O sacrifício de animais em rituais religiosos (STF RE 494.601/RS)
quarta-feira, 7 de julho de 2021
Atualizado em 9 de julho de 2021 07:17
Um debate tomou conta do Estado do Rio Grande do Sul, no Brasil, no início dos anos 2000. Em meados da década de 1980, um debate tomou conta do Estado da Flórida, nos Estados Unidos da América. Em comum, nos hemisférios sul e norte, a comoção social e o motivo dos debates: a viabilidade jurídica do abate ou sacrifício de animais em rituais religiosos.
A comoção "do norte" teve início quando, em abril de 1987, uma seccional da Igreja Lukumi Babalu Aye, de matriz afro-cubana derivada da religião Santería, adquiriu uma propriedade na cidade de Hialeah, próxima a Miami, com a finalidade específica de ali instalar um de seus templos. Tão logo a informação foi assimilada na comunidade, em junho de 1987, uma sessão pública emergencial foi convocada pela Câmara Municipal de Hialeah. A pauta da sessão era bastante específica: discutir o fato de que a Igreja Lukumi Babalu Aye adotava como prática religiosa o sacrifício ritual de determinados animais. É que, seguindo suas crenças, os religiosos que se instalariam na cidade utilizavam o sacrifício de pequenos animais como forma de oferta aos espíritos (orixás) por eles venerados.
A sessão da Câmara Municipal de Hialeah foi marcada por expressões apaixonadas em oposição às praticas adotadas pela Igreja. Nesse sentido, diversos cidadãos manifestaram sua preocupação com a futura instalação do templo na cidade. Os próprios membros da Câmara Municipal - contrários, via de regra, às práticas da religião Santería - argumentavam que os rituais eram proibidas até mesmo em Cuba (local de origem da religião específica); mais do que isso, indicavam que os devotos violavam, em seus cultos, tudo o que os Estados Unidos da América representavam como nação. Ainda segundo um membro da Câmara, a Bíblia sagrada permitiria o sacrifício animal para consumo humano, mas não para outros propósitos. Como suma da sessão, o Presidente da Câmara Municipal questionara seus pares e cidadãos então presentes: o que podemos fazer para evitar a instalação e abertura da Igreja Lukumi Babalu Aye em nossa cidade?1
A ação imediata da Câmara Municipal resultou na adoção da Resolution 87-66 e da Ordinance 87-40. A primeira trazia a preocupação dos residentes de que certas religiões poderiam envolver práticas que seriam inconsistentes com a moral pública, a paz ou a segurança; declarava, ainda, que a cidade reiterava seu compromisso com a proibição de quaisquer atos de grupos religiosos contrários a tais valores. A segunda, por sua vez, incorporava localmente a lei de crueldade animal do Estado da Flórida, que sujeitava à persecução criminal o agente que, de forma desnecessária ou cruel, matasse qualquer animal.
Aprovada a lei local - e fechando o cerco às práticas da seita Lukumi Babalu Aye -, o procurador da Cidade de Hialeah (City Attorney) solicitou a opinião jurídica do procurador geral do Estado da Flórida (Attorney General of Florida) acerca da legislação estadual sobre crueldade animal que então se incorporava à cidade. Em síntese, questionava se a lei estadual proibiria um grupo religioso de sacrificar um animal em ritual ou prática religiosa. Em resposta, o procurador-geral concluíra que o sacrifício ritual de animais para outros fins que não o consumo configuraria um abate desnecessário, sendo então proibido.2
Em setembro de 1987, nova legislação local definiu o sacrifício animal como o ato de matar, atormentar, torturar ou mutilar desnecessariamente um animal, em ritual ou cerimônia pública ou privada, que não tenha como propósito principal o consumo de alimentos. Diante disso - e ao vislumbrar sua impossível instalação e práticas religiosas na Cidade de Hialeah -, a Igreja Lukumi Babalu Aye judicializou a questão alegando que as normais locais violariam a Primeira Emenda da Constituição dos EUA, em sua cláusula de liberdade religiosa, eis que proibiam o exercício e as práticas rituais de seus adeptos e seguidores.
Analisando a questão, as instâncias inferiores entenderam possível a restrição formalizada pela lei local. Em outras palavras, não haveria violação ao livre exercício da religião pelos adeptos da Igreja Lukumi Babalu Aye. É que, mesmo reconhecendo que a legislação não seria neutra em termos religiosos, sustentou-se que a prevenção de riscos à saúde pública e o combate à crueldade contra animais justificariam a proibição de sacrifícios rituais.
Inconformada, a Igreja Lukumi Babalu Aye peticionou à Suprema Corte dos EUA a fim de reverter a situação (writ of certiorari). Ao aceitar o caso para julgamento, a Suprema Corte enquadrou a questão sob análise da seguinte forma: a legislação local da Cidade de Hialeah, que proíbe o sacrifício de animais em rituais religiosos, viola a cláusula de liberdade de exercício religioso consagrada pela Primeira Emenda à Constituição?
A opinião da Corte em Church of the Lukumi Babalu Aye, Inc. v. Hialeah (1993), de autoria do Justice Anthony Kennedy, indicava que, na medida em que a legislação da cidade não se aplicava de forma ampla, indistinta e neutra (sendo notadamente direcionada a práticas religiosas de sacrifício animal), sua compatibilidade com a Constituição deveria ser aferida a partir da mais rigorosa fórmula de análise: o chamado escrutínio estrito (strict scrutiny).
No ponto, a aplicação do escrutínio estrito demandava que as normas locais fossem lastreadas e justificadas por um interesse governamental imperioso (compelling governamental interest) e estritamente relacionadas (narrowly tailored) com a promoção desse interesse. No entanto, os interesses da Cidade de Hialeah em regulamentar o sacrifício animal eram direcionados apenas às condutas religiosas e não se adequavam aos requisitos do escrutínio estrito. De fato, as normas suprimiam a conduta religiosa específica a despeito de uma aplicação geral das restrições pretendidas (sacrifício animal). À luz da liberdade religiosa (Primeira Emenda), pois, a Suprema Corte, por unanimidade, reputou inconstitucional a norma local de Hialeah proibindo a morte desnecessária de animais em rituais ou cerimônias que não tivessem como propósito principal o consumo alimentício. Assim - e em termos normativos -, restou estabelecida a impossibilidade de restrição dos rituais religiosos de sacrifício animal independentemente da finalidade do abate (para consumo alimentar ou não).
No hemisfério sul, mais de quinze anos após as discussões em Hialeah, o Estado do Rio Grande do Sul aprovava o seu Código Estadual de Proteção aos Animais. Na ocasião, a Lei Estadual n. 11.915/2003 estabelecia normas protetivas aos animas com o intuito de compatibilizar o desenvolvimento socioeconômico com a preservação ambiental (art. 1º). A aludida norma proibia, como regra geral, as condutas causadoras de sofrimento animal (sacrifício, molestamento, privação ou dano - art. 2º). Ato contínuo, restou aprovada no ano seguinte a Lei Estadual n. 12.131/2004, acrescentando o que segue quanto à vedação exposta acima: não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana. Regulamentando a lei, o Decreto Estadual n. 43.252/2004 estabelecia que, para o exercício de cultos religiosos, cuja liturgia provém de religiões de matriz africana, somente poderão ser utilizados animais destinados à alimentação humana, sem utilização de recursos de crueldade para a sua morte.
De logo, a exceção religiosa específica para cultos e liturgias das religiões africanas acendeu o debate acerca da juridicidade do sacrifício de animais em rituais religiosos. Nesse sentido, a reação imediata à aprovação de tais normas veio na forma de Ação Direta de Inconstitucionalidade manejada pelo Ministério Público Estadual perante o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Para além de questões de competência e forma, tinha-se como parâmetro de controle, na espécie, normais centrais federais repetidas e incorporadas na Constituição Estadual (em seu art. 1º): o princípio da igualdade (art. 5º da CF/88) e o da laicidade estatal (art. 19, I, da CF/88). Trazendo concretude a tais argumentos, o Ministério Público gaúcho indicava que o legislador estadual havia desrespeitado o princípio isonômico ao excepcionar apenas os cultos de matriz africana. Diante disso, o discrímen revelar-se-ia arbitrário, eis que inúmeras outras expressões religiosas também se valeriam de sacrifícios animais que, ante a legislação, continuariam proibidos.
Ainda no âmbito do Tribunal de Justiça gaúcho, diversas entidades3 da sociedade civil organizada postularam admissão como amici curiae. Exatamente nos memoriais apresentados por tais entidades é que veio aos autos a primeira menção ao caso julgado na Suprema Corte dos EUA em 1993. Na ocasião, as entidades enfatizavam que o precedente estrangeiro retratava a inviabilidade de hostilização às práticas religiosas por parte da legislação local. No julgamento da ação direta, o Desembargador Araken de Assis (relator) também aludia ao julgado estrangeiro, rememorando que, apesar de as leis locais da Cidade de Hialeah proibirem o sacrifício animal, "a Suprema Corte entendeu que as autoridades locais devem respeitar a tolerância religiosa". E continuava o Desembargador: "No caso, sem traçar paralelos com outras religiões e práticas, ou adotar a motivação porventura mais ajustada àquele sistema jurídico, estimo que se aplique perfeitamente tal precedente à espécie como uma diretriz geral. Portanto, conosco está a Suprema Corte dos Estados Unidos da América do Norte".4
O Tribunal de Justiça, então, reputou que a lei gaúcha era constitucional, sendo improcedentes os pedidos do Ministério Público. Permanecia, assim, a vedação geral ao sacrifício animal, excepcionando-se os casos afetos ao livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana. Quanto ao tratamento diferenciado das religiões de matriz africana, a Desembargadora Maria Berenice Dias, vencida no ponto, propunha ampliação do julgamento a fim de declarar inconstitucional apenas a expressão final da norma que fazia referência à matriz africana. De acordo com ela, a referida expressão afrontaria o princípio da isonomia; como solução - e a fim de assegurar a toda e qualquer religião a manutenção de suas práticas rituais -, a norma deveria permanecer nos seguintes termos: "Não se enquadra nesta vedação o livre exercício de cultos e liturgia das religiões".
Dentre outras, a questão da isonomia foi abarcada no Recurso Extraordinário do Ministério Público Estadual e na manifestação do Ministério Público Federal (MPF) já perante o Supremo Tribunal Federal. Em sua argumentação, o MPF novamente trazia o julgamento de Church of the Lukumi Babalu Aye, Inc. v. Hialeah (1993) como suporte à ideia de que a violação à liberdade religiosa restaria patente em casos tais. O Supremo, por maioria, entendeu que a proteção específica dos cultos de religiões de matriz africana seria compatível com o princípio da igualdade, uma vez que sua estigmatização, fruto de um preconceito estrutural, estaria a merecer especial atenção do Estado. Diante disso, fixou a tese de que "é constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana".5
A menção ao precedente firmado em Church of the Lukumi Babalu Aye, Inc. v. Hialeah (1993), no julgamento pelo STF, veio no voto do Ministro Alexandre de Moraes. Em específico, o Ministro destacava, com nítido viés confirmatório da tese que defendia, o fato de haver "consistente jurisprudência internacional a tutelar a prática sacrificial em cultos religiosos como expressão de liberdade religiosa". Ao passo que a norma gaúcha buscava proteger a liberdade religiosa, "o conjunto de normas locais [na Cidade de Hialeah] que vedavam o abate ritual ou o sacrifício de animais implicava discriminação em relação aos praticantes da religião afro-caribenha Santería, que praticam o sacrifício de animais de forma coordenada com outros rituais religiosos".6 Para além do precedente da Suprema Corte dos EUA, válido notar a abertura e o diálogo judicial internacional promovido no voto do Ministro por intermédio da alusão a precedentes da Alemanha, Áustria, Polônia e Índia.
Interessante notar, por fim, que restou vencida a tese sustentada pelos Ministros Marco Aurélio, Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes que, em resumo, buscavam conferir à norma gaúcha interpretação conforme à Constituição a fim de instaurar o entendimento de que todos os ritos religiosos que realizassem sacralização e abate de animais teriam proteção constitucional. Outra questão controversa não resolvida - e também presente nos votos minoritários - dizia à necessidade ou não de consumo da carne do animal como condicionante da proteção constitucional.
Remanesce, assim, provável discussão futura sobre a temática, sendo possível imaginar que o Supremo Tribunal Federal ainda será chamado a dirimir tais questões em palavra final. De qualquer forma, a experiência da Suprema Corte dos EUA em Church of the Lukumi Babalu Aye, Inc. v. Hialeah (1993) poderá servir como suporte à extensão da liberdade religiosa para todas as manifestações religiosas (independentemente de credos e cultos específicos e, bem assim, da finalidade do abate animal para consumo alimentar ou não).
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1 Church of the Lukumi Babalu Aye, Inc. v. Hialeah, 508 U.S. 520 (1993), at 541.
2 Id, at 526-527.
3 Eis as aludidas entidades: 1) Maria Mulher - Organização de Mulheres Negras; 2) CEDRAB - Congregação em Defesa das Religiões Afro-Brasileiras; 3) UNEGRO - União dos Negros pela Igualdade; 4) Ilê Axé Yemonja Omi-Olodo e C.E.U Cacique Tupinambá; 5) Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades - CEERT.
4 TJ/RS - ADIn 70010129690 - Plenário - Rel. Des. Araken de Assis - Julgamento em 18.4.2005.
5 STF - RE 494.601/RS - Plenário - Rel. Min. Marco Aurélio - Redator para o Acórdão Min. Edson Fachin - Julgamento em 28.3.2019.