COLUNAS

Financiando Mr. Bates

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Atualizado às 08:24

Assisti recentemente a uma série britânica com quatro episódios produzida pela BBC: Mr. Bates vs. The Post Office. A série retrata a história real de um escândalo no Reino Unido, em que gerentes de agências ("subpostmasters") do Post Office foram alvos de investigações e réus em processos judiciais - criminais, inclusive - por déficits de caixa causados por falhas no sistema de TI conhecido como Horizon.

O Horizon, desenvolvido pela empresa japonesa Fujitsu, foi implementado entre 1999 e 2000, tornando-se o software usado para tarefas de contabilidade e controle de estoque, por aqueles gerentes. Ocorre que o sistema Horizon passou a adulterar números e dados nele inseridos, resultando em dívidas de milhares de libras, contraídas em frações de segundos, de forma automática, arbitrária e inexplicável.

No papel, estava tudo certo, mas o software calculava um grande déficit, que não correspondia à realidade. Os gerentes entravam em pânico, pois, cientes do balanço diário, deparavam-se com um novo cenário, criado pelo sistema, no qual o caixa da agência simplesmente desaparecia, dando lugar a uma dívida.

Foram muitos os casos em que vítimas ligaram para o suporte técnico do Post Office, buscando ajuda, em tempo real, retratando o absurdo que testemunhavam. No entanto, além de não conseguir ajudar, os funcionários do Post Office alegavam que não havia qualquer outro relato parecido, levando aqueles "subpostmasters" a acreditarem que, na verdade, eles haviam "perdido o controle" sobre suas contas.

Nesse cenário, os gerentes das agências não tinham opção: ou quitavam a dívida, com dinheiro que muitas vezes não tinham, ou enfrentavam um julgamento e buscavam provar sua inocência e as falhas sistemáticas, com grandes chances de acabarem na prisão, acusados por fraude.

O caso é triste, revoltante e considerado, pela CCRC - Criminal Cases Review Commission, a maior série de condenações injustas na história do sistema judiciário britânico1. Mais de 3.000 gerentes de agências postais foram falsamente acusados de desviar dinheiro. Dos condenados judicialmente, alguns foram presos. Muitas vítimas ficaram doentes, tendo sido, inclusive, registrados casos de suicídio. Famílias, reputações e planos foram destruídos.

A produção foi aclamada pela crítica, dando voz às vítimas - muitas das quais perderam não apenas seus meios de subsistência, mas também a liberdade, devido a condenações injustas. Também expôs até onde o Post Office foi para frustrar as tentativas das vítimas de obter reparação, defendendo que o Horizon consistia em um sistema "robusto", de modo que as falhas apontadas pelas vítimas representavam, na realidade, erros cometidos pelos próprios usuários do sistema.

A série retrata, ainda, a falta de esperança que assolava as vítimas e a questão que se colocava, durante toda a narrativa: como insurgir-se contra o grandioso Post Office? Como ingressar com um litígio coletivo, buscando justiça e reparação, enquanto as vítimas estavam afogadas em dívidas?

Alan Bates, líder do movimento, tornou-se herói por sua campanha de duas décadas em busca de justiça. Um dos aspectos interessantes retratados na série é o mecanismo que permitiu que Alan Bates e seus colegas levassem a questão à Justiça: o financiamento do litígio por um fundo.

É fato que propor uma ação judicial exige recursos consideráveis - contratação de advogados, peritos, pagamento de taxas judiciais, entre outros. Por isso, antes de se ingressar em uma disputa - especialmente uma longa -, é essencial ponderar os custos, de modo a evitar a interrupção do processo por falta de recursos. É nesse ponto que o financiamento de litígios pode transformar o impossível em possível - especialmente para quem não dispõe de meios financeiros para arcar com os custos para promover uma ação judicial ou não deseja assumir os riscos envolvidos.

Assim, os fundos de investimento que eventualmente se interessem pela tese a ser defendida concordam em pagar os custos da ação judicial sob a condição de que, se a reivindicação for malsucedida, eles assumem o prejuízo e o investimento realizado será perdido. Por outro lado, caso a tese sagre-se vencedora, os investidores receberão uma parte do benefício econômico, em montante consideravelmente superior ao que investiram.

A série, inclusive, retrata o momento em que o advogado, interessado em assessorar as vítimas e ciente de sua hipossuficiência frente ao Post Office, traz à tona a possibilidade de um fundo financiar o litígio, explicando qual seria o "interesse" do funder naquela demanda e como tanto os subpostmasters, quanto o fundo, poderiam sair vitoriosos.

Foi esse o caminho seguido por Alan Bates e seus colegas, obtendo financiamento para a propositura da ação indenizatória que, ao final, resultou em um acordo em que o Post Office se comprometeu a pagar às vítimas uma indenização de £ 57,75 milhões.

Quando esse montante foi revelado, instaurou-se um grande debate entre certos articulistas, em razão do valor recebido pelo fundo que financiou a disputa. Em interessante estudo sobre Litigation Funding2 foi possível apurar os seguintes números em relação ao valor da indenização do caso Bates v Post Office:

  • O total da indenização foi de £ 57,75 milhões;
  • £ 22 milhões foram gastos em custos legais e demais despesas conduzir o litígio;
  • £ 24 milhões foi o retorno do investimento pelo fundo;
  • Após deduzidos os £ 46 milhões acima citados, £ 11.7 milhões foram destinados ao pagamento das vítimas, sendo direcionado o montante de £ 22 mil para cada uma das 555 vítimas.

Ou seja, conforme o estudo examinado, o retorno efetivo do  fundo foi cerca de £ 24 milhões, representando 41% do benefício econômico auferido pelos autores, o que, segundo o financiador, estava dentro dos limites de mercado, considerando o alto risco envolvido.

Embora uma parte relevante tenha sido paga ao financiador, foi o fundo que permitiu que as vítimas recebessem, ao menos, £ 22 mil cada uma, em um litígio de alto risco e que requer advogados qualificados e experientes para conduzi-lo.

Como falado, dada a importância do caso - que é considerado um dos maiores escândalos judiciários do Reino Unido -, o montante da indenização pago às vítimas e os custos envolvidos no litígio, o precedente é utilizado tanto por opositores quanto por apoiadores do financiamento de litígios.

Um aspecto importante desse debate é considerar que, sem o financiamento de litígios, diversas ações que trazem à luz enormes injustiças, muitas vezes perpetradas por empresas e instituições poderosas e intimidadoras, não seriam viabilizadas. No caso ora tratado, o financiamento do litígio tornou possível que advogados patrocinassem a causa, a verdade viesse à tona e a indenização fosse paga.

Fica a dica de série para uma boa maratona de fim de semana: a história promete trazer muitas discussões interessantes sobre o universo de financiamento de litígios, a busca por justiça e a reparação de vítimas afetadas.

_____

1 Disponível aqui. Acessado em 10.12.2024.

2 Dados retirados de MULHERON, Rachael. A Review of Litigation Funding in England and Wales. Queen Mary University of London. Report commissioned by the Legal Services Board, 28.03.2024, pp. 103-104.