O Supremo, supremo?
A decisão do STF no caso Cesare Battisti se apresenta como fonte produtora de grandes desafios na compreensão da dialética jurídica, especialmente sobre o regime de partição de competência dos órgãos do Estado.
sexta-feira, 5 de março de 2010
Atualizado em 4 de março de 2010 12:06
O Supremo, supremo?
Luis Carlos Alcoforado*
A decisão do STF no caso Cesare Battisti se apresenta como fonte produtora de grandes desafios na compreensão da dialética jurídica, especialmente sobre o regime de partição de competência dos órgãos do Estado.
A formação de juízos jurídicos se processa em ambientes cognitivos abertos ao diálogo com categorias de valor, segundo o raciocínio legal, moral e ético, desenvolvido por agentes que têm competência para produzir decisões, na forma de atos.
As normas jurídicas que regem a complexa questão se acionam segundo a vontade política capaz de confeccionar a solução para superar conflito de interesse, prospectada por ativismo legal, fundamento necessário à validade de decisão judicial.
A resposta que o STF deu ao caso Battisti demonstrou que o ato administrativo produzido pelo Executivo se submete ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, em homenagem ao Estado democrático de direito.
O erro do STF não repousa, contudo, na decisão de mérito que infirmou o ato do ministro da Justiça, mediante o qual Battisti obteve o status de refugiado político em janeiro, em contrariedade à posição do Comitê Nacional para os Refugiados - CONARE de negar o refúgio.
O vacilo do STF consiste no fato de ter tergiversado sobre a instituição que tem a competência para definir o destino de Cesare Battisti, como se admitisse a existência de outra instância política ou jurídica que dispusesse de legitimidade para apresentar a solução final.
Hesitante, o STF causou perplexidade, desgovernado pela insegurança jurídica, numa construção técnica mediante a qual deixou de firmar sua exclusiva competência, competência do Poder Judiciário, prevista no art.5º, XXXV, da Constituição Federal (clique aqui), para exercer o controle jurisdicional relacionado a todo e qualquer ato produzido ou que venha a ser construído sobre a situação jurídica de Battisti.
Todo ato jurídico sujeito à jurisdição nacional se subordina ao controle da legalidade, exercido pelo Poder Judiciário, quando ativado ou provocado.
E, para o exercício do dever/poder da análise da legalidade, é irrelevante a natureza jurídica do ato.
Inexistem atos privilegiados que se submetem a regime jurídico de exclusão, como se estivessem blindados contra a vigilância e a análise de suas necessárias qualidades jurídicas, pelo Poder Judiciário, salvo se vigente modelo de exceção de franquia dos direitos constitucionais.
O fato de haver sujeitos privilegiados, selecionados pela lei, a quem cabe a produção de certos e determinados atos jurídicos, prerrogativa baseada na competência, não desautora a função do STF.
Competência constitucional é poder exclusivo e reservado, insuscetível de delegação.
O Supremo é o último bastião da legalidade, limite da consciência ideológica da Constituição Federal, razão por que, no exercício da jurisdição, concentra a mais alta prerrogativa de decidir sobre a legalidade de todo ato jurídico que rivaliza com os princípios e preceitos constitucionais.
A concessão de asilo, um dos princípios que movem e regem o Estado brasileiro (art.4º, X, CF), nas relações internacionais, constitui ato jurídico interno, sob o exercício da soberania com repercussão externa, porquanto produz efeitos expansivos que ultrapassam o perímetro onde se afirma a lei nacional.
O processo de concessão de asilo político se submete ao regime jurídico que exige, sempre, fundamentação, atuação segundo a vinculação às normas jurídicas nacional e internacional, sem, pois, diálogo com o casuísmo ou a discricionariedade.
Basta atentar para o fato de que o ato de concessão de asilo político exige o concurso de processo administrativo, sob a movimentação de interesses contraditórios, incompatível com o exercício do poder discricionário, situação em decorrência da qual se livraria do jugo do controle do judiciário, como professam os administrativistas mais conservadores.
A própria Constituição Federal, no inciso LI do art. 5º, prescreve que "não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião".
Como se impõe sejam vasculhadas as condições e as causas para a concessão da proteção do direito de asilo, é temerária a tese de que se trata de ato discricionário, haja vista que o exercício do poder é limitado e não se dá sob o vazio de fundamentos, como se fossem indiferentes a lei e o fato, por simples impulso arbitrário do agente.
Em matéria de asilo ou refúgio, inexiste ato praticado por agente do Poder Executivo alheio ao controle judicial, mesmo sob a alegação da disjunção funcional de competência constitucional.
No caso, pessoas protagonizam conflitos de interesses, rivalizados por teses jurídicas contrapostas, situação por força da qual se realça a competência do Poder Judiciário.
Decidido o destino de Cesare Battisti pelo presidente da República, chefe do Poder Executivo, mediante ato jurídico, abre-se à pessoa prejudicada, seja de direito público externo (República da Itália) ou estrangeiro, a faculdade do exercício do direito constitucional de ação, como garantia que a República Federativa do Brasil confere como princípio fundamental.
Portanto, é de extrema timidez a construção da tese de que o ato que concede o asilo tem caráter especial e discricionário, em cujo mérito há vontade política do agente, insuscetível de intervenção jurisdicional, sempre que houver provocação, sob a alegação de ameaça ou violação a direito.
Ato jurídico, independentemente da natureza, se, ao tutelar ou abrigar um direito, desabastece patrimônio material ou moral, se submete ao regime de controle jurisdicional, como imperativo da Constituição Federal.
E, nas questões regidas por fundamentos constitucionais, o Supremo Tribunal Federal é supremo, sem espaço para a discussão de conflito de competência ou de atribuição, ancorado pela vontade constituinte que conferiu, expressamente, ao Poder Judiciário a missão jurisdicional, inafastável ainda que o presidente da República, mesmo que no exercício de prerrogativa funcional, se manifeste por meio de ato jurídico, capaz de prejudicar direitos.
O Supremo é supremo? Muito mais: é o único!
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*Advogado do escritório Alcoforado Advogados Associados
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