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Autonomia privada versus autonomia da vontade: a questão na seara notarial

quarta-feira, 8 de março de 2017

Atualizado às 08:51

Vitor Frederico Kümpel e Ana Laura Pereira Pongeluppi

Muito difícil conceituar a atividade notarial, na medida em que não há um regime jurídico específico além do seu viés difuso. Pode ser conceituada como a materialização da vontade lícita e eficaz do sujeito de direito com a finalidade de produzir efeitos judiciais ou extrajudiciais, ou ainda com a finalidade de servir de prova material ou processual. Por conseguinte visa garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos1, atos fatos ou negócios jurídicos2.

Cabe, desde já, um parêntese quanto a essa atuação. Tanto as atividades registral como a notarial estão previstas na Constituição Federal, em seu artigo 236, delegadas ao particular pelo poder público. Tem-se uma figura diversa das delegações administrativas que são mais conhecidas.

Isso porque o poder público delega a esses particulares atividades jurídicas próprias, mas não nos termos do artigo 175 da Constituição Federal, que regula a permissão ou concessão, até pelo fato de a delegação da atividade não se traduzir em cláusulas contratuais3, como ocorre com as outras figuras do mencionado dispositivo. A delegação ora em questão é sui generis, tendo como ente delegante o poder judiciário do Estado e o delgado ou delegatário a pessoa física ou natural do concursado aprovado em certame específico.

Ainda, a delegação das serventias ocorre por meio de um certame de provas e títulos, não havendo procedimento licitatório com posterior adjudicação. Isso configura uma espécie de atividade estatal que está sujeita à fiscalização do Poder Judiciário, e não do Poder Executivo, como ocorre em matéria administrativa. Ainda, como mais uma diferença pontua-se que seus serviços são remunerados por meio de emolumentos que são configurados em lei federal, na qualidade de taxa, e não por tarifa ou preço público4, aplicável ao caso de concessão ou permissão.

Assim, feitas essas breves considerações, uma questão bastante importante se traduz nos princípios da administração pública que regem as atividades notarial e registral. Isso porque apesar das características apontadas derivarem do poder público, as serventias extrajudiciais são reguladas constitucionalmente e por meio da lei 8.935 de 18 de novembro de 1994, a qual traz já em seu artigo 1º os princípios regentes da atividade5, aos quais se fez referência no início do texto.

Aqui já é importante mencionar que muito embora a atividade desempenhada seja pública, em caráter privado, nem todos os comandos do artigo 37 da Constituição Federal são aplicáveis à atividade notarial e registral. Porém, com certeza, os princípios do caput certamente incidem e irradiam seus efeitos nas serventias notariais e de registro.

Um aspecto curioso é que a lei 8.935/1994 traz em seus artigos 12 e 13 as atribuições e competências dos oficiais registradores. Quando comparada a Seção III, que contém somente os dois artigos supracitados, com a Seção II, com a mesma temática, mas que versa acerca dos notários, muito maior e mais discriminada é a descrição das atribuições a serem realizadas, o que denota preocupação do legislador em delimitar melhor a atuação dos notários do que a dos registradores.

Isso se deve ao fato de que os registradores apresentam uma atividade fim, isto é, só fazem o que a lei manda6, nos termos do artigo 12 da lei 8.935/1994, do qual se extrai que cabe apenas a "prática dos atos relacionados na legislação pertinente aos registros públicos".

A atividade registral conta ainda com norma reguladora específica, a Lei dos Registros Públicos (lei 6.015/1973), de forma que só poderá o registrador atuar em estrita conformidade com a lei. Na ausência de disposição normativa deve permanecer inerte, atuando em estrita conformidade com princípio da legalidade7. Aqui vale a parêmia "tudo o que a lei não permite está proibido".

O notário, por sua vez, deve atuar de modo diferenciado. Isso porque além de não ter lei específica que regule sua atuação, contando com toda a gama do ordenamento jurídico brasileiro, composto desde o Código Civil até inúmeras leis esparsas, apresenta-se como uma atividade meio. A atividade notarial pode ser um fim em si mesmo quando se celebra um contrato apenas para a garantia das partes, mas, por regra, é atividade meio. Neste viés observar-se-ão preceitos estritos de legalidade quando da necessidade de ingresso de título em serventia registral ou observar-se-á certa autonomia quando servir de elemento probatório na via judicial ou extrajudicial.

Ainda, o vasto rol dos artigos 6º e 7º da lei 8.935/1994 é meramente exemplificativo, uma vez que - conforme exposto - apesar de delegada, a atividade é privada. E é nesse ponto que se adentra em questionamento principiológico essencial à regulação da atuação dessas serventias: a atividade notarial é regida pela autonomia da vontade ou pela autonomia privada? Ou seriam esses conceitos sinônimos em um contexto neoliberal? Ainda, atividade do notário é administrativa (bloqueio de legitimidade), adotando-se o princípio da legalidade, tal qual na atividade registral? Está o notário sob a parêmia "tudo o que a lei não proíbe está permitido" ou existe controle de legalidade de atos notariais, no sentido não de sua validade, mas como elemento limitador da atuação do tabelião?

Para responder a esses questionamentos, intrínsecos e essenciais à delimitação da atividade, deve-se verificar se há diferenciação entre o princípio da autonomia da vontade e o principio da autonomia privada. A autonomia da vontade provém de um contexto liberal8, dos denominados direitos de primeira geração9, evoluindo para o que a doutrina nacional reconhece como liberdade de contratar10, de forma que caiba às partes a escolha do conteúdo contratual, derivando a concepção voluntarista da autonomia das partes quando da confecção do negócio jurídico11.

Em um contexto neoliberal, privilegiando-se excessivamente a liberdade contratual de forma a atingir os fins liberdade (especialmente a individual), circulação de riquezas e prospecto econômico, há quem reconheça como de mesmo sentido a autonomia privada12, vez que se refere a um contexto atual a espécie de poder que é dado às partes para que regrem suas relações jurídicas, com vista à satisfação de seus interesses13.

Considera-se forçoso pensar em mera transmutação de uma autonomia para a outra. Isso porque a delimitação do direito público e privado, por si só, já revela que algo mudou. O direito privado passou a ter como preocupação mitigar a desigualdade material e o desequilíbrio intrínseco a algumas relações do perfil de contrato proveniente do modelo liberal.

Novos valores, junto ao modelo neoliberal, exsurgem quando do advento do Estado Social. Significa dizer, em linhas gerais, que novos elementos axiológicos passam a reger o ordenamento jurídico de forma a garantir certos valores como a igualdade, dignidade da pessoa humana e ainda o solidarismo. E é nesse contexto que o instrumental jurídico-contratual cede a esses princípios, dando ensejo ao que se pode chamar de espécie de evolução da autonomia da vontade, em consonância com o direito privado.

Como consequência, tem-se que ainda que regidos pela vontade das partes e seu interesse final, a liberdade de contratar passou a ter esteio e limitação no direito, e ainda, o contrato passou a ter como fonte única e por si só legitimadora a vontade das partes, que por sinal não mais é suficiente para justificar os efeitos obrigacionais provenientes do negócio, mas sim da soma do auto regulamento em consonância estrita com a lei e tendo por fator delimitador a equidade.

Assim, forçoso admitir que a autonomia privada que só existe hoje é o mesmo que a autonomia das vontades de outrora. Se analisada dentro da formulação contratual-obrigacional, passa a ser momento posterior não mais constitutivo, mas pode-se dizer remanescente: é a atuação do sujeito jurídico após a incidência das regras legais, restando somente esse espaço balizado pelas normas como o efetivamente livre para que possam impor sua vontade.. O contrato passa a ser visto como uma estrutura complexa. Num primeiro momento operacionaliza-se a vontade convergente das partes, mas o contrato só passa a ser efetivamente vínculo jurídico quando observados os postulado axiológicos impostos pelo Estado Social e de Direito, sendo papel do tabelião preservá-los.

Feitas essas considerações, pontuou-se a diferença entre a autonomia da vontade, demasiadamente livre, e a autonomia privada, inserida devidamente no presente contexto jurídico.

Dentro desse contexto, o tabelião deve tornar a declaração de vontade expressa pelas partes e tornar compatível com o prescrito na legislação. É sua função, portanto, ajustar de modo ativo, isto é, retratar os direitos e as obrigações das partes no ato, devendo se preocupar com a forma legal e até mesmo com a finalidade do documento, para que atinja o fim pretendido pelos declarantes. A função notarial funciona como a "ponte entre a lei e a declaração", dotando de normatividade própria o instrumento público14.

Certo é, portanto, que a atividade não está adstrita, tal como a registral, a fazer somente o que a lei prevê. Está obviamente vinculada à legalidade, mas, tendo em vista a gama de atos que podem ser praticados e seu fim lato sensu de formalizar a vontade das partes15, não faz somente o que a lei permite.

Vale ressaltar que o notário não assume uma função de mero documentador que apenas dá forma ao negócio jurídico, revelando-se como intérprete da vontade das partes, que garante dentro do ordenamento que sua finalidade seja atendida.

Verifica-se ainda que a atuação estará sempre em consonância não com o chamado "direito natural", imutável, muito pelo contrário, nesse momento de neoliberalismo e pós-modernidade, passa a atuar dentro do que o Estado preceitua16.

Inclusive, o desempenho da atividade deve ser totalmente imparcial, zelando pela finalidade pretendida pelas partes e por sua autonomia real da vontade, adequando a referida vontade somente no que não estiver em consonância com as normas legais, mas com os princípios da isonomia e com a boa-fé objetiva, mitigando a desigualdade, uma vez que apresenta também a função profilática preventiva de litígios e conflitos17.

Conclui-se, portanto, que na atividade notarial, diferentemente da atividade registral, pode-se fazer tudo o que a lei não proíbe, zelando o tabelião pela vontade das partes, que será emoldurada dentro dos quadros normativos, cujo ordenamento conta com elementos axiológicos que em um contexto pós-moderno deve se adequar aos ditames do Estado Social, que por sua vez busca garantir, de forma geral, a isonomia efetivada por meio de uma atuação com vistas a mitigar a desigualdade em todas as suas esferas.

__________

1 BRASIL, Lei nº 8.935 de 18 de novembro de 1994.

2 V. F. Kümpel e B. de A. Borgarelli, A lei 13.146/2015 e a atuação de notários e registradores diante dos deficientes.

3 ADI 2.415, rel. min. Ayres Britto, j. 10-11-2011, P, DJE de 9-2-2012

4 ADI 2.415, rel. min. Ayres Britto, j. 10-11-2011, P, DJE de 9-2-2012

5 Art. 1º Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.

6 W. C. Swensson, R. Swensson Neto, A. S. Granja Swensson, Lei de Registros Públicos Anotada, 4.ed., São Paulo, Juarez de Oliveira, 2006, pp. 38-39.

7 V. F. Kümpel e B. de A. Borgarelli, A lei 13.146/2015 e a atuação de notários e registradores diante dos deficientes.

8 C. L. B. de Godoy, Função Social do Contrato, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 2006, p. 13.

9 N. Bobbio (apud) C. L. B. de Godoy, Função Social do Contrato, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 2006, p. 15.

10 O. Gomes, Contratos, 9. Ed., Rio de Janeiro, Forense, 1983, p. 25.

11 C. L. B. de Godoy, Função Social cit. (nota 8 supra), p. 17.

12 C. L. B. de Godoy, Função Social cit. (nota 8 supra), p. 17.

13 C. L. B. de Godoy, Função Social cit. (nota 8 supra), p. 18.

14 W. Ceneviva, Lei dos Notários e dos Registradores Comentada, 9.ed., São Paulo, Saraiva, 2014, p. 39

15 Leonardo Rodrigues e P. R. Gaiger Ferreira, Tabelionato de Notas, São Paulo, Saraiva, 2013, p. 47

16 L. Brandelli, Teoria geral do direito notarial, São Paulo: Saraiva, 2011, p. 292.

17 C. F. de Souza, A Função Notarial na Realidade Jurídica Brasileira.