociedade. Mesmo assim, e considerando as disputas interpretativas existentes entre os economistas, há razões de sobra para apostar que, respeitada a dignidade e os compromissos dos campos disciplinares, juristas e economistas só tem a ganhar com este diálogo. Um diálogo de verdade, em que ambos falam e ambos escutam. É este dialogo que pretendêssemos apresentar neste espaço, daqui em diante.

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*Professor de Economia da FGV-EAESP

**Professor de Direito da Direito GV



 




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