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A liberdade de expressão pode sofrer restrições em razão das eleições?

Ricardo Estevão Soares de Ávila

Recentemente, a sociedade brasileira, revivendo um passado indesejado, presenciou uma manifestação a favor da liberdade de expressão. No dia 22 de agosto de 2010, humoristas uniram-se contra a "censura" na cidade do Rio de Janeiro.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Atualizado em 2 de setembro de 2010 08:18


A liberdade de expressão pode sofrer restrições em razão das eleições?

Ricardo Estevão Soares de Ávila*

Recentemente, a sociedade brasileira, revivendo um passado indesejado, presenciou uma manifestação a favor da liberdade de expressão. No dia 22 de agosto de 2010, humoristas uniram-se contra a "censura" na cidade do Rio de Janeiro.

Segundo a legislação vigente (lei 9.504/97 - clique aqui e Resolução 23.191 do TSE - clique aqui), desde o dia 1º de julho até o final das eleições gerais de 2010, as emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e noticiário, estão proibidas, dentre outras coisas, de "usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, ou produzir ou veicular programa com esse efeito" (art. 45, inciso II), "ou difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido político ou coligação, a seus órgãos ou representantes" (art. 45, inciso III), sob pena de sanções.

Por isso a insurgência dos humoristas, vez que os comandos normativos regentes, de fato, impingem restrições a programas que carregam críticas, que potencialmente possam "degradar ou ridicularizar candidatos, partidos políticos ou coligações", ou que possam "desvirtuar a realidade e beneficiar ou prejudicar candidatos, partidos políticos ou coligações", tais como os programas de humor.

Daí a grande questão: a restrição a um direito fundamental - liberdade de expressão -, por norma infraconstitucional, justifica-se em razão da proximidade das eleições? Com todo respeito, mas a resposta coaduna-se com o entendimento dos humoristas: não.

A liberdade de expressão é um direito fundamental garantido pela CF/88 (clique aqui). O artigo 5º do texto constitucional é bem claro ao dispor que "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato" (inciso IV), que "ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política" (inciso VIII), que "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença" (inciso IX) e que "é assegurado a todos o acesso à informação" (inciso XIV).

Como bem pontuou o colendo STF, é a liberdade de expressão e as faculdades nela incluídas (comunicação de pensamento, de criação, de ideias, de informação e de expressões não verbais) "que dão conteúdo às relações de imprensa e que se põem como superiores bens de personalidade e mais direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana." Liberdade esta, verdadeiro direito de personalidade, que, em consonância com o artigo 220 da Constituição Federal, está "a salvo de qualquer restrição ao seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação". (ADPF 130-7 - clique aqui)

É certo que nenhum direito fundamental é ilimitado, podendo sofrer restrições. Entretanto, restringir o direito à liberdade de expressão, especialmente a crítica a uma pessoa pública em razão da proximidade das eleições distancia-se da proporcionalidade, justamente porque é neste período que se vive o ápice da Democracia. Sem contar que não é menos certo que a crítica, por si, não tem o condão de potencializar ou destruir candidaturas, ainda mais quando se trata de manifestação voltada ao riso.

Não se pode perder de vista que o político, em geral, tem seu espaço à intimidade mais reduzido do que o homem comum. Darcy Arruda Miranda recorda que "ninguém está mais sujeito à crítica do que o homem público, e muitas vezes dele se poderá dizer coisas desagradáveis, sem incidir em crime contra a honra, coisas que não poderão ser ditas do cidadão comum sem contumélia". (Comentários à Lei de Imprensa, tomo II, 2ª Edição, p. 487 apud voto do Des. Francisco Loureiro do TJ/SP relator da apelação cível 575.762-4).

Inclusive, o egrégio TJ/SP já assentou o entendimento de que "os políticos estão sujeitos de forma especial às críticas públicas e é fundamental que se garanta não só ao povo em geral larga margem de fiscalização e censura de suas atividades, mas sobretudo à imprensa, ante a relevante utilidade pública da mesma." (RJTJESP 169/86, Rel. Des. Marco Cesar apud GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel; FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser; CHUEIRI, Miriam Fecchio. O Sistema Constitucional, a Liberdade de Expressão e de Imprensa - Direito de Crítica a Político - Limites Frente a Função Social da Informação.

Paulo Thadeu Gomes da Silva, "no caso de veiculação de mensagens que ridicularizem uma pessoa pública, a liberdade de expressão deve ser respeitada, e isso porque, a uma o que se está a fazer é emitir juízos de valor ou de desvalor com relação à esfera privada/pública da pessoa, o que, só por si, descaracteriza a manifestação de eventual interesse público, e a duas porque, se os conteúdos comunicados são de ordem a provocar o riso, sob forma de chiste, não são eles aptos a convencer quem quer que seja de que são verdadeiros, tamanho o absurdo do próprio conteúdo transmitido [ver, nesse sentido, o famoso julgamento da Suprema Corte norte-americana, Hustler Magazine v. Falwell, 485 US 46, 1988]". (O direito eleitoral e a liberdade de expressão - clique aqui)

O direito à crítica, ainda que em tom áspero ou contundente, inapropriado ou de picardia, é um elemento essencial do regime democrático e fundamental para o exercício da liberdade de expressão. Espanta, portanto, a vigência de normas infraconstitucionais que impedem, mesmo que em situação circunstancial - período eleitoral -, o amplo exercício desse direito. Ainda mais considerando que a Constituição Federal positivou o mais democrático e civilizado regime da livre e plena circulação das ideias e opiniões, sem deixar de prever o direito de resposta e todo um regime de responsabilidades civis, penais e administrativas, visando com isso repelir a censura e, ao mesmo tempo, impedir o abuso.

Nesse diapasão, bem apropriada a preocupação do Ministro Celso de Mello, segundo o qual "a censura governamental, emanada de qualquer um dos três Poderes, é a expressão odiosa da face autoritária do poder público", razão pela qual deve ser extirpada. (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130-7)

Do mesmo modo, faz-se extremamente sensata a consideração de Paulo Thadeu Gomes da Silva, para quem a crítica "deve ser protegida, com muito maior peso na esfera política, porque é nesse campo que se efetiva a própria democracia, a manifestação e o debate das ideias, e estas, ainda que sejam ruins, devem ser combatidas não com a pura e simples proibição de sua veiculação, mas sim com a liberdade de se emitir ideias mais adequadas." (op. cit.)

Com a razão, portanto, estão os humoristas, os quais têm o dever de informar e criticar fatos àqueles que têm o direito constitucional de ser informados. Informação e crítica que podem ser perfeitamente transmitidas, mesmo no período de eleições, por meio de sátira, de charge ou qualquer outro formato de humor. Até porque o humor, para uma sociedade assolada pela falta de assistência básica mínima, cujos representantes do povo vêm lutando para incluir no texto constitucional a busca da felicidade (PEC da felicidade) sem, contudo, buscar meios para efetivar os direitos sociais (artigo 6º), certamente não prejudica, mas sim complementa a decisão individual e secreta que cada cidadão brasileiro tem, e terá, que tomar na hora de decidir o futuro do país.

Por isso que, no último dia 2 de setembro, os Ministros do STF referendaram, por maioria de votos, a medida liminar concedida pelo Ministro Ayres Britto na ADIn 4451, em 26 de agosto de 2010 (clique aqui), que suspendeu a eficácia do inciso II do artigo 45 da lei 9.504/97 (clique aqui) e conferiu interpretação conforme à Constituição ao inciso III do mesmo dispositivo. Os Ministros, inclusive, foram além, não só suspenderam a eficácia do inciso II e a parte final do inciso III do mencionado artigo 45 como, através da técnica do arrastamento (por consequência lógico-jurídica), suspenderam os parágrafos 4º e 5º, também daquele artigo, os quais conceituam montagem e trucagem, mencionados no inciso II.

A política realmente é coisa séria, que exige, no mínimo, vocação pela defesa do interesse público. A seriedade, entretanto, não impede nem é antagônica à crítica em formato de humor. Aliás, ela deveria ser lembrada e exigida dos candidatos, partidos e coligações, os quais, ao menos, deveriam conhecer as funções dos cargos que almejam, principalmente as necessidades e interesses daqueles que poderão representar, e não simplesmente defender que "pior do que tá não pode ficar".

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*Advogado do escritório Fernando Corrêa da Silva e Advogados Associados

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