Sem limites não há democracia
Num texto escrito em julho de 2009 e intitulado "Magistratura ajoelhada", reconheci - sem qualquer ranço demagógico ou de hipocrisia - que muitas vezes não dei bom dia a cavalo (como diria meu querido tio Sinval), fui o próprio. Hoje, ainda uma vez, admito minha condição, um tanto humana, parte equina, bem como a possibilidade, daí mesmo decorrente, de continuar a pastar por muitos anos nos campos da Baixada Maranhense. Apesar disso, calar seria pior, pois faria brotar em mim a porção de um bicho covarde, sorrateiro, um verme, enfim, que da podridão e na inação alheias se alimenta.
quinta-feira, 29 de julho de 2010
Atualizado em 28 de julho de 2010 10:53
Sem limites não há democracia
Mário Márcio de Almeida Sousa*
Num texto escrito em julho de 2009 e intitulado "Magistratura ajoelhada" (clique aqui), reconheci - sem qualquer ranço demagógico ou de hipocrisia - que muitas vezes não dei bom dia a cavalo (como diria meu querido tio Sinval), fui o próprio. Hoje, ainda uma vez, admito minha condição, um tanto humana, parte equina, bem como a possibilidade, daí mesmo decorrente, de continuar a pastar por muitos anos nos campos da Baixada Maranhense. Apesar disso, calar seria pior, pois faria brotar em mim a porção de um bicho covarde, sorrateiro, um verme, enfim, que da podridão e na inação alheias se alimenta.
Por razões de natureza legal e ética, bem assim pela sincera convicção de que não se deve jogar lenha em fogueiras alheias, não posso, não quero e não vou me manifestar sobre o mérito do caso que, nos últimos dias, envolve um conhecido empresário com atuação nesse nosso grande Maranhão. Tampouco pretendo formar juízos de valor sobre tudo aquilo que foi dito e que porventura se escondeu a respeito. Valer-me-ei apenas da repercussão dos fatos para externar preocupações que há muito me tomam.
Nos dias que se seguiram à prisão do mencionado empresário, diversos magistrados externaram sua revolta e sua indignação com a notícia de que a colega responsável pelo tão famoso processo teria dito, em entrevista, que o igualmente famoso empresário costumava se gabar de suas relações com autoridades do Judiciário e que isso também serviu de fundamento para a decretação da sua prisão. Cogitou-se, até, interpelar judicialmente a juíza e instaurar procedimento administrativo contra ela.
À primeira vista, tais reações são legítimas e justificáveis. Afinal de contas, não é dado a nenhum magistrado invocar e valer-se de suposições ou insinuações contra quem quer que seja para decidir num ou noutro sentido; muito menos pôr sob suspeita todos os membros de um dos Poderes da República, ainda que em nível estadual. E digo isso com toda tranquilidade, porquanto tenho sofrido - íntima e quase que diariamente - com os ataques generalizantes dirigidos ao Poder Judiciário, seja com os procedentes, seja com os levianos. Afinal de contas, sou juiz e pretendo sê-lo até quando minhas forças e a ordem jurídica permitirem.
Enquanto escrevia este texto, tentei ouvir a colega responsável pelo sobredito caso. Não tive sucesso. Em que pese isso, pelo que pude colher, Sua Excelência não concedeu a tal entrevista na qual teria dito que o empresário costumava se vangloriar de suas relações com membros da magistratura. Em verdade, o que ela fez foi transcrever em sua decisão trechos de depoimentos nos quais essas relações teriam sido ventiladas por quem delas se dizia regozijar. Pelas mesmas razões já mencionadas, não posso, não quero e não vou opinar sobre o acerto ou desacerto da conduta, tampouco sobre as reações que ensejou.
Contudo, até mesmo para chegar ao tema que interessa, uma pergunta se impõe: se nós, magistrados, que, por dever de ofício, temos sempre que ouvir todas as partes envolvidas num processo, por vezes incorremos no equívoco de muitos e tomamos como procedente uma acusação sem consultar o acusado, que se dirá, então, de uma sociedade ávida por escândalos? Arrisco-me a responder. Também nós somos vítimas de uma crescente e perigosa tendência que, por isso mesmo, precisar ser pensada e sobretudo evitada: nos dias que correm, qualquer um diz qualquer coisa e por qualquer meio contra qualquer pessoa e isso logo toma ares de verdade incontestável. Ao que tudo indica, foi exatamente o que ocorreu no caso em comento. Atribuiu-se a alguém uma entrevista que efetivamente não foi dada, como se a simples aposição de aspas numa frase tivesse o condão de torná-la dita por quem se lha atribui.
Eis que surge, então, outro questionamento: a liberdade de informar e o direito à livre manifestação de pensamento tornam quem os exercita detentor da verdade, senhor absoluto da ética e da moralidade, a tal ponto que nem se deve dar ao trabalho de ouvir alguém antes de lhe atirar as mais graves acusações? Como diria um ministro que muito admiro, a resposta é desenganadamente negativa.
Especificamente em relação ao Poder Judiciário, quando uma decisão vai ao encontro daquilo que seguimentos da sociedade reputam correto, justo, o magistrado é correto, justo. Do contrário, mesmo um juiz que sempre se portou com retidão, muitas vezes ao longo de décadas, passa, de uma hora para a outra, a ser tachado de desonesto, de venal e subalterno de interesses inconfessáveis. Isso, por óbvio, não é correto, não é justo.
O tema é vasto e polêmico. E o espaço, além de curto, não é adequado para abordá-lo com a profundidade que merece. Finalizo, então, lembrando que não existem direitos absolutos. Tudo na vida tem e deve sempre ter limites. E não pode ser diferente com o direito de informar e a liberdade de dizer o que se pensa, mesmo sendo eles tão caros a uma democracia. Não nos olvidemos, ademais, que todos estamos sujeitos ao exercício abusivo e muitas vezes devastador dessas franquias constitucionais.
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*Juiz no Maranhão
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