Desburocratização e segurança no âmbito dos bens de ausentes
terça-feira, 21 de março de 2017
Atualizado às 07:51
Vitor Frederico Kümpel e Tomás Olcese
Não são poucas as críticas aos males causados pelo apego abusivo às formas e aos procedimentos. Se a literatura serve como indicador da consciência coletiva da humanidade, basta lembrar a trágica saga kafkiana vivida pelo personagem Josef K. em Der Prozess, ou o interminável e economicamente catastrófico julgamento do caso Jarndyce v Jarndyce narrado por Charles Dickens em Bleak House, obra que a historiografia jurídica inglesa1 considera uma descrição fidedigna da hiperburocracia que as reformas do direito inglês de fim do século XIX buscaram resolver2. Entre nós, ninguém menos que o Padre Antônio Vieira fez referência nada elogiosa aos estragos causados pela burocracia jurisdicional da sua época3.
Evidentemente, as situações descritas nas obras citadas são extremas e vêm permeadas de licença artística. Na maior parte dos casos da vida real, entretanto, a implantação de uma burocracia decorre da necessidade de racionalizar procedimentos a fim de atender de forma padronizada a uma quantidade cada vez maior de demandas4.
Logo, a burocracia somente se converte em algo indesejado quando passa a existir em função de si mesma, e não para atender às necessidades práticas dos jurisdicionados, normalmente relacionadas à isonomia, previsibilidade e eficiência da prestação. É apenas diante do extremo dispêndio de tempo e recursos para atender às demandas da burocracia que surgem os clamores que pedem a simplificação de procedimentos e a eliminação de entraves desnecessários.
Essa desburocratização, entretanto, se faz, muitas vezes, à custa da segurança jurídica. Se, de um lado, é verdade que não se pode tolerar o acúmulo injustificado de procedimentos para atingir determinado fim, também é certo que o total abandono de qualquer racionalização procedimental resultaria em desestabilização e arbitrariedade endêmicas. Logo, o discurso contra a burocracia será incompleto enquanto não se levar em consideração seu impacto na segurança jurídica. Nesse sentido, deve-se buscar o (sempre delicado) equilíbrio entre burocracia e segurança, de modo a atender aos fins (sempre sociais) do direito.
Um bom exemplo de desburocratização é a alteração de algumas das regras referentes ao que se poderia denominar "rito oficial" do óbito, especialmente nas hipóteses de ausência. Como bem se sabe, o Código Civil de 2002 promoveu algumas mudanças cujo objetivo foi desburocratizar a oficialização da morte da pessoa natural. Nesse sentido, houve simplificação e facilitação dos procedimentos atinentes à sucessão provisória e à sucessão definitiva.
Em primeiro lugar, os prazos foram substancialmente encurtados. Assim, a legislação anterior exigia, para a abertura da sucessão provisória, que se passassem dois anos sem notícia do ausente, se não tivesse deixado representante, ou quatro anos, caso tivesse deixado procurador5. O Código Civil em vigor reduziu esses prazos a um ano e três anos, respectivamente, contados da arrecadação dos bens do ausente6.
O prazo para o requerimento da abertura da sucessão definitiva e levantamento das cauções prestadas também sofreu progressiva diminuição. A redação original do art. 481 do Código Civil de 1916 exigia o prazo de trinta anos, depois de passada em julgado a sentença que concedia a abertura da sucessão provisória, para o requerimento de abertura da sucessão definitiva e levantamento de cauções. A Lei nº 2.437, de 7 de março de 1955, reduziu esse prazo para vinte anos, e a lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, reduziu ainda mais o prazo, fixando-o em dez anos7.
Veja-se que, apesar dessas reduções, o legislador entendeu necessário conceder um prazo de trinta dias (inexistente na codificação anterior), contados a partir do trânsito em julgado da sentença que determinar a abertura da sucessão provisória, para que os herdeiros ou interessados compareçam para requerer o inventário e assim evitar que a herança se torne jacente e, posteriormente, vacante8.
Houve, entretanto, uma mudança mais drástica. O Código Civil de 1916 exigia que todo e qualquer herdeiro desse garantias de restituição dos bens recebidos a título provisório, sob pena de ser excluído da partilha e os bens permanecerem os bens sob a administração do curador9. O Código Civil de 2002 mudou essa regra e passou a permitir que os herdeiros necessários (ascendentes, os descendentes e o cônjuge), uma vez provada essa condição, entrassem na posse dos bens mesmo sem apresentar qualquer garantia10.
Diante desse quadro, bem como da indissociável correlação entre burocracia e segurança, pode-se dizer que a redução dos prazos para a abertura da sucessão provisória e da sucessão definitiva foram benéficos, na medida em que a tecnologia e os meios de comunicação do mundo moderno em muito facilitam a busca de pessoas ausentes. Além disso, há a necessidade de assegurar a circulação da riqueza, em um contexto de proteção razoável do patrimônio do ausente.
Por outro lado, a não obrigatoriedade de apresentação de garantias para a imissão dos herdeiros necessários na posse dos bens do ausente certamente desburocratiza o processo, mas o faz à custa da segurança que o direito deveria oferecer ao ausente11, especialmente após ter reduzidos os demais prazos para a transmissão definitiva aos herdeiros.
Nessa coluna então foi possível observar um dos muitos esforços em busca do equilíbrio desburocratização versus segurança jurídica. Em outra oportunidade analisaremos como em algumas situações não é possível transigir da burocracia sob pena do sistema gerar injustiça.
Fiquem conosco, sejam felizes!
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1 Cf. W. S. Holdsworth, Charles Dickens as a Legal Historian, New Haven, Yale University, 1929, pp. 79-115 e J. H. Baker, An Introduction to English Legal History, 4ª ed., Oxford, Oxford University, 2007, p. 111.
2 As reformas do Tribunal da Chancelaria (Chancery Court) foram implantadas por via legislativa e culminaram na fusão administrativa das jurisdições inglesas (common law e equity), cf. Stat. 36 & 37 Vic. (1873), c. 66 e Stat. 38 & 39 Vic. (1875), c. 77.
3 Padre Antônio Vieira, Sermão de Sancto Antônio - Pregado na Cidade de S. Luiz do Maranhão no Anno de 1651, in A. Honorati, O Chrysostomo Portuguez, vol. IV, Lisboa, Mattos Moreira, 1880, pp. 568-569: "Vede um homem d'esses que andam perseguidos de pleitos, ou occupados de crimes, e olhae quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testimunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São peiores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado e já está comido".
4 Acerca das características da burocracia, cf. M. Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, trad. ing. por E. Fischoff et al., Economy and Society - An Outline of Interpretive Sociology, Berkeley, University of California, 1968, pp. 956-958.
5 Art. 469 do CC/1916: "Passando-se dois anos, sem que se saiba do ausente, se não deixou representante, nem procurador, ou, se os deixou, em passando quatro anos, poderão os interessados requerer que se lhe abra provisoriamente a sucessão".
6 Art. 26 do CC/2002: "Decorrido um ano da arrecadação dos bens do ausente, ou, se ele deixou representante ou procurador, em se passando três anos, poderão os interessados requerer que se declare a ausência e se abra provisoriamente a sucessão".
7 Art. 37 do CC/2002: "Dez anos depois de passada em julgado a sentença que concede a abertura da sucessão provisória, poderão os interessados requerer a sucessão definitiva e o levantamento das cauções prestadas".
8 Art. 28, § 2º, do CC/2002: "Não comparecendo herdeiro ou interessado para requerer o inventário até trinta dias depois de passar em julgado a sentença que mandar abrir a sucessão provisória, proceder-se-á à arrecadação dos bens do ausente pela forma estabelecida nos arts. 1.819 a 1.823".
9 Art. 473 do CC/ 1916: "Os herdeiros imitidos na posse dos bens do ausente darão garantias da restituição deles, mediante penhores, ou hipotecas, equivalentes aos quinhões respectivos. Parágrafo único. O que tiver direito a posse provisória, mas não puder prestar a garantia exigida neste artigo, será excluído, mantendo-se os bens que lhe deviam caber sob a administração do curador, ou de outro herdeiro designado pelo juiz, e que preste a dita garantia (art. 478)".
10 Art. 30, § 2º, do CC/2002: "Os ascendentes, os descendentes e o cônjuge, uma vez provada a sua qualidade de herdeiros, poderão, independentemente de garantia, entrar na posse dos bens do ausente".
11 Nesse sentido, cf. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil - Introdução ao Direito Civil e Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, 29ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2016, p. 192.