Eutanásia, ortotanásia e distanásia: breves considerações a partir do biodireito brasileiro
Tema milenar, a eutanásia e outras expressões correlatas voltam a ocupar o debate atual sobre os limites do poder humano sobre o próprio processo de morte.
segunda-feira, 4 de abril de 2005
Atualizado em 1 de abril de 2005 15:09
Eutanásia, ortotanásia e distanásia: breves considerações a partir do biodireito brasileiro
Roxana Cardoso Brasileiro Borges*
Tema milenar, a eutanásia e outras expressões correlatas voltam a ocupar o debate atual sobre os limites do poder humano sobre o próprio processo de morte.
Desta vez, o problema atrai a imprensa devido ao caso norteamericano envolvendo Terri Schiavo, que faleceu em 31 de março de 2005, após encontrar-se em estado vegetativo por 15 anos, sendo alimentada e hidratada por uma sonda. Depois de uma longa disputa judicial entre seu marido e seus pais, a Justiça americana determinou, em última instância, a retirada da sonda que a alimentava artificialmente, para que o processo natural de morte pudesse ter lugar, o que veio a ocorrer depois de 13 dias sem a alimentação e hidratação artificiais.
Considerando oportuno o debate, propomos uma reflexão sobre o tema, vinculando-o ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e salientando a necessidade de uma delimitação conceitual sobre o significado da eutanásia e sua distinção quanto à ortotanásia e o auxílio ao suicídio, além de breves considerações sobre a distanásia e o testamento vital.
1. Dignidade da pessoa humana como fundamento do direito à morte digna
A concepção de dignidade da pessoa humana que nós temos liga-se à possibilidade de a pessoa conduzir sua vida e realizar sua personalidade conforme sua própria consciência, desde que não sejam afetados direitos de terceiros. Esse poder de autonomia também alcança os momentos finais da vida da pessoa.
O avanço da medicina quanto às tecnologias à disposição do médico tem provocado não apenas benefícios à saúde das pessoas, mas, também, em alguns momentos, todo esse aparato tecnológico pode acabar afetando a dignidade da pessoa. Esses avanços abrangem, sobretudo, o controle do processo de morte.
Biologicamente, certos órgãos das pessoas podem ser mantidos em funcionamento indefinidamente, de forma artificial, sem qualquer perspectiva de cura ou melhora. Alguns procedimentos médicos, ao invés de curar ou de propiciar benefícios ao doente, apenas prolongam o processo de morte. Portanto, cabe indagar se se trata, realmente, de prolongar a vida ou de prolongar a morte do paciente terminal.
A "obstinação terapêutica" ou "encarniçamento terapêutico" pode ser definida como
"uma prática médica excessiva e abusiva decorrente diretamente das possibilidades oferecidas pela tecnociência e como o fruto de uma obstinação de estender os efeitos desmedidamente, em respeito à condição da pessoa doente"2.
Há situações em que os tratamentos médicos se tornam um fim em si mesmos e o ser humano passa a estar em segundo plano. A atenção tem seu foco no procedimento, na tecnologia, não na pessoa que padece. Nesta situação o paciente sempre está em risco de sofrer medidas desproporcionais, pois os interesses da tecnologia deixam de estar subordinados aos interesses do ser humano. Neste momento,
"em uma época consciente, mais que nunca, dos limites do científico e das ameaças de atentado à dignidade humana, a obstinação terapêutica surge como um ato profundamente anti-humano e atentatório à dignidade da pessoa e a seus direitos mais fundamentais"3.
Hoje reivindica-se a reapropriação da morte pelo próprio doente. Há uma preocupação sobre a salvaguarda da qualidade de vida da pessoa, mesmo na hora da morte. Reivindica-se uma morte digna, o que significa
"a recusa de se submeter às manobras tecnológicas que só fazem prolongar a agonia. É um apelo ao direito de viver uma morte de feição humana [...] significa o desejo de reapropriação de sua própria morte, não objeto da ciência, mas sujeito da existência"4.
Por isso, o fundamento jurídico e ético do direito à morte digna é a dignidade da pessoa humana. O prolongamento artificial do processo de morte é alienante, retira a subjetividade da pessoa e atenta contra sua dignidade enquanto sujeito de direito.
O conceito de dignidade humana é categoria central na discussão do direito à vida e do direito à morte digna. Este conceito leva a indagações como "se o prolongamento artificial da vida apenas vegetativa não representa uma manipulação que viola a dignidade humana e se certos tratamentos coativos e não necessários não ultrajam a dignidade da pessoa"5.
Jussara Meirelles e Eduardo Didonet Teixeira ponderam que
"é possível entender que o acharnement subverte o direito à vida e, com certeza, fere o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, assim como o próprio direito à vida. Se a condenação do paciente é certa, se a morte é inevitável, está sendo protegida a vida? Não, o que há é postergação da morte com sofrimento e indignidade [...] Se vida e morte são indissociáveis, e sendo esta última um dos mais elevados momentos da vida, não caberá ao ser humano dispor sobre ela, assim como dispõe sobre a sua vida?"6.
A intervenção terapêutica contra a vontade do paciente é um atentado contra sua dignidade. A pessoa tem a proteção jurídica de sua dignidade e, para isso, é fundamental o exercício do direito de liberdade, o direito de exercer sua autonomia e de decidir sobre os últimos momentos de sua vida. Esta decisão precisa ser respeitada. Estando informado sobre o diagnóstico e o prognóstico, o paciente decide se vai se submeter ou se vai continuar se submetendo a tratamento. Ele pode decidir pelo não tratamento, desde o início, e pode também decidir pela interrupção do tratamento que ele considera fútil.
O princípio da não-futilidade exige o respeito pela dignidade da vida. O respeito pela dignidade da vida exige o reconhecimento de que "tratamentos" inúteis ou fúteis apenas prolongam uma mera "vida biológica"7, sem nenhum outro resultado. A não intervenção, desejada pelo paciente, não é uma forma de eutanásia, com provocação da morte ou aceleração desta, é o reconhecimento da morte como elemento da vida humana, é da condição humana ser mortal. É humano deixar que a morte ocorra sem o recurso a meios artificiais que prolonguem inutilmente a agonia.
2. Direito de morrer dignamente e direito à morte: distinção
O direito de morrer dignamente não deve ser confundido com direito à morte.
O direito de morrer dignamente é a reivindicação por vários direitos e situações jurídicas, como a dignidade da pessoa, a liberdade, a autonomia, a consciência, os direitos de personalidade. Refere-se ao desejo de se ter uma morte natural, humanizada, sem o prolongamento da agonia por parte de um tratamento inútil.
Isso não se confunde com o direito de morrer. Este tem sido reivindicado como sinônimo de eutanásia ou de auxílio a suicídio, que são intervenções que causam a morte.
Defender o direito de morrer dignamente não se trata de defender qualquer procedimento que cause a morte do paciente, mas de reconhecer sua liberdade e sua autodeterminação.
O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 garante a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade e à segurança, dentre outros. Ocorre que tais direitos não são absolutos. E, principalmente, não são deveres. O artigo 5º não estabelece deveres de vida, liberdade e segurança.
Os incisos do artigo 5º estabelecem os termos nos quais estes direitos são garantidos: II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento degradante; IV - é livre a manifestação de pensamento...; VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença...; VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".
Assim, é assegurado o direito (não o dever) à vida, e não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento. O direito do paciente de não se submeter ao tratamento ou de interrompê-lo é conseqüência da garantia constitucional de sua liberdade, de sua liberdade de consciência (como nos casos de Testemunhas de Jeová), de sua autonomia jurídica, da inviolabilidade de sua vida privada e intimidade e, além disso, da dignidade da pessoa, erigida a fundamento da República Federativa do Brasil, no art. 1º da Constituição Federal. O inciso XXXV do art. 5º garante, inclusive, o direito de o paciente recorrer ao Judiciário para impedir qualquer intervenção ilícita em seu corpo contra sua vontade. A inviolabilidade à segurança envolve a inviolabilidade à integridade física e mental. Isso leva à proibição, por exemplo, de intervenções não admitidas pelo paciente em sua saúde física ou mental (ou mesmo na ausência de saúde completa).
3. Eutanásia, auxílio a suicídio, distanásia e ortotanásia: delimitações conceituais necessárias
Além de serem diversos os posicionamentos a respeito da eutanásia, também são variados os significados que os autores dão a esta expressão e a termos a ela correlatos. Para uma abordagem jurídica do tema, é necessária a delimitação dos conceitos de eutanásia verdadeira, distanásia, ortotanásia e auxílio ao suicídio.
Etimologicamente, a palavra eutanásia significa boa morte ou morte sem dor, tranqüila, sem sofrimento. Deriva dos vocábulos gregos eu, que pode significar bem, bom e thanatos, morte. No sentido que tinha em sua origem, a palavra eutanásia significaria, então, morte doce, morte sem sofrimento.
O primeiro sentido de euthanatos faz referência a facilitar o processo de morte, sem, entretanto, interferência neste. Na verdade, conforme o sentido originário da expressão, seriam medidas eutanásicas não a morte, mas os cuidados paliativos do sofrimento, como acompanhamento psicológico do doente e outros meios de controle da dor. Também seria uma medida eutanásica a interrupção de tratamentos inúteis ou que prolongassem a agonia. Ou seja: a eutanásia não visaria à morte, mas a deixar que esta ocorra da forma menos dolorosa possível. A intenção da eutanásia, em sua origem, não era causar a morte, mesmo que fosse para fazer cessar os sofrimentos da pessoa doente.
Atualmente, porém, tem se falado de eutanásia como uma morte provocada por sentimento de piedade à pessoa que sofre. Ao invés de deixar a morte acontecer, a eutanásia, no sentido atual, age sobre a morte, antecipando-a. O conceito foi modificado e tem causado muita confusão.
Utilizando a concepção atual da expressão, admite-se que só se pode falar em eutanásia quando ocorre a morte movida por piedade, por compaixão em relação ao doente. A eutanásia verdadeira é a morte provocada em paciente vítima de forte sofrimento e doença incurável, motivada por compaixão. Se a doença não for incurável, afasta-se a eutanásia. Diante do Código Penal brasileiro, o que acabamos de chamar de eutanásia pode atualmente ser considerada homicídio privilegiado. Se não estiverem presentes aqueles requisitos, cai-se na hipótese de homicídio simples ou qualificado, dependendo do caso.
Quando se busca simplesmente causar morte, sem a motivação humanística, não se pode falar sobre eutanásia. A eutanásia é comumente provocada por parentes, amigos e médicos do paciente. Por isso, a eutanásia eugênica, utilizada pelo nazismo alemão contra judeus e doentes, não é considerada eutanásia própria, mas hipótese de homicídio simples ou qualificado. Também a morte de velhos, pessoas com deformações e doentes, mesmo incuráveis, mas que não se encontram em estado terminal e submetidos a forte sofrimento, também não é eutanásia (que se encaixa, no direito brasileiro atual, na hipótese de homicídio privilegiado).
Só é eutanásia a morte provocada em doente com doença incurável, em estado terminal e que passa por fortes sofrimentos, movida por compaixão ou piedade em relação ao doente. E constitui crime de homicídio, perante o atual Código Penal.
Alguns códigos penais em outros países prevêem diminuição de pena para a eutanásia.
Maria Helena Diniz relata que os Códigos Penais da Alemanha, da Suíça e da Itália encaixam a eutanásia no tipo de homicídio atenuado por motivo piedoso, não se admitindo absolvição nem perdão judicial8.
No Brasil não há tipo específico para a eutanásia. O Código Penal brasileiro não faz referência à eutanásia. Conforme a conduta, esta pode se encaixar na previsão do homicídio, do auxílio ao suicídio ou pode, ainda, ser atípica. No Brasil, o que se chama de eutanásia é considerado crime. Encaixa-se na previsão do art. 121, homicídio. Se se trata mesmo da eutanásia verdadeira, cometida por motivo de piedade ou compaixão para com o doente, aplica-se a causa de diminuição de pena do parágrafo 1º do artigo 121, que prevê: "Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço". Inclusive o médico pode cometer a eutanásia e sua conduta se subsume ao referido tipo legal.
O auxílio a suicídio de pessoa que não se encontra em estado terminal e com fortes dores, da mesma forma, não se caracteriza como eutanásia, mas como o simples auxílio a suicídio previsto no Código Penal. Quem executa o ato que vai causar a morte é a própria vítima. Para que a ação de auxílio a suicídio tenha a valoração de eutanásia, é preciso que o paciente tenha solicitado a ajuda para morrer, diante do fracasso dos métodos terapêuticos e dos paliativos contra as dores, o que acaba por retirar a dignidade do paciente, segundo seu próprio entendimento.
O suicídio assistido, ou o auxílio ao suicídio, é também crime. Ocorre com a participação material, quando alguém ajuda a vítima a se matar oferecendo-lhe meios idôneos para tal. Assim, um médico, enfermeiro, amigo ou parente, ou qualquer outra pessoa, ao deixar disponível e ao alcance do paciente certa droga em dose capaz de lhe causar a morte, mesmo com a solicitação deste, incorre nas penas do auxílio ao suicídio. A vítima é quem provoca, por atos seus, sua própria morte. Se o ato que visa à morte é realizado por outrem, este responde por homicídio, não por auxílio ao suicídio. A solicitação ou o consentimento do ofendido não afastam a ilicitude da conduta.
Um outro termo relacionado à eutanásia é a distanásia. Chama-se de distanásia o prolongamento artificial do processo de morte, com sofrimento do doente. É uma ocasião em que se prolonga a agonia, artificialmente, mesmo que os conhecimentos médicos, no momento, não prevejam possibilidade de cura ou de melhora. É expressão da obstinação terapêutica pelo tratamento e pela tecnologia, sem a devida atenção em relação ao ser humano. Ao invés de se permitir ao paciente uma morte natural, prolonga-se sua agonia, sem que nem o paciente nem a equipe médica tenham reais expectativas de sucesso ou de uma qualidade de vida melhor para o paciente. Conforme Maria Helena Diniz, "trata-se do prolongamento exagerado da morte de um paciente terminal ou tratamento inútil. Não visa prolongar a vida, mas sim o processo de morte"9.
Em oposição à distanásia, surge o conceito de ortotanásia. Etimologicamente, ortotanásia significa morte correta: orto: certo, thanatos: morte. Significa o não prolongamento artificial do processo de morte, além do que seria o processo natural. A ortotanásia deve ser praticada pelo médico.
Na situação em que ocorre a ortotanásia, o doente já se encontra em processo natural de morte, processo este que recebe uma contribuição do médico no sentido de deixar que esse estado se desenvolva no seu curso natural. Apenas o médico pode realizar a ortotanásia. Entende-se que o médico não está obrigado a prolongar o processo de morte do paciente, por meios artificiais, sem que este tenha requerido que o médico assim agisse. Além disso, o médico não é obrigado a prolongar a vida do paciente contra a vontade deste. A ortotanásia é conduta atípica frente ao Código Penal, pois não é causa de morte da pessoa, uma vez que o processo de morte já está instalado.
A ortotanásia serviria, então, para evitar a distanásia. Ao invés de se prolongar artificialmente o processo de morte (distanásia), deixa-se que este se desenvolva naturalmente (ortotanásia). Maria Celeste Cordeiro dos Santos entende que este auxílio à morte "é lícito sempre que ocorra sem encurtamento da vida" ; a autora chama a ortotanásia também de "auxílio médico à morte", entendendo que "o médico (e só ele) não é obrigado a intervir no prolongamento da vida do paciente além do seu período natural, salvo de tal lhe for expressamente requerido pelo doente".
De outro lado, admite-se, amplamente, que, diante de dores intensas sofridas pelo paciente terminal, consideradas por este como intoleráveis e inúteis, o médico deve agir para amenizá-las, mesmo que a conseqüência venha a ser, indiretamente, a morte do paciente.
O autor espanhol Ramón Martín Mateo teceu críticas a certa jurisprudência espanhola que ordenou a intervenção médica a despeito da recusa do paciente. Segundo o autor, "esta jurisprudência segue uma linha equivocada, ao hipostasiar o direito à vida, quando está demonstrado à saciedade que para muitos sujeitos este bem é inferior ao implicado em respeito a determinados valores e crenças" .
Para Ramón Martín Mateo, não há dúvidas sobre a licitude da ortotanásia . Porém, há algumas objeções na doutrina. O principal argumento contrário é o de que, com o intenso desenvolvimento do conhecimento médico, a determinação da irreversibilidade de um quadro de saúde pode ser falha. Além disso, há casos em que a determinação da morte como já ocorrida é falha e algumas pessoas, dadas como mortas, despertam durante o velório ou até mesmo depois que o enterro já finalizou. São riscos próprios dos limites do conhecimento tecnológico que exigem cuidado nos critérios sobre a morte. Na verdade, a discussão é muito mais ampla que a licitude ou a ilicitude da ortotanásia. Trata-se da indagação sobre os limites ou possibilidades do conhecimento científico num determinado momento. Por causa da consciência da existência desses limites, os cuidados contra o arbítrio devem ser maximizados.
Diferente de ortotanásia é a situação do paciente que já se encontra em morte cerebral ou encefálica. Neste caso, a pessoa já está morta, permitindo a lei, inclusive, não apenas que os aparelhos sejam desligados, mas que seus órgãos sejam retirados para fins de transplantes.
4. Eutanásia e ortotanásia no Direito Penal projetado
Em 1984, juntamente com a proposta de reforma da Parte Geral do Código Penal, havia também um anteprojeto para modificação da Parte Especial. A modificação da Parte Especial não ocorreu. Esse anteprojeto da Parte Especial do Código Penal Brasileiro previa expressamente a ortotanásia, no art. 121, § 4º: "Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém, por meio artificial, se previamente atestada, por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do doente ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão".
Observe-se que o texto se referia à definição dada à ortotanásia e não à eutanásia. O parágrafo 3º previa a situação em que o processo de morte já se iniciou, estando a vida mantida artificialmente, sem chance de cura ou melhora. Nesta situação há apenas o prolongamento do processo de morte natural, por via artificial. Não é a previsão da eutanásia, em que tal processo ainda não se iniciou, embora sofra o paciente de doença incurável. Na eutanásia produz-se a causa imediata da morte, o que é crime, encaixando-se a conduta na previsão do homicídio privilegiado do texto do Código Penal atual.
O Anteprojeto de Reforma da Parte Especial do Código Penal Brasileiro prevê, no art. 121:
"Eutanásia
§ 3º Se o autor do crime agiu por compaixão, a pedido da vítima imputável e maior, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave:
Pena - Reclusão de três a seis anos.
Exclusão de ilicitude
§ 4º Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão".
Quanto ao parágrafo 3º, entende-se que o fato de a doença ser grave apenas não deve ser suficiente para o privilégio da pena reduzida do crime de homicídio, devendo a doença ser também incurável e tratar-se de paciente terminal.
Deve-se lembrar que a lei de transplante de órgãos determina que o médico que atesta a morte não pode pertencer à equipe de médicos responsável pelos transplantes de órgãos.
A ortotanásia, prevista no parágrafo 4º, é causa de exclusão de ilicitude.
Verifica-se que em ambos os casos há a exigência do "pedido da vítima" e do "consentimento do paciente", tanto para a configuração da eutanásia quanto para a configuração da ortotanásia, que é excludente de ilicitude, se bem que, neste último caso, a proposta admite que o consentimento seja dado por ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão. Esta tipificação de eutanásia difere das definições que a maioria da doutrina dá para a expressão: necessariamente, não se exige o consentimento do paciente na maioria das definições.
No Código Penal atual, o pedido da vítima não afasta a ilicitude, sendo o consentimento, no texto, irrelevante para a caracterização do que se chama de eutanásia. Este detalhe, na verdade, é um dos mais difíceis, na prática, com o qual lidar: como valorar o consentimento?
Maria Helena Diniz informa que em 1991, foi aprovada uma lei nos Estados Unidos sobre a autodeterminação do paciente, The Patient Self-Determination Act - PSDA. Segundo a lei, no momento da admissão do paciente, o hospital deve informá-lo sobre seu direito de aceitar ou recusar o tratamento, visando-se, com isso, à garantia da autodeterminação do paciente e à participação deste nas decisões quanto à sua saúde e à sua vida. A lei recomenda, inclusive, que o paciente se utilize de "ordens antecipadas (advance directives)" sobre o tratamento . De acordo com a autora, com base na lei PSDA, o paciente pode estabelecer sua decisão de três formas: a) declaração expressa do próprio paciente, através de testamento vital (living will); b) decisão por parte do representante legal específico, ou seja, de um curador com competência específica de tomar decisões quanto à saúde do paciente, figura admitida também no Código Civil de Quebec; c) decisão do paciente, dirigida ao médico, após consulta a este, sobre o tipo de tratamento que deseja receber num futuro estado terminal, em documentos escrito16.
No entanto, a defesa da autonomia do paciente não pode afastar uma indagação feita por Maria Helena Diniz quanto a possíveis defeitos na formação da declaração de vontade do paciente: "Poder-se-ia exaltar esse poder decisório do doente, ante o fato de que a autonomia de sua vontade pode ser uma arma contra ele mesmo, porque a decisão, em regra, vale conforme o seu grau de esclarecimento ou informação?"17.
Portanto, é imprescindível a preocupação com as circunstâncias em que se forma a vontade do paciente, devendo-se afastar, ao máximo, todos os fatores que possa interferir ou reduzir sua capacidade de compreensão e de decisão livre.
5. Testamento vital
Ao lado da figura do consentimento informado e esclarecido, aparece o testamento vital, também chamado de testamento biológico, testamento em vida, living will, testament de vie.
O testamento vital é um documento em que a pessoa determina, de forma escrita, que tipo de tratamento ou não tratamento que deseja para a ocasião em que se encontrar doente, em estado incurável ou terminal, e incapaz de manifestar sua vontade. Visa-se, com o testamento vital, a influir sobre os médicos no sentido de uma determinada forma de tratamento ou, simplesmente, no sentido do não tratamento, como uma vontade do paciente que pode vir a estar impedido de manifestar sua vontade em razão da doença.
No Brasil não há regulamentação sobre o testamento vital, mas admitimos sua validade, diante da autonomia da pessoa e do princípio da dignidade.
Nos Estados Unidos esse documento tem valor legal, tendo surgido com o Natural Death Act, na Califórnia, na década de 1970. Exige-se que o testamento vital seja assinado por pessoa maior e capaz, perante duas testemunhas independentes e que só tenha efeitos depois de quatorze dias da assinatura, sendo revogável a qualquer tempo. Além disso, tem um valor limitado no tempo, de aproximadamente cinco anos. O estado de fase terminal deve ser atestado por dois médicos. O médico que desrespeita as disposições do testamento sofre sanções disciplinares18.
O testamento vital, ao lado de evitar os procedimentos médicos desmedidos, evita que o médico seja processado por não ter procedido a um procedimento em paciente em fase terminal, conforme solicitado por este no documento.
Maria Isabel de Azevedo Souza, ao reconhecer o direito de autodeterminação do paciente, inclusive quanto ao momento de sua morte, afirma que, nesse caso,
"tem lugar a discussão acerca da manifestação antecipada da pessoa sobre as medidas a serem tomadas para o caso em que não possa mais se manifestar através dos chamados testamentos vitais (living-will) e do consentimento por substituição"19.
Tereza Rodrigues Vieira conta que, nos Estados Unidos, a organização Choice in Dying orienta sobre os direitos de pacientes terminais e oferece modelos de procurações para que outras pessoas possam tomar decisões médicas em nome do paciente, caso este fique incapaz de tomá-las20.
Maria Helena Diniz apresenta um modelo de documento que pode ter a mesma finalidade, chamado "Diretrizes Antecipadas Relativas a Tratamentos de Saúde e Outorga de Procuração", pelo qual uma pessoa poderia se posicionar sobre tratamentos médicos a que viesse se submeter, independentemente das conseqüências de sua recusa ao tratamento e independentemente do posicionamento contrário de seus familiares21.
Maria Celeste Cordeiro dos Santos apresenta, em sua obra O equilíbrio do pêndulo: a bioética e a lei, implicações médico-legais, um exemplo de testamento vital22.
Conclusão
O livre desenvolvimento da personalidade humana está intrinsecamente ligado à idéia de autonomia do sujeito, de âmbito de autodeterminação jurídica, pois a liberdade é imprescindível para a materialização dos direitos de personalidade, para o livre desenvolvimento da pessoa, para sua dignidade.
É necessário refletir sobre o grau de autonomia jurídica que a pessoa tem quanto ao processo de morte. Afastando-se a eutanásia, a idéia de morte digna permite à pessoa a autodeterminação a respeito dos últimos momentos de sua vida, com poderes, inclusive, para elaborar documentos que vinculem terceiros, como no caso do testamento vital. O reconhecimento da autonomia da pessoa quanto a esses momentos é imprescindível para a garantia de sua dignidade. Por isso, embora no Brasil, atualmente, a eutanásia e o auxílio ao suicídio sejam considerados condutas ilícita, não o é a ortotanásia, procedimento utilizado para se afastar a distanásia.
Deve-se compreender que a dignidade da pessoa humana não é um conceito objetivo, absoluto, geral, possível de ser abstraído em padrões morais de conduta e a serem impostos a todas as pessoas. Sem a consideração da alteridade e da tolerância, ignorando-se a pluralidade e a complexidade da sociedade atual, o uso do princípio da dignidade humana pode ser usado para a negação da pessoa, para a homogeneização dos indivíduos e para a negação da dignidade.
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1Cf. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito de morrer dignamente: eutanásia, ortotanásia, consentimento informado, testamento vital, análise constitucional e penal e direito comparado. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos (org.). Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: RT, 2001.
2BAUDOUIN, Jean-Louis, BLONDEAU, Danielle. Éthique de la mort et droit à la mort. Paris: Press Universitaires de France, 1993, p. 89.
3Ibidem, loc. cit.
4Ibidem, p. 107.
5ENCICLOPEDIA del diritto. Aggiornamento. V. I. Italia: Giuffrè, 1997. Vocábulo Bioetica (diritto internazionale), p. 253.
6MEIRELLES, Jussara, TEIXEIRA, Eduardo Didonet. Consentimento livre, dignidade e saúde pública: o paciente hipossuficiente. In: RAMOS, Carmem Lúcia Nogueira et al (orgs.). Diálogos sobre direito civil: construindo uma racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 371.
7BAUDOUIN, J. L., BLONDEAU, D. Op. cit., p. 104.
8DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 307.
9Ibidem, p. 316.
10SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. O equilíbrio do pêndulo: a bioética e a lei, implicações médico-legais. São Paulo: Ícone, 1998, p. 107.
11Ibidem, p. 110.
12VIEIRA, Tereza Rodrigues. Bioética e direito. São Paulo: Jurídica Brasileira, 1999, p. 90.
13MATEO, Ramón Martín. Bioética y derecho. Barcelona: Ariel, 1987, p. 106.
14Op. cit., p. 105.
15Op. cit., p. 335.
16Ibidem, p. 336-337.
17Ibidem, p. 337.
18BAUDOUIN, J. L., BLONDEAU, D. Op. cit., p. 93.
19Op. cit., p. 316.
20Op. cit., p. 90.
21Op. cit., p. 206-207.
22P. 13-14.
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*Advogada
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