A prática reiterada do feminicídio
Uma vez que a pena não se apresenta como caráter intimidativo, deve-se buscar outra fonte para encontrar uma solução que possa, ao menos, suavizar a ocorrência de tantos feminicídios.
domingo, 31 de março de 2019
Atualizado em 28 de março de 2019 12:06
Os meios de comunicação de fácil acesso e longo alcance vêm noticiando, reiteradamente, a prática de crimes de feminicídio, tanto na forma tentada como consumada. As notícias divulgadas, acompanhadas de fotos que causam repúdio ao primeiro olhar, dão conta do impacto provocado na opinião pública que, por sua vez, sem fronteiras, vai sedimentando cada vez mais sua opinião recriminadora. Segundo o jornal Folha de São Paulo, durante o ano de 2019, "ao menos 119 mulheres foram mortas no Brasil em janeiro por causa de seu gênero; outras 60 sobreviveram."1
É, realmente, um número demasiadamente exagerado, levando-se em consideração que o tipo penal do feminicídio é de construção recente, com pena mais exacerbada que o do homicídio, também revestido do mesmo caráter de hediondez e que tem por finalidade a proteção da mulher, no tocante à violência doméstica e familiar como, também, ao menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
O surto existente, acontecendo em várias cidades do país, é de difícil explicação no campo da criminologia, que busca equacionar os novos comportamentos humanos que geram reações agressivas praticadas contra namoradas, companheiras ou esposas. É certo que a sociedade experimenta mutações constantes e seu dinamismo traz uma nova realidade de convivência, muitas vezes atropelando valores e bens jurídicos indisponíveis, como a vida humana. Mas, de antemão, fica um questionamento delimitado pelo labirinto existente entre os pensamentos que giram em torno de Eros e as deliberações de Tânatos.
Apesar de a opinião pública ter já externado seu repúdio e aversão a tais condutas praticadas contra as mulheres, considerando-as intoleráveis, apesar da existência de lei específica para o controle social de tal ilícito, o que se vê na realidade é a reiteração do crime em modalidades agressivas diferenciadas, na maioria delas com requintes de crueldade. Parece até que o agressor, sabedor que é do alto grau de periculosidade que reveste sua conduta e da exasperada pena cominada pelo tipo penal, mesmo assim, faz opção pelo ato de violência, não se importando com as consequências penais referentes ao seu status libertatis. A título de curiosidade, a prática de homicídio simples prevê uma pena de 6 a 20 anos de reclusão, enquanto que no feminicídio a pena é de 12 a 30 anos, também de reclusão, sem contar ainda com os acréscimos em razão do estado gestacional da vítima, se for praticado diante de descendentes ou ascendentes, assim como em razão de descumprimento de medida protetiva.
Desta forma, cai por terra a teoria inibidora da criminalidade se ao delito for imposta uma pena mais gravosa. Não tem qualquer aplicação ao presente caso. O mesmo fenômeno ocorreu quando da vigência da lei dos Crimes Hediondos, que surgiu como se fosse a tábua de salvação no campo penal, pois ditou normas a respeito do caráter de hediondez do crime, expondo-o como uma conduta ignóbil e repulsiva, que provoca a indignação seguida da reprovação unânime da sociedade. Em razão disso, carregou um plus legislativo diferenciado, que permitia ao Judiciário- segregar provisoriamente - negar o benefício da liberdade provisória, o pagamento da fiança - indeferir qualquer pleito com relação à graça, anistia, indulto e - determinar o cumprimento da pena em regime mais rigoroso.
Apesar de se apresentar como norma de endurecimento penal, a lei ordinária foi se atritando com o regramento constitucional e a consequência foi a suavização do preceito que previa o direito de se obter a liberdade provisória e o regime fechado integral de cumprimento da pena. Tais benefícios praticamente retiraram o rótulo de hediondo do crime, que passa para a vala comum, com tratamento idêntico aos demais, justificando-se a prisão não mais pela gravidade da ação do agente e sua imediata reprovação popular, mas pelos parâmetros utilizados para os crimes comuns.
Uma vez que a pena não se apresenta como caráter intimidativo, deve-se buscar outra fonte para encontrar uma solução que possa, ao menos, suavizar a ocorrência de tantos feminicídios. Por se tratar, em regra, de um crime que envolve relacionamento entre homem e mulher, o responsável pela agressão é o atual ou ex-companheiro da mulher e, como pano de fundo, surge com acentuada frequência, o inconformismo com o término da relação. Daí a necessidade de a mulher buscar auxílio nas delegacias especializadas, desde quando perpetrada a primeira agressão, mesmo que seja catalogada como natureza leve. E, a partir desta quebra de confiança, ficar atenta para próximas investidas, oportunidade em que poderá solicitar o concurso da justiça para ser beneficiada com medidas protetivas adequadas, previstas na lei Maria da Penha. É muito comum a mulher deixar passar in albis a comunicação não só de uma como de várias outras agressões e quando ocorre a derradeira, toma-se conhecimento que há muito tempo figurava como vítima, sem qualquer proteção.
Talvez, para o momento, seja esta conscientização necessária para estancar tantos crimes desnecessários, observando que, com a comunicação, o agressor será identificado e poderá, se quiser, frequentar grupos de auxílio para entender a ilicitude de sua conduta.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.