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Da outorga conjugal na fiança

A fiança é garantia fidejussória (pessoal) de qualquer dívida juridicamente exigível. Sua finalidade é garantir o adimplemento de dívida contraída pelo devedor principal, sendo que, na inadimplência deste, o patrimônio do fiador será exposto à execução do credor. Por essa razão, quando o fiador for casado, a fiança requer a autorização ou outorga do cônjuge. Tal exigência já era prevista pelo Código Civil de 1916 que, nos termos do inciso III, do art. 235, dispunha que o marido não poderia, sem o consentimento de sua mulher, qualquer que fosse o regime de bens, prestar fiança.

terça-feira, 9 de março de 2010

Atualizado em 8 de março de 2010 11:34


Da outorga conjugal na fiança

Silvia Ferreira Persechini*

A fiança é garantia fidejussória (pessoal) de qualquer dívida juridicamente exigível. Sua finalidade é garantir o adimplemento de dívida contraída pelo devedor principal, sendo que, na inadimplência deste, o patrimônio do fiador será exposto à execução do credor. Por essa razão, quando o fiador for casado, a fiança requer a autorização ou outorga do cônjuge. Tal exigência já era prevista pelo Código Civil de 1916 (clique aqui) que, nos termos do inciso III, do art. 235, dispunha que o marido não poderia, sem o consentimento de sua mulher, qualquer que fosse o regime de bens, prestar fiança. Da mesma forma, o inciso I, do art. 242, daquele mesmo ordenamento civilista, determinava que "A mulher não pode, sem autorização do marido (art. 251): I - praticar os atos que este não poderia sem o consentimento da mulher".

A doutrina e a jurisprudência sempre se divergiram sobre as consequências da fiança prestada sem a outorga conjugal.

De acordo com Carvalho de Mendonça (1955), "Se o marido prestar fiança sem acôrdo expresso da mulher, não obriga a meação desta, salvo se a fiança fôr prestada em arrematação de rendas públicas, caso êste em que obriga todos os móveis do casal e a parte dos imóveis pertencentes ao marido"1.

Lado outro, Venosa (1997), na vigência do Código Civil de 1916, entendia que a fiança prestada sem outorga conjugal seria ato anulável:

Questão maior nesse tópico é saber se a fiança prestada sem a outorga conjugal é nula ou anulável. Não há que se referir apenas a "outorga uxória" porque esta se refere apenas à autorização da mulher. A conclusão majoritária é tratar-se de nulidade relativa. De fato, o ato admite suprimento judicial e ratificação, só podendo a eiva ser alegada pelo cônjuge preterido ou por seus herdeiros (art. 239). Não pode sustentar essa nulidade o próprio fiador. Essa a opinião que se harmoniza com o sistema do ordenamento e assentada atualmente na jurisprudência.

De outro lado, uma vez decretada a nulidade da fiança, a pecha inquina todo o negócio. Não há nulidade parcial, ficando preservada fiança no tocante à meação do cônjuge fiador. Muitas foram as decisões no passado que sufragaram esse entendimento. Tal não impede, porém, que o cônjuge defenda sua meação por meio de embargos de terceiro, o que não discute a higidez da fiança. Conclui-se que se o consorte pode optar pelo mais, que é demandar a nulidade da fiança, pode pleitear o menos, qual seja, pedir exclusão de sua meação, com base no art. 263, inc. X2.

Percebe-se, portanto, que, para Carvalho de Mendonça, a fiança prestada sem outorga conjugal, era ineficaz com relação ao cônjuge que não havia anuído com a garantia. Por sua vez, para Venosa, a fiança prestada sem a outorga conjugal, na vigência do Código Civil de 1916, era ato anulável.

Nesse mesmo sentido, Sílvio Rodrigues (1999) destaca que a fiança prestada sem a outorga conjugal, na vigência do Código Civil de 1916, apesar de não apresentar tal solenidade determinada pela lei (autorização do cônjuge), não seria ato nulo, mas sim anulável:

Problema que se propõe, neste campo, é o de saber se a fiança, sem outorga uxória, é ato nulo ou anulável. Em favor da nulidade se encontra o argumento legal, pois o art. 145, IV, declara nulo o ato em que for preterida solenidade que a lei declara essencial. Ora, a outorga uxória é solenidade essencial, portanto a fiança, dela desacompanhada, é ato nulo. Ora, o ato nulo é imprescritível, irratificável e pode ser alegado por qualquer interessado, pelo Ministério Público, e deve ser declarado de ofício, pelo juiz, quando encontrar provado. A possibilidade óbvia de ratificação da fiança e o fato de só poder ser argüida pela mulher ou outro interessado, a meu ver, tiram o ato do campo restrito das nulidades absolutas. Aliás, não há lesão a um interesse coletivo. De modo que o mínimo que se poderá dizer é que o ato se situa em um campo intermédio, como a demonstrar que a realidade nem sempre cabe dentro dos quadros teóricos, rigidamente elaborados pela doutrina.3

No que tange à jurisprudência, na vigência do Código Civil de 1916, o entendimento majoritário era no sentido de que a fiança prestada sem a outorga conjugal seria ato anulável, visando tão somente a proteger o patrimônio do cônjuge que não anuiu com a garantia, devendo, pois, esta ser limitada ao patrimônio do fiador, considerando que este não pode se valer de sua própria torpeza para se eximir da obrigação prestada:

Civil - Recurso Especial - Locação - Fiança - Outorga Uxória - Art. 235, III, CC - Regime de Separação Total de Bens - Validade - Dissídio Pretoriano não cortejado - Cabimento pela alínea B do art. 105, III, da CF (clique aqui) - Impossibilidade. 1 - A fiança prestada por mulher casada, em regime de separação total de bens, não é nula, mas anulável e, mesmo assim, apenas para afastar a meação do cônjuge que não afiançou, subsistindo em relação aquele que prestou a garantia. [STJ. Recurso Especial n° 246829-SP. 5ª Turma. Relator Min. Jorge Scartezzino. DJU. 5.6.2000, p. 0024].

Ação Anulatória - Falta de Interesse Processual - Fiança - Ausência de outorga Uxória - Confirmação da Sentença. - Sem as suas condições de admissibilidade, a ação será inexistente e não autorizará qualquer julgamento sobre o pedido, mesmo que para rejeitá-lo. A fiança prestada sem o consentimento do cônjuge é apenas anulável, desonerando apenas os bens do cônjuge prejudicado. [Extinto Tribunal de Alçada de Minas Gerais. Apelação Cível 400.012-8. Relator Mauro Soares de Freitas. DJU 27.8.2003].

Verifica-se, portanto, que a jurisprudência citada acima considerava anulável a fiança prestada sem outorga conjugal. No entanto, eventual declaração de anulabilidade não impedia a produção de efeitos da garantia fidejussória em sua totalidade, na medida em que apenas eram desonerados os bens do cônjuge que não havia autorizado a fiança.

Nesse sentido, o Estatuo da Mulher Casada (Lei 4.121 de 1962), em seu artigo 3° prevê que "Pelos títulos de dívida de qualquer natureza, firmados por um só dos cônjuges, ainda que casados pelo regime de comunhão universal, somente responderão os bens particulares do signatário e os comuns até o limite de sua meação".

Com o advento do atual Código Civil (clique aqui), não há mais razão para a discussão doutrinária e jurisprudencial sobre ser nula ou anulável a fiança prestada sem a outorga conjugal.

O Código Civil de 2002 manteve a necessidade do consentimento do cônjuge para se prestar fiança, com uma relevante modificação, na medida em que o artigo 1647 dispõe que, salvo no regime de separação absoluta de bens, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro prestar fiança4. É que "Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real" (art. 1687 do CC).

Além dessa modificação, o artigo 1649 do Código Civil de 2002 determina expressamente que a fiança prestada sem a outorga conjugal é ato anulável5: "A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art. 1.647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal".

Assim, a fiança deixará de produzir seus efeitos, caso a sua anulabilidade seja decretada por decisão judicial. Havendo a arguição da anulabilidade da fiança dada sem o devido consentimento, essa garantia fidejussória será anulada não apenas quanto à metade do cônjuge que não deu o seu consentimento, mas por inteiro. Ou seja, a fiança deixará de produzir a totalidade de seus efeitos. É exatamente nesse sentido a súmula 332 do STJ que assim dispõe: "A fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a ineficácia total da garantia".

Não obstante o texto normativo do artigo 1649 do Código Civil, há jurisprudência que entende que a fiança prestada sem a outorga conjugal é ato nulo de pleno direito, e não anulável:

FIANÇA. OUTORGA UXÓRIA. AUSÊNCIA. NULIDADE. A fiança prestada sem a outorga do cônjuge é nula de pleno direito, atingindo a garantia por completo, liberando-se tanto o cônjuge que não anuiu como o próprio fiador, nos exatos termos do entendimento hoje pacífico no Superior Tribunal de Justiça. Rejeitar as preliminares e dar provimento ao recurso [TJMG. Apelação cível n° 1.0433.06.175806-9/001. 15ª Câmara Cível. Relator Wagner Wilson. DJU 8.2.2007].

EMBARGOS DE TERCEIRO - INEXISTÊNCIA DE OUTORGA UXÓRIA - NULIDADE DO ATO. A fiança prestada pelo cônjuge sem autorga do outro é passível de nulidade do ato por inteiro - inteligência dos artigos 239, 248, III e 249 do CC/16 e 1647, III do CCB/02, sendo o procedimento dos embargos de terceiro, expediente que visa afastar da constrição judicial o bem da propriedade ou posse do embargante ou do casal, também via própria para conhecer da nulidade da fiança materializada sem a outorga uxória [TJMG. Apelação Cível n° 2.0000.00.482270-2/000. 6ª Câmara Cível. Relator Sebastião Pereira de Souza. DJU 28.9.2005].

Lado outro, a doutrina abaixo, apesar da promulgação do Código Civil de 2002, entende que a fiança prestada sem outorga conjugal não seria ato anulável, mas sim ineficaz no que tange à meação do cônjuge que não deu sua vênia:

[...] o reconhecimento da nulidade traz injustificável benefício ao garantido e ao garantidor, em prejuízo do credor, que pode ficar impossibilitado de satisfazer seu crédito. Sedutora é a vertente jurisprudencial que se inclina por entender, ainda que contra dispositivo expresso de lei (CC 1.649), que a fiança conferida sem a vênia conjugal não é nula e tampouco anulável, mas válida, tendo apenas sua eficácia reduzida à meação do fiador. Ou seja, é ineficaz somente em relação ao cônjuge anuente.

Em sede de responsabilidade patrimonial dos cônjuges, mister atentar que ao menos um artigo do Estatuto da Mulher Casada não se encontra revogado (EMC 3°): Pelos títulos de dívida de qualquer natureza, firmado por um só dos cônjuges, ainda que casados pelo regime de comunhão universal, somente responderão os bens particulares do signatário e os comuns até o limite de sua meação. Essa norma permanece no sistema jurídico, nunca foi derrogada, pois jamais outra lei dispôs sobre o tema. Inclusive sua vigência é referendada na lei civil ao afirmar, ainda que de forma pouco clara, no mesmo sentido (CC. 1.663 § 1°): as dívidas contraídas no exercício da administração obrigam os bens comuns e particulares do cônjuge que os administra, e os do outro na razão do proveito que houver auferido6.

No entanto, não se pode concordar com o entendimento citado acima. Isso porque, o artigo 1649 do Código Civil atual prevê expressa e claramente que a fiança dada sem outorga conjugal é ato anulável. Outrossim, o artigo 176 desse mesmo ordenamento civilista confirma a anulabilidade da fiança prestada sem o consentimento do cônjuge, ao dispor que: "Quando a anulabilidade do ato resultar da falta de autorização de terceiro, será validado se este a der posteriormente".

Assim, nos termos dos artigos 1649 e 16507 do Código Civil de 2002, a fiança prestada sem a outorga conjugal poderá ser anulada pelo cônjuge que não concedeu autorização para tanto ou pelos herdeiros dele, sendo que o prejudicado com a decisão judicial que anulou a garantia fidejussória terá direito regressivo contra o cônjuge que prestou a fiança sem a outorga conjugal. Ademais, obviamente, o cônjuge que proporcionou a invalidade da fiança não tem legitimidade para arguir a anulabilidade da garantia, na medida em que não pode se valer de sua própria torpeza8.

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1 CARVALHO DE MENDONÇA, Manuel Inácio. Contratos no direito civil brasileiro. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, t. II, 1955, p. 824.

2 VENOSA, Sílvio de Salvo. op. cit., p. 301.

3 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil. 24ª ed. São Paulo: Saraiva. v. VI., 1999, p. 137/138.

4 Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta:

[...]

III - prestar fiança ou aval;

5 Art. 1.649. A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art. 1.647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal.

6 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 196/197.

7 Art. 1.650. A decretação de invalidade dos atos praticados sem outorga, sem consentimento, ou sem suprimento do juiz, só poderá ser demandada pelo cônjuge a quem cabia concedê-la, ou por seus herdeiros.

8 AÇÃO DE DESPEJO. OUTORGA UXÓRIA. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DA FIANÇA PELO PRÓPRIO FIADOR. IMPOSSIBILIDADE. NEGÓCIO JURÍDICO PERFEITO. SENTENÇA MANTIDA. I - A alegação de nulidade da fiança não favorece o próprio garantidor, porquanto estaria valendo-se de sua própria torpeza, cabendo somente ao cônjuge ou aos herdeiros prejudicados tal argüição, o que não é o caso [TJMG. Apelação Cível n° 1.0024.06.097996-0/001. 13ª Câmara Cível. Relator Alberto Henrique. DJU. 6.11.2008].

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*Advogada do escritório Homero Costa Advogados









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