Desjudicialização da execução: análise a partir do PL 6204/19
segunda-feira, 5 de abril de 2021
Atualizado às 08:50
O tema da desjudicialização da execução vem sendo discutido há algum tempo no cenário jurídico brasileiro, mas ganhou maior destaque com o PL 6204/19, de autoria da Sen. Soraya Thronicke, que objetiva atacar e solucionar gradativamente o problema do acúmulo de demandas judiciais de execução, considerado o grande problema para uma prestação jurisdicional mais célere e efetiva. A ideia central do projeto de lei consiste em atribuir ao chamado agente de execução a realização de atos executivos na esfera extrajudicial, mas viabilizando o controle do Poder Judiciário em relação aos atos executivos, sempre que provocado pelas partes (suscitação de dúvida) ou pelo denominado agente de execução (consulta), no sentido de desonerar o Estado e tornar o procedimento executivo mais eficiente.
Os escopos do projeto de lei se mostram positivos e até mesmo necessários no atual contexto da realidade do Poder Judiciário brasileiro, porém é preciso considerar diferentes perspectivas e aspectos quanto à implementação da desjudicialização da execução para evitar eventuais lesões a direitos e garantias constitucionais.
O movimento de desjudicialização dos conflitos é uma tendência mundial, considerando a crescente necessidade de melhora na qualidade da prestação jurisidicional visando a um serviço mais célere, com maior eficiência e qualidade, tendo sido criado em dez/18 o Comitê Interinstitucional da Agenda 20301 no Poder Judiciário.2
Tal necessidade é ainda mais evidente no campo do processo de execução, pois, considerando o contexto de crise econômica e inadimplemento de obrigações, o número de processos de execuções corresponde a mais de 50% das ações em trâmite no Poder Judiciário brasileiro, sejam de cunho civil ou fiscal. Essa realidade gera um cenário de morosidade e ineficácia do processo de execução pátrio, o que não se pode admitir no modelo do Estado Democrático de Direito, especialmente com a previsão do atual diploma processual da constitucionalização do processo, pois em seus dispositivos inaugurais (arts. 1º a 12) estão dispostas as normas fundamentais, nas quais se percebe claramente a preocupação com a sintonia do processo com as regras e princípios constitucionais.3
É preciso considerar que o processo de desjudicialização é um movimento iniciado há 16 anos com a lei 10.931/04, que instituiu a retificação do registro imobiliário sem a atuação do Estado-juiz, com a edição de outras leis posteriores, tais como: inventário, separação e divórcio (lei 11.441/07), da retificação de registro civil (lei 13.484/17) e da usucapião instituída pelo Código de 2015 (art. 1.071 - LRP, art. 216-A).
É nesse contexto que surge o PL 6.204/194 de autoria da Sen. Soraya Thronicke que, resumidamente, objetiva atacar e solucionar gradativamente o problema do acúmulo de demandas judiciais, consistente no que o CNJ bem denomina de "gargalo" do Judiciário, de acordo com o "Justiça em Números" de 2020.5 Outro objetivo do projeto de lei6 é reduzir custos para o Estado, simplificando o procedimento executivo, tornando-o mais eficiente e célere a recuperação de créditos.7
Quanto à constitucionalidade do projeto, o entendimento de parte da doutrina8 é de que a desjudicialização das execuções constitui uma opção legislativa que não viola qualquer garantia constitucional. Com efeito, o direito fundamental de acesso à jurisdição (CF, artigo 5º, XXXV) adquire no sistema atual uma ressignificação, pois ele não se limita mais às atividades exclusivas do Poder Judiciário.
O direito fundamental do acesso à jurisdição assegura direito de ingresso ao Poder Judiciário (aspecto formal) e que a resposta jurisdicional seja célere, justa e efetiva (aspecto material). Desta forma, qualquer tentativa de redução da litigiosidade repetitiva será oportuna, visto que assegurará com maior sucesso os valores materiais do acesso à justiça. Além disso, o movimento de desafogar o Poder Judiciário significa retirar determinadas atividades meramente burocráticas e que atrapalham o exercício da função jurisdicional.9
Já há no sistema jurídico brasileiro suficientes exemplos de jurisdição privada e de desjudicialização, como a arbitragem, cuja lei instituidora do procedimento (lei 9.307/96 com alterações e acréscimos promovidas pela lei 13.129/15) vigora sem declaração de inconstitucionalidade. Entretanto, é preciso lembrar que a constitucionalidade do procedimento de arbitragem guarda relação com a sua facultatividade, haja vista que o procedimento não é obrigatório.
Portanto, é possível dizer que a desjudicialização concretiza a justiça multiportas por meio da releitura da garantia constitucional do acesso à justiça, que não deve se confundir com o acesso ao Poder Judiciário. Tal releitura tem amparo nas previsões constitucionais e na participação democrática no processo. O CPC/15 promove o incentivo à realização do sistema multiportas na previsão do art. 3º, que prevê a permissão da arbitragem, a solução consensual de conflitos, como a conciliação e a mediação, que devem ser estimuladas pelos agentes do processo.10
É válido ainda destacar que o PL 6204/19 não impede o controle do Poder Judiciário em relação aos atos executivos, sempre que provocado pelas partes (suscitação de dúvida) ou pelo denominado agente de execução (consulta). É o que prevê a redação dos artigos 20 e 21.11 Portanto, embora desjudicializada, a execução deve continuar sob o controle e a fiscalização dos magistrados.
Contudo há crítica doutrinária12 quanto à impossibilidade de recurso da decisão que julgar a consulta e que julgar a suscitação de dúvida, pois impediria a análise da questão pelos tribunais de segunda instância, o que vai contra a previsão de cabimento de recurso de agravo de instrumento das decisões proferidas no cumprimento de sentença e no processo de execução (CPC, artigo 1015, parágrafo único).13 Não se pode esquecer que o PL 6204/19, considerando sua possível conversão em lei, se aprovado, deve estar em harmonia e compatibilidade com as previsões do CPC/15, pois formará um microssistema legal da execução civil. Tal problema da irrecorribilidade das decisões representa lesão à garantia constitucional do contraditório e ampla defesa, por isso merece ser revista para a compatibilidade constitucional do projeto de lei.
A doutrina ainda chama a atenção para o problema do prejuízo ao sistema de precedentes, o qual determina que se profiram decisões pelos Tribunais de Justiça e pelos Tribunais Regionais Federais, bem como pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, pois, não havendo recurso, a questão não tem como ser apreciada pelos tribunais para formação de precedentes judiciais.14
Por todos os argumentos e fundamentos expostos, percebe-se que a desjudicialização da execução é um movimento necessário em prol do descongestionamento do Poder Judiciário e consequente outorga de maior celeridade e efetividade processuais, contudo alterações e acréscimos nas disposições do PL 6204/19 se mostram necessários. Tais ajustes e adaptações devem ser feitos no sentido de que a desjudicialização seja eficiente, porém sem incorrer em inobservância de direitos e garantias fundamentais das partes envolvidas no procedimento.
É fundamental a previsão de intensa atuação e colaboração do CNJ na atividade dos cartórios de protesto e do agente de execução, como o uso padronizado de plataforma de buscas de bens e valores em nome do devedor. Além disso, será necessário que a tabela de emolumentos seja unificada em âmbito nacional e não seja variável conforme lei estadual, como é nos dias atuais.
Nesse sentido, é imperioso que o devido processo legal seja observado pela desjudicialização, sem lesão a garantias processuais constitucionais como fator de legitimação democrática do sistema de justiça multiportas, por meio da imparcialidade e independência dos agentes competentes, do efetivo controle externo, da publicidade/transparência dos atos realizados, da previsibilidade do procedimento e do contraditório participativo.
Além disso, o fator da facultatividade do procedimento extrajudicial e consenso entre as partes se mostra imperioso no sentido de preservar a constitucionalidade do PL 6204/19, no mesmo sentido da previsão da arbitragem, para que não se discuta a lesão à garantia da inafastabilidade da jurisdição, consagrada no art. 5º, XXXV da CF/88.
*Gisele Mazzoni Welsch é pós-doutora pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e pela PUC/RS. Doutora e mestre em Teoria da Jurisdição e Processo pela PUC/RS. Professora de cursos de pós-graduação "lato sensu" em Processo Civil. Autora de diversas publicações, dentre elas, o livro "Legitimação Democrática do Poder Judiciário no Novo CPC" pela editora Revista dos Tribunais e o livro "O Reexame Necessário e a Efetividade da Tutela Jurisdicional" pela Editora Livraria do Advogado, bem como capítulos de livros e artigos jurídicos em periódicos de circulação nacional. Advogada.
__________
1 Durante o II Encontro Ibero-Americano da Agenda 2030 do Poder Judiciário, realizado no mês de agosto de 2020, o presidente da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg/BR), Cláudio Marçal Freire, assinou o Termo de Cooperação Técnica do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para a implementação da Rede de Inovação do Poder Judiciário. Anoreg/BR assina Termo de Cooperação para atuação conjunta na Agenda 2030. Disponível em: Revista Cartórios com Você.
2 ARRUDA ALVIM NETTO, José Manoel de; FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Razões para atribuir as funções de agente de execução aos tabeliães de protesto. Disponível aqui. Acesso em 1. Fev. 2021.
3 WELSCH, Gisele Mazzoni. "Do cumprimento provisório da sentença que reconhece a exigibilidade de obrigação de pagar quantia certa". In: Primeiras linhas de direito processual civil: volume 4: execução/ Felipe Camilo Dall'Alba, Augusto Tanger Jardim, coordenadores. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, p. 243-251.
4 Ementa: Dispõe sobre a desjudicialização da execução civil de título executivo judicial e extrajudicial; altera as Leis nª a nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, a nº 9.492, de 10 de setembro de 1997, a nº 10.169, de 29 de dezembro de 2000, e a nº 13.105 de 16 de março de 2015 - Código de Processo Civil. Explicação da Ementa: Disciplina a execução extrajudicial civil para cobrança de títulos executivos judiciais e extrajudiciais. Atribui ao tabelião de protesto o exercício das funções de agente de execução. Disponível aqui. Acesso em 23. Fev. 2021.
5 De acordo com o relatório do anuário, o total de processos de execução, sejam ficais ou não fiscais, judiciais e extrajudiciais é de 43.047.532 (página 151 do "Justiça em Números" de 2020. Disponível aqui. Acesso em 23. Fev.2021.
6 O PL 6.204/19 teve origem em 2012, fruto da tese de doutorado da advogada Flávia Pereira Ribeiro, doutora em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e pesquisadora de assuntos relativos à desjudicialização da execução civil. Agentes de execução: Cartórios de Protesto podem economizar R$ 65 bilhões por ano aos cofres públicos. Disponível em: Revista Cartórios com Você.
7 Refere-se ainda o PL 4257/2019 (relativo à execução fiscal).
8 Há doutrina contrária à desjudicizaliação da execução no Brasil, com o entendimento de que as execuções extrajudiciais são inconstitucionais por permitirem, além da delegação da atividade executiva para pessoa distinta do Poder Judiciário, autorizar, de igual forma, um sistema de autotutela do direito pelo particular. (YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. Execução Extrajudicial e devido processo legal. São Paulo: Atlas, 2010. p. 138).
9 DIAS, Joel Figueira. Execução simplificada e a Desjudicialização do Processo Civil. In: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda (coord.). Execução civil e temas afins do CPC/1973 ao Novo CPC: estudos em homenagem ao professor Araken de Assis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 579-580.
10 Nesse sentido: "Isso significa que todos os sujeitos do processo devem estar atentos e empenhados em buscar meios e viabilizar condições para a solução consensual de conflitos, visando à pacificação do conflito, bem como ao descongestionamento do Poder Judiciário de demandas judiciais, justamente visando à efetividade e à celeridade do processo". (WELSCH, Gisele Mazzoni. "Audiência de mediação e conciliação". In: Primeiras linhas de direito processual civil: volume 2 - Processo I/ Felipe Camilo Dall'Alba, João Paulo Kulczynski Forster, coordenadores. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. p. 36).
11 Art. 20. O agente de execução poderá consultar o juízo competente sobre questões relacionadas ao título exequendo e ao procedimento executivo; havendo necessidade de aplicação de medidas de força ou coerção, deverá requerer ao juízo competente para, se for caso, determinar a autoridade policial competente para realizar a providência adequada.
§ 1º Nas hipóteses definidas no caput, o juiz intimará as partes para apresentar suas razões no prazo comum de 5 (cinco) dias, limitando-se ao esclarecimento das questões controvertidas, não podendo acrescentar fato ou fundamento novo.
§ 2º. A decisão que julgar a consulta a que se refere este artigo é irrecorrível.
Art. 21. As decisões do agente de execução que forem suscetíveis de causar prejuízo às partes poderão ser impugnadas por suscitação de dúvida perante o próprio agente, no prazo de cinco (5) dias que, por sua vez, poderá reconsiderá-las no mesmo prazo.
§ 1º Caso não reconsidere a decisão, o agente de execução encaminhará a suscitação de dúvida formulada pelo interessado para o juízo competente e dará ciência à parte contrária para, no prazo de 5 (cinco) dias, apresentar manifestação diretamente ao juízo.
§ 2º. A decisão que julgar a suscitação a que se refere este artigo será irrecorrível.
12 LUCON, Paulo Henrique dos Santos; ARAÚJO, Luciano Vianna; DOTTI, Rogéria Fagundes. Desjudicialização da execução civil: a quem atribuir as funções de agente de execução? Disponível aqui. Acesso em 26.Fev.2021.
13 LUCON, Paulo Henrique dos Santos; ARAÚJO, Luciano Vianna; DOTTI, Rogéria Fagundes. Desjudicialização da execução civil: a quem atribuir as funções de agente de execução? Disponível aqui. Acesso em 26.Fev.2021.
14 LUCON, Paulo Henrique dos Santos; ARAÚJO, Luciano Vianna; DOTTI, Rogéria Fagundes. Desjudicialização da execução civil: a quem atribuir as funções de agente de execução? Disponível aqui. Acesso em 23.Fev.2021.