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Presunção pater is na união estável

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Atualizado às 08:31

Vitor Frederico Kümpel e Ana Laura Pereira Pongeluppi

Questão extremamente complexa e que sempre causou discussão acadêmica acirrada diz respeito à efetividade do princípio da isonomia entre os filhos nas relações de casamento e de união estável. Não obstante a Constituição Federal estabelece de forma categórica que "os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação"1, tão consagrada isonomia só se estabelecia a partir do ato de reconhecimento da pessoa na qualidade de filho.

Isso porque, até o referido reconhecimento, somente os filhos do casamento gozavam de maior proteção2, na medida em que incidia sobre estes a presunção pater is3. Isso significa dizer que os filhos decorrentes das "justas núpcias" podiam ser registrados em nome do pai ou da mãe, bastando para tal que a mãe apresentasse perante o registrador civil a certidão de casamento, à luz do artigo 1.597, incisos I a V do Código Civil4.

Muito embora o registrador civil não questione sobre a origem da filiação, o artigo 1.597 do Código, que instrumentaliza a presunção pater is, mantinha um histórico dediscriminem dos filhos do casamento para os filhos fora do casamento, tanto que o próprio Código Civil subdivide os filhos do casamento - nos artigos 1.596 a 1.606 do Código Civil - e os filhos fora do casamento, no Capítulo denominado "Do Reconhecimento dos Filhos", artigos 1.607 a 1.617 do Código Civil.

Historicamente, os filhos do casamento eram chamados de legítimos ou advindos das justas nupciais5, e a eles eram conferidos todos os direitos (alimentos e sucessão) com exclusividade. Os filhos fora do casamento eram subdivididos em naturais (aqueles cujos pais não têm impedimento) e espúrios (aqueles cujos pais estão impedidos de casar), esses últimos divididos em adulterinos e incestuosos6. Os filhos fora do casamento passaram a gozar de alguns direitos ao longo do tempo.

Com o advento do provimento 52 de 14 de março de 2016, a Corregedoria Nacional de Justiça no artigo 1º, § 1º, estabeleceu que os pais em união estável poderão se valer da presunção pater is nos mesmo moldes que no casamento, ou seja, podendo qualquer um deles comparecer no registro civil munido da Declaração de Nascido Vivo (DNV), escritura pública de união estável, ou sentença em que esta foi reconhecida, lavrando o assento em nome de ambos os genitores7.

Antes do referido provimento do CNJ, caso a mãe comparecesse no Ofício de Registro Civil ou mesmo junto à maternidade e apresentasse uma escritura de união estável ou uma sentença reconhecendo a referida união, só seria possível o registro completo do assento de nascimento, com o nome do pai e dos avós paternos, caso houvesse reconhecimento expresso do genitor, sendo inimaginável a presunção pater is.

Muito embora a presunção aplicada à união estável esteja em total consonância com o artigo 227, § 6º, da Constituição Federal8, é importante deixar claro que tal medida jamais poderia vir de decisão administrativa, sendo absolutamente imprescindível previsão legal acerca da referida matéria. Ademais, é bom deixar claro que o Provimento estende a presunção pater is à união estável de forma extremamente singela e sem considerar uma série de questões relevantíssimas.

A primeira questão diz respeito ao documento que gera presunção de paternidade. No caso do casamento, a presunção decorre da certidão de casamento e apenas a partir do 180º dia da celebração das bodas matrimoniais. No caso da união estável nada é dito. Por absurdo, seria possível a lavratura da escritura pública na véspera do nascimento obrigando o registrador civil a reconhecer a presunção da união estável, posto que o Provimento nada mencionou sobre o prazo da lavratura da escritura ou da decisão judicial.

Se a aplicação é analógica, é óbvio que a escritura pública e a sentença não podem reconhecer a união estável num período anterior a 180 dias para fins de filiação. Tratando-se de sentença declaratória de união estável, poderia o juiz fixar o início da relação, lembrando que o tabelião, por força de sua cognição exaurida, pode até declarar um início da relação, porém, sem ter condições de verificar o seu efetivo termo inicial. Isso significa que ainda que a escritura pública estabeleça determinado prazo de união, o registrador civil deve reconhecer a presunção a partir do 180º dia da lavratura do ato notarial, independentemente do ali consignado, sob pena de conferir mais direitos do que no casamento, o que por si só é uma bizarrice inaceitável.

Outra discussão bastante séria é a da necessidade da lavratura da escritura pública para o reconhecimento da união estável com a finalidade de gerar presunção pater is, na medida em que não há lei a exigir tamanho rigor ao reconhecimento de união estável, que, aliás, é uma união livre, totalmente informal.

As Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo9 mantiveram referido rigor para fins de presunção pater is, mas abrandaram o rigor da escritura pública, admitindo instrumento particular no caso de prova de doação de gametas ou gestação por substituição. Por que não é possível um instrumento particular com firma reconhecida para fins de presunção pater is?

Aliás, a escritura pública em matéria de união estável já era exigida para transcrição da referida união no livro E, o que também era incompreensível. Muito embora louvável a posição da Corregedoria Nacional na concessão de direitos, não parece razoável tamanho ativismo judicial, principalmente no plano administrativo.

As questões todas são extremamente complexas, porém uma coisa é fato: a união estável que nasceu livre e informal, sendo uma entidade familiar que deveria resguardar direitos, sendo opção para aqueles que não tivesse vontade ou interesse de se casar, passa, contudo, a ter contornos rígidos, sendo tão ou mais litúrgica do que o casamento, gerando quase exatamente os mesmos efeitos, fazendo exigir da sociedade alternância para outros modelos familiares que possam vir a estabelecer outros tipos de relações jurídicas mais informais. Tudo isso serve apenas para uma reflexão.

Sejam felizes, até o próximo Registralhas!

__________

1 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

2 "A paternidade, porém, é, por sua natureza, occulta e incerta; e, pois, não pode ser firmada em prova directa, como a maternidade. D'hai a necessidade de funda-la em uma probabilidade que a lei eleva á cathegoria de presumpção legal". In PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos de Família. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial: Superior Tribunal de Justiça: Editora Fac-similar, 2004, p. 219

3 Do direito romano, "pater is est quem justae nuptiae demonstrant", em tradução livre, "é o pai aqueles que demonstrou viver em justas núpcias".

4 Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;

II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;

III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

5 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro, 22ª ed., São Paulo: Saraiva 2006, p.11

6 LUCHESE, Mafalda. Filhos - Evolução até a plena igualdade jurídica in Série Aperfeiçoamento de Magistrados. 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I, p. 232.

7 Art. 1º O assento de nascimento dos filhos havidos por assistida, será inscrito no livro "A", independentemente de prévia observada a legislação em vigor, no que for pertinente, mediante o comparecimento de ambos os pais, seja o casal heteroafetivo ou homoafetivo. munidos da documentação exigida por este provimento.

§ 1o. Se os pais forem casados ou conviverem em união estável, poderá somente um deles comparecer no ato de registro, desde que apresentado o termo referido no art. 2o. § 1o. inciso III deste Provimento.

8 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)

§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

9 Capítulo XVII das NGSCGJ de São Paula, Subseção I 'Do Nascimento decorrente de Reprodução Assistida', item 42-B, diz que "No caso de doação de gametas ou embriões por terceiros; gestação por substituição ("barriga de aluguel"); e inseminação artificial homóloga post mortem, é indispensável, para fins de registro, a declaração, com firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que foi realizada a reprodução assistida, indicando a técnica adotada e se comprometendo a manter, de forma permanente, registro com dados clínicos, características fenotípicas e uma amostra de material celular dos eventuais doadores de gametas ou embriões".