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Da aplicação das astreintes - a indústria da multa

Luciana Neves Cirne

Ultimamente, com a análise do contexto do Judiciário brasileiro aliados à criteriosa avaliação de julgados e demais precedentes percebemos que estamos diante de outro cenário nas decisões brasileiras, notadamente as proferidas em sede de Juizados Especiais.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Atualizado em 23 de março de 2010 11:41


Da aplicação das astreintes - a indústria da multa

Luciana Pedrosa Neves Cirne*

Ultimamente, com a análise do contexto do Judiciário brasileiro aliados à criteriosa avaliação de julgados e demais precedentes percebemos que estamos diante de outro cenário nas decisões brasileiras, notadamente as proferidas em sede de Juizados Especiais.

Verificamos, sem muitos esforços, que o cenário transmudou-se da indústria do dano moral para a indústria da astreintes.

Cotidianamente, nos deparamos com imputações de multa diária por descumprimento de obrigações de fazer que se mostram demasiadamente elevadas, gerando multa excessiva, que pode e deve, à luz do que dispõe o artigo 461, § 6º, CPC (clique aqui), ser reduzida, haja vista a possibilidade de gerar, mantido o patamares e os critérios atuais de aplicação, não apenas a necessária coerção para o cumprimento da decisão judicial, mas o enriquecimento injustificado da parte que se intitula exequente.

Neste sentido, é de se ressaltar que ao Juiz é permitido adotar a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo os fins sociais da lei e às exigências do bem comum (inteligência do artigo 6º da lei 9.099/95 - clique aqui). Consoante dispõe o artigo 461, § 6º, CPC, é possível, de ofício, a reavaliação da situação fática, modificando-se o valor da multa para não promover o enriquecimento sem causa (artigo 884 do Código Civil - clique aqui), re-equilibrando os interesses do exeqüente e do executado.

Nessa linha a jurisprudência a seguir:

"APELAÇÕES CÍVEIS. EMBARGOS À PENHORA. MULTA. INCIDÊNCIA. MATÉRIA PRECLUSA. QUANTUM. ONEROSIDADE EXCESSIVA. FIXAÇÃO HONORÁRIA PELA APRECIAÇÃO EQUITATIVA. ART. 20, §4.º, DO CPC. A questão da incidência da multa é matéria preclusa nesta Corte, consoante analisado no AI 70005613476. Onerosidade excessiva da multa a provocar enriquecimento sem causa. Imperatividade da redução da multa, por força do art. 461, §6.º do CPC, em face de sua excessividade. Redução aos patamares da Câmara, R$100,00 (cem reais) por dia. Os honorários nos embargos são deferidos mediante apreciação eqüitativa do Juiz. Imperativa é a compensação das verbas sucumbenciais, quando estamos diante de caso de sucumbência recíproca e não havendo decaimento mínimo. Exegese dos art. 21 do CPC e 23 do EOAB. Apelação do embargante parcialmente conhecida e provida e improvida a apelação adesiva. Sucumbência redimensionada". (Apelação Cível 70020023172, Décima Nona Câmara Cível, TJ/RS, Relator: Guinther Spode, Julgado em 26/6/2007).

De fato, muito embora tenha havido o trânsito em julgado da decisão, é de suma importância verificar que a multa ali aplicada não integra os limites da coisa julgada, pelo que se permite a revisão a qualquer tempo. Neste norte, deve-se esclarecer que a astreintes não integram o pedido da demanda propriamente dita, e nessa condição não se inserem nos limites objetivos da res judicata previsto no artigo 468 do CPC.

Desse modo, uma vez verificado que a multa não cumpriu a sua função coercitiva, ou que o seu valor, além de guardar uma desproporção, enseja um enriquecimento sem causa da parte contrária, mostra-se imperioso o seu redimensionamento, nos termos doa artigo 644 e 461, § 6º, do CPC, sem infrigência ao instituto da coisa julgada, conforme adiante se verá.

Nesse sentido leciona Luiz Guilherme Marinoni1:

"Ora, se a multa já assumiu valor despropositado, e assim não se constituiu mais em meio de pressão sobre a vontade do réu, não há razão para não admitir a redução do seu valor, tornando-o compatível com a situação concreta posta em juízo. Reduzindo-se o valor da multa que se tornou despropositado, e dando-se ao inadimplente nova oportunidade de adimplir a sua obrigação, reafirma-se a função da multa, que é a de compelir o demandado a adimplir, e não de retirar patrimônio do demandado para - o que é pior - permitir o enriquecimento sem qualquer justificativa ao autor".

Neste diapasão, insta ressaltar que a multa cominatória prevista no art. 461, §§ 4º e 5º tem a finalidade de compelir o devedor a realizar a prestação determinada pela ordem judicial. O legislador não estipulou percentuais ou patamares que vinculasse o juiz na fixação da multa diária cominatória. Ao revés, o § 6º, do art. 461, autoriza o julgador a elevar ou diminuir o valor da multa diária, em razão da peculiaridade do caso concreto, verificando que se tornou insuficiente ou excessiva, sempre com o objetivo de compelir o devedor a realizar a prestação devida.

Assim, o valor da multa cominatória pode até ultrapassar o valor da obrigação a ser prestada, porque a sua natureza não é compensatória, porquanto visa persuadir o devedor a realizar a prestação devida. Advirta-se, por fim, que a coerção exercida pela multa é tanto maior se não houver compromisso quantitativo com a obrigação principal. Todavia, deve o magistrado ter a cautela de não inviabilizar a execução propriamente dita, isto é, de não levar o devedor a um estado que o impossibilite de honrar com a obrigação imposta.

Neste diapasão, leciona Vicente Greco Filho, na sua referida obra:

"O instituto da pena pecuniária tem semelhança com a astreinte do direito francês e com a rebeldia à injunction, que significa o contempt of court do direito anglo-saxão e que, além da multa, pode levar à prisão. Tem natureza, portanto, coercitiva e não ressarcitória ( Temas de Direito Processual civil, v. 2, p. 30). Sua finalidade é compulsiva, a de fazer com que o devedor cumpra especificamente o devido, o que é sempre melhor do que a compensação em perdas e danos. Dessa natureza da multa pecuniária, ela pode ultrapassar o valor da obrigação. Não tem o caráter de prefixação das perdas e danos (...). A cominação da multa deve ser forte, mas não deve inviabilizar a execução propriamente dita, que, no caso, é a resultante das perdas e danos". (p. 74).(Grifei).

Portanto, perfeitamente possível, pelo juízo, a modificação do valor da astreinte quando verificada a sua insuficiência ou excesso, sem vincular ao valor da obrigação principal. Devemos coibir que o instituto da astreintes não seja utilizado pela forma diversa da pretendida pelo legislador, isso porque a função da astreintes, em nosso ordenamento jurídico, não é o de substituir às perdas e danos, ou punir a parte (tal como a multa prevista no art. 14 do CPC), mas, sim, coagir ao cumprimento da decisão judicial.

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1 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela específica: arts. 461, CPC e 84, CDC. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 112/113.

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*Coordenadora Geral do escritório Lins Cattoni Advogados

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