A aquisição de imóvel rural e as áreas tradicionalmente ocupadas por população indígena
Assim como em artigo anterior, acerca de cuidados que o pretenso adquirente de imóvel rural deve ter no momento das negociações para a compra do bem, agora se chama a atenção para a possibilidade de a área a ser adquirida estar localizada em terras tradicionalmente ocupadas por população indígena.
quinta-feira, 13 de maio de 2010
Atualizado em 12 de maio de 2010 13:35
A aquisição de imóvel rural e as áreas tradicionalmente ocupadas por população indígena
Manoel Duarte Pinto*
Assim como em artigo anterior1, acerca de cuidados que o pretenso adquirente de imóvel rural deve ter no momento das negociações para a compra do bem, agora se chama a atenção para a possibilidade de a área a ser adquirida estar localizada em terras tradicionalmente ocupadas por população indígena.
A primeira questão a ser observada é a noção de "área tradicionalmente ocupada por população indígena" para fins de demarcação e proteção por parte da União, conforme preconiza o artigo 231 da Constituição Federal de 19882. Segundo José Afonso da Silva, "o tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra"3.
Desse modo, a proteção constitucional estampada no referido artigo 231 traz em si um conceito de ocupação que é imprescindível para a compreensão do instituto sob análise. Nesse caso, se comprovado por perícia competente que a comunidade indígena de algum modo tem aquela área como útil, necessária ou habitual para o seu modo de vida ou sobrevivência, ela será considerada como de ocupação habitual e estará albergada pela norma constitucional.
Essa mencionada proteção tem a amplitude de 'desconsiderar' todo ato tendente a afastar as comunidades indígenas de suas áreas, tal como vem prevista no parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição Federal4. São nulos, inclusive, os atos translativos de propriedade considerada de ocupação indígena, posto não poder haver qualquer forma de aquisição dessas áreas, que são consideradas bens públicos da União, conforme artigo 20, inciso XI, da Carta Magna5. Ora, como bens públicos, essas terras são imprescritíveis e inalienáveis e, exatamente por isso, seus eventuais registros ou matrículas não podem gerar efeitos válidos na ordem jurídica6. Não há flexibilização nem forma legítima de aquisição desses bens, uma vez que aqueles atos translativos nunca poderiam ter sido lavrados ou levados à registro.
O importante é notar que o ato administrativo de demarcar uma área indígena, tem natureza meramente declaratória7. É exatamente por isso que mesmo uma área tendo matrícula em nome de particular, sua simples condição de ser necessária ao modo de vida da comunidade indígena historicamente situada, atribui à mesma a condição de área indígena, portanto, bem da União, reconhecido por ato declaratório do Ministro de Estado da Justiça. Desse modo, o adquirente deve, quando tiver notícia de que há procedimento de demarcação de área indígena próxima ao imóvel pretendido ou que naquela região havia comunidade indígena mesmo há muito tempo, fazer busca na Fundação Nacional do Índio - FUNAI acerca de procedimento demarcatório envolvendo a área.
Essa cautela se justifica tendo em vista que após o procedimento demarcatório ser finalizado é muito difícil a desconstituição ou a descaracterização de determinada área. Além disso, é durante o procedimento administrativo, regulado pelo decreto 1.775/96 (clique aqui), que há possibilidade de contestação pelos interessados, inclusive produção de provas periciais8. O entrave está principalmente na abrangência conferida pela norma constitucional, aliada, algumas vezes, a estudos antropológicos de seriedade e cientificidade duvidosas9, que deixam os proprietários com poucas alternativas. Após isso, somente as vias judiciais ordinárias restarão ao adquirente10.
Desse modo, quem pretende adquirir área nessas condições deve se cercar dessa cautela adicional. Aos atuais proprietários que se encontram nessa situação resta tentar discutir judicialmente o procedimento administrativo, inclusive o laudo antropológico que coloca o imóvel em questão na área a ser demarcada, bem como provar sua boa-fé quando da aquisição do imóvel, a fim de serem indenizados pelas benfeitorias que tiverem realizado na área.
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1 Disponivel em: https://www.trigueirofontes.com.br/artigos.htm
2 Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
3 DA SILVA, José Afonso, in Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, Malheiros, 2002, p. 829-830.
4 § 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
5 Art. 20. São bens da União:
(...)
XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
6 STJ - MS 14987, MS 14746;
7 STJ - MS 10.225
8 Art. 2° A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico de identificação
(...)
§ 8° Desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação de que trata o parágrafo anterior, poderão os Estados e municípios em que se localize a área sob demarcação e demais interessados manifestar-se, apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de que trata o parágrafo anterior
9 "A farra da antropologia oportunista", In Revista Veja. Edição 2163 / 5 de maio de 2010
10 STJ - MS 14.447, MS 8.882, MS 8.878, MS 10.225
*Advogado do escritório Trigueiro Fontes Advogados
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