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O financiamento de litígios pode ser entendido como fraude à execução?

terça-feira, 18 de março de 2025

Atualizado às 07:22

O financiamento de litígios é buscado, em geral, por dois públicos: (i) aqueles que desejam entregar a condução da causa a agentes econômicos preparados para aumentar as chances de sucesso das demandas judiciais; e (ii) aqueles que não possuam recursos necessários, ou não entendem conveniente e oportuno empregar tais recursos, para a condução da demanda judicial.

Quando tratamos de financiamento de litígios em relação a esse segundo grupo, uma questão recorrente envolve lidar com partes que não possuem recursos para ajuizar ou dar continuidade a demandas judiciais, sendo comum que quem recorra a esse tipo de expediente esteja em situação de constrição financeira.

Nesses casos, as entidades com baixa solvência negociam a cessão de um percentual do sucesso da demanda em troca do desembolso de recursos pelo financiador. Diante disso, surge uma questão: poderia um credor anterior ao financiamento argumentar pela ineficácia dessa operação caso já tenha iniciado uma execução contra a empresa cedente?

Sobre a questão, ocorreu uma recente decisão no âmbito do processo 5097018-55.2022.8.13.0024 que me surpreendeu bastante, por configurar fraude à execução uma operação legítima de financiamento de litígios, conforme ementa abaixo:

(...) CESSÃO DE CRÉDITOS FUTUROS - OPONIBILIDADE DE EXECUÇÃO JUDICIAL PRETÉRITA - INEFICÁCIA SUPERVENIENTE - Ainda que não haja expressa disposição legal sobre a disciplina do terceiro investidor (litigation finance ou third-party funding), sua prática é reconhecida no mercado (tipicidade social), o que obriga os contratantes à observância dos limites contratuais e seus efeitos, inclusive a oponibilidade perante terceiros, uma vez que o objeto ou bem da cessão de crédito pode ser futuro, mas a cessão, além de conhecida e atual, é superveniente à execução judicial. EXECUÇÃO PENDENTE - CRONOLOGIA DE FATOS E CONTRATOS - FRAUDE CONFIGURADA - Se, da análise do conjunto probatório coligido, afere-se reconhecida pendência de execução judicial, com amplo conhecimento do cedente e do cessionário do crédito, além de manifesto prejuízo à segurança patrimonial do exequente, configura-se fraude à execução, nos termos do art. 792, IV, do CPC". (TJMG. Apelação Cível 5097018-55.2022.8.13.0024 (n. 1.0000.23.268860-6/001), Rel. Des. Marcelo de Oliveira Milagres, 18ª Câmara Cível, j. em 13.08.2024, DJe14.08.2024, grifos nossos).

No caso, foi analisada a ineficácia da cessão de crédito realizada em favor de um fundo de investimento por uma empresa que buscava recursos para viabilizar o financiamento de determinada arbitragem.

A empresa buscou financiamento como estratégia para viabilizar a continuidade de duas arbitragens em que figurava como parte. Para tanto, celebrou um contrato com um financiador, cedendo a ele um percentual dos direitos creditórios resultantes dos processos arbitrais. A lógica do acordo era simples: caso obtivesse sucesso nas arbitragens, o financiador teria direito a uma parcela do montante recuperado, enquanto a empresa poderia continuar litigando sem comprometer seus recursos imediatos.

No entanto, anteriormente a essa operação, credores da empresa ajuizaram uma ação de execução para cobrar dívidas preexistentes. No curso da execução, solicitaram a constrição de valores oriundos dos direitos creditórios cedidos nas arbitragens financiadas, sob o argumento de que a cessão patrimonial teria sido realizada em prejuízo dos credores. Alegaram, ainda, que a transferência dos direitos creditórios impedia que os valores recuperados futuramente fossem direcionados ao pagamento das dívidas da empresa.

A situação foi submetida ao TJ/MG, que entendeu que a cessão dos direitos creditórios poderia, de fato, prejudicar os credores preexistentes, pois reduziria os ativos disponíveis para a satisfação da dívida.

Naquele caso, o principal argumento para justificar a ineficácia da cessão de direitos judiciais foi que, ao transferir parte do possível proveito econômico da demanda a terceiros, a parte financiada estaria, na prática, reduzindo o patrimônio que poderia ser utilizado para a satisfação da execução preexistente. Na visão do Tribunal: "Ainda que o crédito disputado seja futuro, sob alegada condição suspensiva, a sua cessão é atual, presente, com manifesto prejuízo ao credor-exequente".

Apesar de ter sustentado não existir qualquer discussão no plano da validade desse mecanismo de financiamento de litígio, na medida em que se trata de reconhecida prática negocial, o mérito da questão seria cotejar esse mecanismo de financiamento, tendo em vista a proteção do exequente de boa-fé. Conforme decidido pelo TJ/MG, restou configurada fraude à execução, nos termos do art. 792, IV, do CPC. Segundo enfatizado pelo Tribunal, independentemente da incerteza sobre o êxito da demanda judicial financiada, o crédito litigioso representaria um ativo do devedor, e sua cessão poderia ser considerada uma forma de esvaziamento patrimonial quando realizada em detrimento das demandas já existentes.

Apesar de a decisão não ser expressamente contrária ao financiamento, entendo que ela deve ser revista. A questão merece aprofundamento e debate, não podendo a conclusão alcançada nesse caso concreto ser aplicada aos casos de financiamento de litígios.

O primeiro ponto que deve ser compreendido é que, sem o financiamento, a ação nem sequer seria proposta ou, se já em curso, não teria condições de prosseguir. Sem os recursos do financiador, o crédito litigioso teria valor meramente teórico, pois o demandante não teria meios para custear honorários advocatícios, despesas processuais e garantias exigidas no processo. Assim, o financiamento não subtrai um ativo existente do patrimônio do devedor, mas viabiliza a realização de um ativo que, de outra forma, jamais se concretizaria.

Além disso, a cessão pactuada recai sobre um percentual do eventual sucesso da ação. Trata-se de investimento realizado por terceiro de boa-fé (o financiador) para transformar um ativo potencial em ativo real, tendo como contrapartida apenas parte do sucesso alcançado.

Ademais, a modalidade mais comum de financiamento não impõe obrigações à parte financiada em caso de insucesso da demanda, o que significa que o financiador assume o risco integral da operação. Assim, o financiamento não agrava a situação de insolvência do devedor, mas cria a possibilidade de incremento patrimonial. Nessa linha, mesmo que a ação seja infrutífera, os credores preexistentes não sofrem prejuízo real, pois nunca tiveram acesso a um ativo concreto antes do financiamento. Logo, não há uma diminuição patrimonial ilícita, mas sim um arranjo contratual que viabiliza uma expectativa legítima de recebimento futuro.

Também é importante ressaltar que o financiamento de litígios não se confunde com expedientes fraudulentos destinados a frustrar credores. Pelo contrário, trata-se de um mecanismo amplamente aceito em mercados que incentivam o acesso à justiça e a livre iniciativa. Em muitos casos, a cessão parcial do crédito litigioso é estruturada para garantir que uma parcela significativa do resultado da ação permaneça no patrimônio da financiada, alinhando os interesses do financiador e dos credores preexistentes.

O financiamento de litígios desempenha um papel crucial na ampliação do acesso à justiça, especialmente para indivíduos e empresas que, sem esse mecanismo, não teriam condições financeiras de pleitear ou defender seus direitos. Em muitos casos, a impossibilidade de arcar com custas processuais, honorários advocatícios e despesas periciais inviabiliza o ajuizamento de ações ou a defesa em processos de grande complexidade.

Desse modo, ao fornecer os recursos necessários para custear essas demandas, o financiamento de litígios permite que partes economicamente vulneráveis possam buscar a reparação de danos, a cobrança de créditos e a defesa de seus interesses, sem que a falta de recursos seja um obstáculo intransponível ao exercício de seus direitos.

Além do impacto individual no acesso à justiça, o financiamento de litígios cumpre uma função social e econômica ao equilibrar as condições entre partes em litígios de alto custo, já que, muitas vezes, grandes corporações ou entes públicos possuem recursos para prolongar disputas judiciais indefinidamente, desestimulando litigantes menos capitalizados a buscar o reconhecimento de seus direitos.

Sob a perspectiva econômica, o financiamento de litígios também impulsiona a eficiência do mercado jurídico e empresarial, ao transformar ativos ilíquidos - como créditos litigiosos - em oportunidades concretas de recuperação financeira, pois, para pessoas físicas e jurídicas insolventes, esse modelo representa um meio estratégico que permite converter em capital efetivo recursos antes inacessíveis.

Assim, o financiamento de litígios não deve ser visto como um expediente que possa configurar fraude à execução, mas sim como um instrumento legítimo de alavancagem de ativos contingentes e acesso à justiça. Diferentemente das situações que configuram fraude contra credores, esse modelo não apenas viabiliza a continuidade do processo judicial, como pode gerar benefícios concretos para todas as partes envolvidas, incluindo os próprios credores dos insolventes, que passam a ter maior perspectiva de recuperação de seus créditos. Como bem sustentado pelo apelante: "1) se não houvesse o financiamento, as arbitragens seriam encerradas e o "direito de ação" (ou "créditos decorrentes das arbitragens") valeria R$0,00; não haveria, portanto, alteração no patrimônio do devedor - o devedor não perderia nada, mas deixaria de ganhar a quantia cobrada nos procedimentos".

Portanto, penso que a decisão proferida pelo TJ/MG, ao focar-se no aspecto formal da cessão do direito creditório (o pleito judicial), perde de vista o fato de que, sem o financiamento, o valor efetivo de tal crédito é inexistente. Além disso, tal decisão tem como efeito alocar no financiador um custo elevado de due diligence, além de tornar inacessível, a um sem-número de pessoas que possuem um bom direito, a chance de ter sucesso em seus litígios, simplesmente por estarem em situação de constrição financeira.