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O caso dos médicos de Mato Grosso do Sul

Infelizmente, mais uma notícia estarrecedora foi trazida ao conhecimento público pela mídia nacional no dia 25 de fevereiro de 2010. Relatando o inacreditável episódio no qual dois médicos obstetras (um deles o que acompanhou a gestação desde o início e o outro o plantonista do hospital que estava de trabalho no dia dos fatos) entraram em luta corporal, durante a realização do parto de uma criança, para decidir qual deles efetuaria o procedimento.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Atualizado em 3 de março de 2010 13:33


O caso dos médicos de Mato Grosso do Sul

Sérgio de Oliveira Netto*

Infelizmente, mais uma notícia estarrecedora foi trazida ao conhecimento público pela mídia nacional no dia 25 de fevereiro de 2010. Relatando o inacreditável episódio no qual dois médicos obstetras (um deles o que acompanhou a gestação desde o início e o outro o plantonista do hospital que estava de trabalho no dia dos fatos) entraram em luta corporal, durante a realização do parto de uma criança, para decidir qual deles efetuaria o procedimento. E, ao que tudo indica, esta demora na realização do parto, teria causado o óbito da criança por falta de oxigenação.1

Afora o lamentável fim da história, cuja adjetivação moral não será aqui consignada (tais qualificações seriam impublicáveis), no campo jurídico restaria se indagar se estes médicos podem ser responsabilizados pelo falecimento da criança.

Deixemos, assim, de lado a questão atinente ao crime de lesões corporais. Que, certamente, um deles será responsabilizado. Na hipótese, aquele que iniciou a agressão, posto que aquele que desta injusta agressão se defendeu atuou em legítima defesa (CP, art. 25 e 129 - clique aqui).

O exame mais complexo envolve a eventual responsabilização de um destes médicos (ou dos dois) pelo indesculpável óbito desta criança.

Pelo crime de homicídio certamente que não podem responder. Pois, apesar dos direitos do nascituro serem assegurados desde a concepção, a personalidade civil somente é obtida com o nascimento com vida (CC, art. 2° - clique aqui).2 E só a partir deste instante (ou pelo menos desde que já tenha sido iniciado o trabalho de parto) é que se pode cogitar da prática do crime de homicídio contra uma pessoa (na acepção jurídica do termo pessoa).3

Também não se poderia cogitar da prática do crime de omissão de socorro (CP, art. 135). Posto que os médicos, na condição em que se encontravam (profissionais a serviços do Sistema Único de Saúde e responsáveis pela realização daquele procedimento), tinham a obrigação de evitar a ocorrência do resultado. E não simplesmente tinham a obrigação de prestar socorro, ou de chamar a autoridade pública para atender aquela paciente.

Em princípio, portanto, restaria caracterizada a prática do crime de aborto, listado no CP, art. 125: Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos.

Entrementes, o crime de aborto é um crime de ação, ou seja, que exige a prática de conduta positiva (ativa) para sua perpetração. O que não ocorreu na situação em destaque, posto que os médicos não realizaram conduta alguma. Pelo contrário, deixaram de adotar os protocolos médicos recomendados para o atendimento daquela gestante.

Surgiria, assim, a possibilidade de imputação do próprio crime de aborto, com dolo eventual, cometido por omissão. Explique-se. O Código Penal assevera que há crime doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo (CP, art. 18, I).

No caso específico, as circunstâncias divulgadas pela mídia conduzem ao entendimento de que os médicos, ao partirem para as vias de fato, literalmente deixaram de prestar a adequada atenção à gestante. Assumindo, desta forma, o risco da ocorrência da morte do feto (que necessitava de atendimento naquele instante).

À toda evidência, neste cenário, a responsabilização destes médicos (ou de apenas um deles) seria o resultado da combinação do CP, art. 125 somado ao art. 13, §2° (que trata das situações nas quais a omissão é penalmente relevante). Noutras palavras, o enquadramento penal seria feito fazendo-se uso da denominada norma de extensão (adequação típica mediata). Nesta hipótese, o CP art. 13, §2°.4

Vale dizer, nada impede que o crime de aborto que, em regra, carece de uma atuação ativa para sua execução, possa também ser concretizado por meio de uma conduta negativa (omissiva), deixando-se de fazer algo que era esperado daquele que, em razão de certas condições, estava numa posição de garantidor da não ocorrência do resultado. Ou seja, os médicos que ali estavam para acompanhar o parto, tinham a incumbência legal de impedir que o nascituro falecesse (ou evitar já nascesse sem vida).

Se assim não procederam, tornam-se passíveis de responsabilização pelo evento fatídico: morte do feto pela sonegação do atendimento esperado.5

Certamente que ainda existe a possibilidade de, eventualmente, um dos médicos envolvidos alegar que entrou em luta corporal com o outro médico para salvar a vida gestante e da sua filha. Porque ilustrativamente, o profissional que queria realizar o parto estava utilizando procedimento errôneo, que poderia gerar a morte da gestante ou do feto. E, não tendo alternativa, teria agredido o colega de profissão visando tomar a condução do procedimento de parto da maneira mais segura. Caracterizando, neste contexto, o estado de necessidade em favor de terceiro (da gestante e do nascituro), nos moldes do CP, art. 24.

Tais nuances, entrementes, deverão ser objeto de apuração no inquérito policial instaurado.

Mas o fato que parece ser irretorquível é que, pelo menos um dos médicos envolvidos cometeu o crime de aborto sem o consentimento da gestante, por omissão e com dolo eventual (assumindo o risco da sua ocorrência). Cuja imputação na prefacial acusatória seria o somatório dos arts. 125 c/c art. 18, I c/c art. 13, §2° em uma de suas alíneas (a ser melhor esclarecido durante a investigação).

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1 A briga de dois médicos pode ter causado a morte de um bebê durante o parto no Hospital Municipal de Ivinhema, no Mato Grosso do Sul. A discussão, que teria incluído socos, ocorreu dentro do centro cirúrgico no hospital, onde o parto era realizado, na última segunda-feira. O pai da criança, uma menina, registrou boletim de ocorrência na polícia. O atestado de óbito indica sofrimento fetal e anoxia - falta de oxigenação decorrente de demora ou complicação no parto.

Segundo Gilberto de Melo Cabreira, 32 anos, pai do bebê morto, a mulher dele, Gislaine de Matos Rodrigues, 32 anos, chegou ao hospital no domingo e ficou em observação. Na segunda-feira, por volta das 17h30m, ela entrou em trabalho de parto. A previsão era de que a criança nascesse por volta das 23h do mesmo dia. O casal queria que o parto fosse feito pelo obstetra Orozimbo Ruela de Oliveira, 49 anos, responsável pelo acompanhamento da gestação. Por isso, o obstetra foi até o hospital, fora de seu horário de plantão. Cabreira contou que, durante o parto, a sala foi invadida pelo médico plantonista Sinomar Ricardo, 68 anos, que tentou impedir que o colega continuasse com o procedimento... Os médicos começaram a discutir dentro da sala de cirurgia e se agrediram na frente da paciente. A mulher foi retirada da sala e aguardava em outro local, até que um médico fosse chamado para terminar o parto, o que só aconteceu por volta da 1h15m da madrugada, aproximadamente 1h30m depois do previsão. O bebê nasceu morto... (https://oglobo.globo.com/cidades/mat/2010/02/25/medicos-brigam-dentro-da-sala-de-parto-bebe-nasce-morto-no-mato-grosso-do-sul-915934781.asp)

2 Código Civil: Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

3 Sujeito passivo do homicídio é alguém, ou seja, qualquer pessoa... Por força do disposto no art. 123 do CP, tem-se entendido que o início da existência da pessoa humana ocorre "durante o parto", embora ainda se discuta qual o momento exato de acontecimento... (Julio Fabbrini Mirabete, in Código Penal Interpretado, ed. Atlas, 6ª edição, p. 925)

4 Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

...

§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;

b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;

c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

5 Logo pela redação inicial do artigo, podemos observar que a lei penal exige a conjugação de duas situações: o dever de agir (elencado nas alíneas a, b e c) com o poder de agir. O dever de agir, apontado nas alíneas do § 2º do art. 13 do Código Penal, é considerado... um dever especial de proteção... Frisamos a lei, quando elenca as situações nas quais surge o dever de agir, fazendo nascer daí a posição de garantidor... O que a lei faz é despertar o agente para a sua obrigação, e se ele realiza tudo o que estava ao seu alcance, a fim de evitar o resultado lesivo... Concluindo, a lei exige que o garantidor atue a fim de tentar evitar o resultado. Se não conseguir, mesmo depois de ter realizado tudo o que estava a seu alcance, não poderá ser responsabilizado... (Rogério Greco, "Curso de Direito Penal", volume I, editora Impetus, 6ª edição, 2006, p. 248/249)

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* Procurador Federal. Professor do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE (SC)





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