As mensalidades escolares e a intangibilidade dos contratos (STF ADI 1081)
quarta-feira, 18 de agosto de 2021
Atualizado às 09:05
Os brasileiros nascidos nos anos 90 ou depois não viveram e não têm em sua memória o fenômeno da hiperinflação. De fato, a fracassada sequência de planos econômicos dos anos 80 e início dos 90 demarca um período de verdadeiro desajuste da economia nacional. Para que se tenha ideia, a inflação oficial do mês de março de 1990 foi de espantosos 82,39%, o que significa, por exemplo, que o preço médio de bens e serviços quase dobrou no período de apenas um mês. Não à toa, a imagem mais marcante da era da hiperinflação brasileira é a da pistola etiquetadora que remarcava os preços praticamente todos os dias nos supermercados.
Nesse contexto, a legislação tentava estipular critérios a partir dos quais diversas categorias de bens e serviços teriam seus preços atualizados à luz da inflação reinante (indexação da economia). Especificamente quanto às mensalidades escolares, o início dos anos 90 foi pródigo em medidas legislativas destinadas à indexação de seus valores. A título de exemplo, a Medida Provisória 154/90 (art. 7º), depois convertida na lei Federal 8.030/90 (art. 8º), instituía o reajustamento mensal das mensalidades escolares no primeiro dia útil após o dia 15 de cada mês, tomando-se como base o percentual de reajuste mínimo mensal para os salários em geral.
Adiante, a lei Federal 8.170/1991 estabelecia regras para a negociação de reajustes das mensalidades escolares. No ponto, a legislação regulava a possibilidade de negociação entre pais e escolas e criava um mecanismo de reajustes em que eram admitidos possíveis repasses e reflexos de custos pelas escolas, com pessoal e estrutura, aos valores das mensalidades.
A partir do cenário inflacionário persistente e de uma sequência de planos econômicos infrutíferos, uma nova tentativa de estabilização veio em 1994 com o chamado Plano Real. Em suma, a Medida Provisória 434/1994, editada pelo governo de Itamar Franco (e por seu Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso e equipe), dispunha sobre o novo programa de estabilização e instituía, como padrão monetário temporário de conversão entre a moeda então vigente (Cruzeiro Real) e a futura (Real), a Unidade Real de Valor (URV).
No que diz respeito à regulação das mensalidades escolares durante o período de transição monetária, a Medida Provisória 524/1994, de 7 de junho de 1994, estabelecia que os valores das mensalidades escolares, desde março de 1994, deveriam ser convertidos em URV "pela média aritmética obtida dos valores cobrados em cruzeiros reais nos meses de novembro de 1993 a fevereiro de 1994" (art. 1º). Em síntese, a norma previa, em junho de 1994, uma conversão de valores retroativa ao mês de março do mesmo ano; além disso, o critério de conversão considerava, para fins de média, os valores de novembro de 1993 a fevereiro de 1994 de forma nominal, a despeito do fato de que a moeda tinha seu valor corroído pela inflação à razão de 40% ao mês.
De forma imediata, a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino - CONEFEM ajuizou ação direta no Supremo Tribunal Federal contestando a constitucionalidade da MP 524/1994. Entre outras discussões, a ADI 1081 tinha como ponto central o argumento de que a fixação de critérios de conversão retro-operantes afrontaria o ato jurídico perfeito consubstanciado nos contratos firmados entre as partes (escolas e alunos). Na visão do Relator Ministro Francisco Rezek, "é a regra do ato jurídico perfeito que está em causa. São situações contratuais, consolidadas à luz do direito reinante no momento em que tais contratos se celebraram, à luz do quadro normativo que valeu até a edição da medida provisória".1
Na mesma linha do relator, o Ministro Celso de Mello apontava que a ordem constitucional brasileira consagrava, como regra, a "imodificabilidade das condições e do regime de execução dos negócios jurídico-contratuais, ressalvada a via do mútuo consenso", sendo possível vislumbrar tal proteção constitucional no art. 5º, XXXVI, que expressa que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.2 Assim, com fundamento na cláusula garantidora da integridade e intangibilidade dos atos jurídicos perfeitos, o Ministro acompanhava o relator no sentido de suspender a eficácia da MP 524/1994. No ponto - e julgando a medida cautelar pleiteada pela CONEFEM -, a maioria do STF entendeu por suspender os dispositivos da MP 524/1994 relativos à retroatividade da fórmula de cálculo das mensalidades escolares.3
Quanto à tutela das situações juridicamente consolidadas no tempo, o Ministro Celso de Mello observou que a Constituição dos EUA havia sido a primeira escrita a fixar cláusula de tutela contratual específica diante de eventual atividade legislativa posterior. Nas palavras do Ministro, a instituição da chamada "contract clause" consagraria a fórmula garantidora da integridade jurídica dos contratos.
De fato, a "contract clause" da Constituição americana, disposta no Artigo I, Seção 10, Cláusula 1, indica que os Estados não podem aprovar leis que inviabilizem ou impeçam as obrigações decorrentes dos contratos anteriormente celebrados.4 Tal cláusula tinha como pano de fundo a ideia de evitar prática corrente tanto no período colonial quanto sob a égide da Confederação.5 De fato, as legislaturas locais acabavam aprovando projetos de lei que isentavam determinadas pessoas de suas obrigações contratuais; tal atitude era ainda mais visível quando os Estados aprovavam leis favorecendo e isentando seus próprios cidadãos em relações contratuais havidas com credores de outros Estados ou estrangeiros.
Durante o próprio debate acerca da aprovação da atual Constituição dos EUA, Alexander Hamilton, no Federalista n. 7, criticava a atuação legislativa que impactasse contratos regulares anteriores, sobretudo pelo fato de que tal atitude colocaria em risco o fluxo de entrada de capital no país e, bem assim, aumentaria o risco de eventuais investidores. A solução para a questão estaria exatamente na "contract clause" e em sua proteção das relações jurídicas contratuais.6
É nesse sentido, então, que o Ministro Celso de Mello invoca precedentes da Suprema Corte dos EUA que bem traduzem a preocupação da Constituição americana com a intangibilidade contratual diante da legislação subsequente. Em específico, o Ministro traz uma tríade clássica de casos que tratam da intangibilidade dos contratos diante de legislação subsequente que os pretendia alterar. São eles: Fletcher v. Peck (1810), Dartmouth College v. Woodward (1819) e Sturges v. Crowninshield (1819).
Em Fletcher v. Peck (1810)7, a Suprema Corte declarou, pela primeira vez, a inconstitucionalidade de uma lei estadual. No caso, o Estado da Georgia entendia ser proprietário de terras a oeste de seu território consolidado (onde hoje estão os Estados do Alabama e Mississippi); uma lei estadual, então, autorizou a venda de tais bens a preços irrisórios. A partir de pressão popular denunciando que a venda das terras pelo Estado havia sido aprovada mediante propinas, o Legislativo estadual aprovou nova lei que anulava as transações realizadas sob a égide da lei anterior.
O especulador imobiliário John Peck havia adquirido uma parcela das terras e, mais tarde, as vendeu a outro especulador: Robert Fletcher. Diante da nova lei da Georgia, Fletcher acionou Peck alegando que a venda originária do terreno havia sido declarada inválida; diante disso, Peck não seria legítimo proprietário daquilo que vendera (venda a non domino), devendo ser responsabilizado. A questão a ser respondida pela Suprema Corte era a seguinte: o contrato firmado entre Fletcher e Peck poderia ser invalidado por um ato legislativo do Estado da Georgia?
A Suprema Corte entendeu, no caso, que a "contract clause" constante da Constituição dos EUA proibiria que um Estado invalidasse contratos anteriores mediante legislação posterior. Assim, o contrato firmado entre Fletcher e Peck era válido, ainda que, em sua origem (lei do Estado da Georgia que autorizava a venda dos terrenos a partir de propina), houvesse nítida ilegalidade.
Nove anos depois, em 1819, a Suprema Corte julgou o caso Trustees of Dartmouth College v. Woodward (1819).8 O Dartmouth College era uma instituição privada, gerida por um Conselho de Curadores e organizado de acordo com a carta de incorporação da Coroa Britânica que autorizava sua criação na colônia em 1769. Adiante, em 1816, o Estado de New Hampshire tentou, por meio de lei, tornar a instituição pública, o que daria poderes ao governador para indicar os membros do Conselho de Curadores (e, bem assim, influenciar na escolha do presidente da instituição pelo Conselho).
Ao vislumbrar que a carta de incorporação real que viabilizava a criação da instituição tinha natureza contratual - e que tal contrato não tinha sido dissolvido a partir da revolução e independência dos EUA -, a Suprema Corte entendeu, à luz da "contract clause", que uma lei estadual não poderia interferir em obrigações contratuais anteriormente firmadas. Bem por isso, restava impossível a alteração da natureza jurídica do Dartmouth College e todas as consequências advindas da lei estadual em discussão. De se notar, ainda, que a conclusão redigida pelo o Chief Justice John Marshall citava expressamente o precedente firmado em Fletcher v. Peck (1810).
Ainda no mesmo ano, a Corte julgou Sturges v. Crowninshield (1819).9 Entre outros assuntos, o caso discutia a possibilidade de uma lei estadual de Nova Iorque sobre falências ter aplicação em relação a contratos firmados antes de sua aprovação. Nesse sentido, o caractere retrospectivo da lei foi declarado inconstitucional também à luz da "contract clause". Para a Corte, haveria verdadeiro princípio universal a indicar que as leis, civis ou criminais, devem ser prospectivas, não podendo ter efeitos retrospectivos.10
Ao final, o que se vê é a invocação, pelo Ministro Celso de Mello, de precedentes estrangeiros que trazem um verdadeiro viés de confirmação da decisão tomada sob a égide da legislação nacional (art. 5º, XXXVI da CF/88). Certo, assim, que a garantia e a proteção aos contratos, em algum grau e forma, representa uma premissa que encontra lugar em diversas constituições modernas, o que facilita e viabiliza o diálogo entre as cortes sobre a matéria. No caso brasileiro, as mensalidades escolares, devidamente contratadas de acordo com a lei vigente (e que aplicavam fórmulas de indexação então válidas), não poderiam ser revistas por lei nova que operasse de forma retroativa. Aí, pois, a intangibilidade dos contratos como ponto comum aos sistemas brasileiro e americano.
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1 ADI 1081 - Voto do Relator Ministro Francisco Rezek.
2 ADI 1081 - Voto do Ministro Celso de Mello.
3 Vale destacar, por oportuno, que após julgada a medida cautelar a ADI foi julgada prejudicada em face da não reedição da Medida Provisória e de sua não conversão em lei.
4 Em sua versão original, eis o inteiro teor do Artigo I, Seção 10, Cláusula 1 da Constituição dos EUA: No State shall enter into any Treaty, Alliance, or Confederation; grant Letters of Marque and Reprisal; coin Money; emit Bills of Credit; make any Thing but gold and silver Coin a Tender in Payment of Debts; pass any Bill of Attainder, ex post facto Law, or Law impairing the Obligation of Contracts, or grant any Title of Nobility.
5 Em síntese, os Artigos da Confederação (ou, no original, Articles of Confederation and Perpetual Union) podem ser vistos como a Primeira Constituição americana, sobretudo na medida em que representaram a união dos Estados em torno de ideal comum de preservação (externa) e certa colaboração (interna). Os Articles foram aprovados em 15.11.1777 (pelo Segundo Congresso Continental dos Estados já independentes), entraram em efetiva operação em 1.3.1781 (após a ratificação de Maryland, último dos treze Estados a fazê-lo) e foram abandonados e substituídos em definitivo com o início da operação da atual Constituição Americana em 1789.
6 Eis trecho original do Federalista n. 7 sobre o tema: Laws in violation of private contracts, as they amount to aggressions on the rights of those States whose citizens are injured by them, may be considered as another probable source of hostility. We are not authorized to expect that a more liberal or more equitable spirit would preside over the legislations of the individual States hereafter, if unrestrained by any additional checks, than we have heretofore seen in too many instances disgracing their several codes.
7 Fletcher v. Peck, 10 U.S. (6 Cranch) 87 (1810).
8 Trustees of Dartmouth College v. Woodward, 17 U.S. (4 Wheat.) 518 (1819).
9 Sturges v. Crowninshield, 17 U.S. (4 Wheat.) 122 (1819).
10 No original: It is a principle of universal jurisprudence, that laws, civil or criminal, must be prospective, and cannot have a retrospective effect.