Lei Complementar 118/2005 - Instituição de medida cautelar fiscal ex officio
Com a publicação da Lei Complementar nº 118, de 9 de fevereiro de 2005, foi introduzida importante alteração no Código Tributário Nacional.
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2005
Atualizado às 08:02
Lei Complementar 118/2005 - Instituição de medida cautelar fiscal ex officio
André Guskow Cardoso*
Com a publicação da Lei Complementar nº 118, de 9 de fevereiro de 2005, foi introduzida importante alteração no Código Tributário Nacional. Foi acrescido o art. 185-A, que estabelece que "Na hipótese de o devedor tributário, devidamente citado, não pagar nem apresentar bens à penhora no prazo legal e não forem encontrados bens penhoráveis, o juiz determinará a indisponibilidade de seus bens e direitos, comunicando a decisão, preferencialmente por meio eletrônico, aos órgãos e entidades que promovem registros de transferência de bens, especialmente ao registro público de imóveis e às autoridades supervisoras do mercado bancário e do mercado de capitais, a fim de que, no âmbito de suas atribuições, façam cumprir a ordem judicial".
O parágrafo primeiro do novo dispositivo determina que "a indisponibilidade de que trata o caput deste artigo limitar-se-á ao valor total exigível, devendo o juiz determinar o imediato levantamento da indisponibilidade dos bens ou valores que excederem esse limite". Já o parágrafo segundo dispõe que "Os órgãos e entidades aos quais se fizer a comunicação de que trata o caput deste artigo enviarão imediatamente ao juízo a relação discriminada dos bens e direitos cuja indisponibilidade houverem promovido".
Com a inovação legislativa, tem-se a possibilidade de concessão ex officio, pelo juiz da execução fiscal, de medida acautelatória destinada a tornar indisponíveis os bens de devedor. Sem a pretensão de esgotar o assunto no presente texto, pode-se prever que a questão poderá suscitar alguns problemas na sua aplicação.
Em primeiro lugar, a alteração legislativa amplia de forma significativa os poderes a serem exercidos pelo juiz na execução fiscal. Em tese, poderá surgir dúvida acerca da validade das alterações implementadas pela Lei Complementar nº 118/2005, dada a sua incompatibilidade com o princípio da inércia da jurisdição (ne procedat judex ex officio).
Além disso, pode haver dúvida frente ao princípio da proporcionalidade: o parágrafo primeiro do art. 185-A assume francamente o risco de haver a indisponibilidade de bens em valor superior ao do crédito tributário. Ainda que se preveja a automática redução da indisponibilidade assim que constatado o excesso, a mera determinação da indisponibilidade inicial já é apta a causar dificuldades de difícil reparação ao executado (cogite-se, p. ex., de restrições de crédito bancário). Portanto, a medida por ir muito além do que seria necessário para garantir o interesse fiscal.
Também pode haver invalidade em face da presunção de boa-fé que deve presidir as relações entre a Administração e os cidadãos. A indisponibilidade ampla de bens é medida de elevado cunho punitivo, que apenas pode ser justificada diante de situações excepcionais. É duvidosa a possibilidade de uma objetivação dessa responsabilidade patrimonial, decretando-se medida tão drástica em face da mera ausência de oferecimento de bens à penhora e da suposta ausência de localização de bens penhoráveis. Note-se que a providência é similar à que se adota em casos de improbidade administrativa ou de gestão fraudulenta de instituições financeiras (ou seja, o executado que não oferece bens à penhora receberá tratamento equiparável aos indivíduos que praticam graves violações da ordem jurídica). A medida pode até mesmo estimular a ineficiência dos órgãos de cobrança. Não é fantasioso supor que, em lugar de buscar efetivamente bens penhoráveis, os órgãos envolvidos na cobrança apenas indicarão o cabimento da medida de indisponibilidade como forma de constrangimento do executado. Afinal, a lei não exige um certo procedimento prévio de busca de bens penhoráveis antes de se recorrer à medida extrema (ao contrário, p. ex., do que se passa com a citação por hora certa ou por edital, em que há diversas exigências prévias como garantia da posição do executado). Sob certo ângulo, pode-se opor a essa medida a orientação jurisprudencial já pacificada acerca da invalidade de meios indiretos de cobrança de tributos (como a vedação de inscrição no Registro de Comércio ou de emissão de notas fiscais).
E mais: é pacífico o cabimento de exceção de pré-executividade nas execuções fiscais. A aplicação indiscriminada da medida poderia frustrar o direito do executado de, em certos casos, obter o reconhecimento da ausência de causa para a execução fiscal sem submeter seus bens a qualquer constrição.
Por último, podem surgir dúvidas quanto à validade da alteração legislativa, também tendo em vista o princípio consagrado pelo art. 620, do CPC, que assegura que a execução tem de ser produzida do modo menos gravoso para o devedor. Parece evidente que é necessária a ponderação dos valores e princípios envolvidos, a fim de se determinar a possibilidade (ou não) de adoção de medidas tão drásticas, de ofício, por parte do juiz da execução fiscal.
Desse modo, caso se repute válido, o novo artigo 185-A, do Código Tributário Nacional suprimirá a importância da medida cautelar fiscal prevista na Lei nº 8.397/1992 . Afinal, na medida em que os efeitos que seriam obtidos com a medida cautelar fiscal (indisponibilidade dos bens do requerido, até o limite da obrigação - art. 4º, da Lei nº 8.397/1992) já são produzidos automaticamente caso não haja pagamento do valor pelo devedor ou nomeação de bens à penhora, perde o sentido requerer-se a medida cautelar fiscal após o ajuizamento da execução fiscal. Seria até mesmo contraditório propor medida cautelar fiscal (que depende de prova literal da constituição do crédito fiscal e de prova documental da existência de conduta do devedor destinada a ocultar, dilapidar ou comprometer a liquidez de seu patrimônio), quando a simples ausência de pagamento e nomeação de bens para garantir o juízo por parte do devedor já produz os mesmos efeitos.
Com isso, a importância da medida cautelar fiscal instituída pela Lei nº 8.397/1992 será limitada a situações residuais, que não se enquadrem na hipótese prevista no citado art. 185-A do CTN.
Essa aparente contradição releva uma circunstância essencial. Há nítido privilégio outorgado aos créditos fiscais quando de sua cobrança em juízo. Trata-se de condição não prevista no processo comum de execução, aplicável aos débitos em geral.
A garantia especial aos créditos fiscais fica ainda mais evidente quando se comparam os requisitos necessários para a concessão de medida cautelar fiscal e aqueles os requisitos previstos pelo art. 185-A, do CTN. No primeiro caso, é necessário que o Fisco demonstre, de forma objetiva e inequívoca, que o devedor está adotando condutas aptas a ocultar ou dilapidar o seu patrimônio ou ainda dificultar o sucesso da cobrança judicial do crédito tributário, além da própria regular constituição do crédito. No segundo, basta que o devedor citado, não pague o valor exigido na execução fiscal e nem nomeie bens à penhora e que não sejam encontrados bens penhoráveis (aliás, sem qualquer requisito específico quanto à forma de busca desses bens). A nova regra busca suprimir até mesmo a garantia mínima oferecida pela previsão legal de hipóteses de cabimento da medida cautelar fiscal.
Ademais, a medida cautelar fiscal prevista na Lei nº 8.397/1992 prevê expressamente a possibilidade de substituição da medida cautelar deferida pelo juiz pela prestação de garantia correspondente ao valor do crédito pretendido pelo Fisco (art. 10). Não há qualquer ressalva com relação à possibilidade de cessar a ordem de indisponibilidade de bens prevista no art. 185-A, do CTN, o que não pode ser entendido como vedação. A qualquer tempo, se o devedor fornecer garantias suficientes para o prosseguimento da execução fiscal, formalizando-as perante o juízo da execução fiscal, todas as medidas determinando a indisponibilidade de seus bens devem ser levantadas.
As conseqüências previstas no art. 185-A, do CTN, constituem medida evidente de pressão sobre os aqueles que possuem débitos perante o Fisco. Tais sujeitos poderão ter todo o seu patrimônio tornado indisponível, caso não paguem ou nomeiem bens para garantir execução de crédito fiscal. Embora tenha em vista tornar mais raras as situações em que a execução fiscal permanece paralisada por falta de nomeação ou localização de bens penhoráveis (o que não é, em si, um objetivo reprovável), a medida é apta a frustrar garantias fundamentais do executado por créditos tributários. Consagra providências compatíveis apenas com situações de comprovada má-fé, que não podem ser presumidas com o propósito de criar uma objetivação simplista da hipótese de cabimento da indisponibilidade ampla de bens do executado.
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*Advogados do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados