A mulher e o trabalho
Minha primeira percepção do universo de trabalho feminino ocorreu quando eu tinha pouco mais de 10 anos
quarta-feira, 10 de março de 2010
Atualizado em 9 de março de 2010 13:20
A mulher e o trabalho
Claudia Wagner*
Minha primeira percepção do universo de trabalho feminino ocorreu quando eu tinha pouco mais de 10 anos.
Lembro-me, com emoção, daquela tarde de maio, quando eu, na cozinha de minha avó, ensaiava meus primeiros passos daquela viagem sem volta para a alma da mulher que um dia eu viria a ser.
Sentada sobre o tampo branco de uma antiga mesa de madeira observava minha avó, entre colheres de pau, ovos e potes de açúcar e farinha. Com sabedoria e determinação ela acendia sua fogueira criativa e cozinhava ideias e morangos que após o tempo de preparo transformavam-se em lindos bolos. Era de fato a paixão pelo trabalho que provocava o cozimento perfeito dos ingredientes.
Durante aquele momento solene eu não entoava sequer uma palavra, pois minha avó dizia que "saber demais podia envelhecer a pessoa antes do tempo, isto é, há uma quantidade determinada de coisas que todas deveríamos saber em cada idade e em cada estágio das nossas vidas."
Minha avó era linda.
Ela sabia ser dona daquele universo de receitas. Conduzia, com maestria, o trajeto dos ingredientes à batedeira. Dizia que qualquer coisa que pudesse acontecer durante o preparo de um bolo podia acontecer, igualmente, com a alma de uma mulher, assim, o excesso de açúcar no bolo, por exemplo, era também um sinal de que algo transbordava no coração da mulher. Sua sabedoria não era daquelas aprendidas nos livros, era aquela herdada das experiências da vida.
Sentar naquela mesa significava, para mim, estar próxima do crescimento. Anos mais tarde constatei que, de fato, foi lá que adquiri o bilhete de viagem para o futuro. Foi naquela cozinha, de azulejos brancos, que firmei o acordo comigo mesma em ser uma mulher trabalhadora, para sempre.
Minha avó fazia bolos para uma confeitaria nobre dos jardins. Este era seu ofício.
Costumávamos escutar o ruído da batedeira com alegria.
O ritmo daquele som era para nós uma canção. Naquelas tardes, junto a minha avó, descobri que a felicidade pode chegar a nós através de sons. Porém, quando a massa era colocada ao forno permanecíamos no mais absoluto silêncio. Ela me dizia que este silêncio permitiria que a massa pudesse se expandir livremente, ou melhor, crescer conforme seria seu destino.
O ofício de fazer era uma parte importante no trabalho de preparação dos bolos, mas era a arte da intuição que celebrava sua forma final.
A intuição é quem alimenta a alma e garante expansão ao nosso trabalho. Como um bálsamo, ela tem a força do tempo, a precisão do cirurgião e a intensidade do amor adolescente.
Até hoje fico em dúvida se naquelas tardes fazíamos poesias ou bolos, mas tenho certeza de que naquelas receitas havia poemas de infinita doçura. Estas efêmeras provas da natureza vieram durante a mística da inspiração.
Minha avó trabalhava com inspiração.
Certo dia, ao final do trabalho, quando retornava para minha casa, parei próxima a confeitaria onde eram vendidos os bolos feitos por minha avó. Eu queria entender onde iam parar aqueles pedaços de afeto que a via sempre preparar.
Observei uma moça muito bonita, vestida impecavelmente e com livros nas mãos preparando-se para saborear um pedaço de bolo de maçã coberto com caramelos feitos de açúcar queimado. Na hora pensei: é melhor avisá-la de que estes caramelos têm a forma de pequenos cacos de vidro, mas jamais cortarão o coração, ao contrário, são capazes de curar qualquer ferida que se faça doer. Não foi preciso avisá-la, ela começou a saboreá-los e desabou em um pranto sem fim, havia perdido seu posto de trabalho em uma importante empresa. Aproximei-me dela e percebi que de perto a cobertura do bolo refletia o estado da alma daquela bela criatura. Pensei em como o trabalho de minha avó era significativo e o quanto o silêncio que fazíamos enquanto o bolo assava permitia que o resultado final fosse surpreendente.
Hoje sou advogada. Comparo muitas versões de minha vida profissional à preparação dos bolos de minha avó e em cada fragmento das histórias que tenho vivido sempre encontro a estrutura do todo. De fato, aquelas memórias são o meu talismã. Troquei histórias daquela cozinha por outras histórias que igualmente transbordam da solene energia da intuição de outras mulheres. Estas que, igualmente, lutam no dia a dia por igualdade de direitos no trabalho.
Há ainda tanto a ser corrigido!
A desigualdade na consideração do trabalho feminino confere ao mundo um movimento calado de vergonha. Em algum momento da história humana o mundo terá que se haver com esta reflexão. E aí sim, aquelas que tentam encontrar lugar, nas frias manhãs, nos diversos pontos de ônibus, carregadas de sacolas e filhos, terão seus dias de trabalho pagos igualmente aos de seus maridos.
Em algum ponto da corrida pela Justiça, seja pela velocidade da história, seja pela urgência do mundo, um raio de sol ou de luar há de rumar obstinadamente a favor das guerreiras mulheres.
Hoje, devo revelar-lhes que não sei fazer aqueles mágicos bolos de minha avó. Acredito que nunca quis fazê-los para não ousar romper aquela magia que me encantou no início da minha adolescência, e que me pertence até hoje.
Carrego comigo, todos os dias de minha vida o talismã que recebi de minha avó. O talismã é a intuição que aprendi a conhecer em mim no ritual de trabalho daquelas tardes intensas. Espalhei farelos daqueles bolos ao redor de cada local onde experimentei a ousadia do desafio.
O desafio da mulher no trabalho é uma viagem sem volta.
Quando nascemos recebemos, sem saber, um bilhete único, só de ida. Ainda não conhecemos a volta. Espero conhecer um dia.
O mais importante, creio eu, é penetrarmos na história pela porta da escuta interior. A escuta interior é o que realmente nos distingue dos demais seres vivos, é a intuição feminina.
O universo do trabalho feminino é uma tela imensa onde a vanguarda da liberdade registra a preciosidade da intuição em cores vibrantes.
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*Gerente jurídica e corporativa da Ferrero do Brasil e integrante do grupo Jurídico de Saias
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