Aspectos registrais do contrato de locação não residencial de imóvel com prévia aquisição, construção ou substancial reforma por parte do locador ou de terceiros (built to suit) - Parte I
terça-feira, 14 de junho de 2016
Atualizado às 08:07
Vitor Frederico Kümpel e Tomás Olcese
O ingresso no ordenamento jurídico brasileiro de práticas negociais oriundas de outros sistemas jurídicos é hoje, quiçá mais do que nunca, um fenômeno inevitável. A busca por negócios jurídicos que ofereçam maior eficiência econômica aos contratantes é um dos principais estímulos à adoção de modalidades contratuais alheias à nossa tipificação dos contratos.
Um contrato que bem ilustra essa tendência é o denominado built to suit, proveniente da tradição jurídica de matriz inglesa. Trata-se de contrato pelo qual uma das partes (denominada "locador", "empreendedor" ou "investidor") se obriga perante a outra (chamada "locatária", "contratante" ou "usuária") a ceder o uso e fruição de uma edificação em determinado terreno seu, após construí-la ou reformá-la substancialmente, de acordo com as especificações convencionadas entre as partes1, atendendo a interesses da parte usuária.
As principais vantagens dessa modalidade contratual consistem, essencialmente, em poupar a usuária da imobilização de recursos financeiros para a aquisição do terreno, bem como em permitir que o pagamento mensal, que inclui tanto o valor do aluguel quanto o da remuneração, seja contabilizado como despesa operacional, reduzindo a carga tributária.
No Brasil, esse contrato foi introduzido pela lei 12.744, de 19 de dezembro de 2012, que alterou o artigo 4º2 e acrescentou o artigo 54-A3 da lei 8.245, de 18 de outubro de 1991. Em essência, pode ser concebido como contrato de locação não residencial de imóvel urbano com prévia aquisição, construção ou substancial reforma do imóvel por parte do locador ou de terceiros. O contrato não foi suficientemente normatizado pela lei, o que acarretou justas críticas por parte da doutrina acerca das deficiências que poderiam ter sido evitadas mediante um tratamento legislativo mais adequado4.
A despeito da sua parca regulamentação, o contrato built to suit pode ser classificado como negócio jurídico contratual atípico misto5 de locação urbana não residencial, caracterizado por ser intuitu personae, consensual, sinalagmático, oneroso e de execução continuada. Dadas essas características, percebe-se que se trata de uma relação contratual complexa e carente de elementos que o tornem seguro e previsível ao longo de todo o período da sua execução, a fim de assegurar que sejam atingidos os fins almejados pelas partes.
Nesse sentido, torna-se imperativo dotar essa relação da maior segurança jurídica possível. Uma forma de assegurar a estabilidade e eficácia do contrato built to suit é levá-lo a registro no Ofício de Registro de Imóveis (princípio da concentração), muito embora há quem pense que poder-se-ia levar a registro no Ofício de Registro de Títulos e Documentos (princípio da subsidiariedade), o que não nos parece ser o mais adequado e seguro6. É bom lembrar que o Ofício de Registro de Imóveis é a única das serventias que por si só gera oponibilidade erga omnes (publicidade passiva), não tendo o Ofício de Registro de Títulos e Documentos (registro de bens móveis) tal condão.
No Ofício de Registro de Títulos e Documentos, para que o contrato possa ser oposto a terceiros por qualquer das partes, nos termos do artigo 129, item 1 da lei 6.015/1973, é necessária publicidade ativa, ou seja, cientificação, por parte da serventia, junto a todos os interessados. Essa precaução é relevante, na medida em que se trata de um único contrato cuja duração tende a ser, em média, de dez a vinte anos. Fica garantido com tal registro a conservação. O princípio res inter alios acta aliis neque nocet neque prodest deve, neste caso, ser afastado, e a simples asserção doutrinária acerca da oponibilidade dos seus efeitos a terceiros7 não é robusta o suficiente para assegurar que pessoas alheias à relação contratual interfiram indevidamente na sua eficácia.
A principal medida registral que pode contribuir à estabilidade da relação contratual entabulada mediante um contrato built to suit, entretanto, é o registro do contrato na matrícula do imóvel em questão, na medida em que, dessa forma, as partes vinculam diretamente a vontade manifestada no negócio jurídico ao imóvel objeto do contrato. É bom lembrar aqui que em nosso sistema registral não deve haver duplicidade de registro. O Ofício de Registro de Títulos e Documentos (RTD) só deve recepcionar títulos e praticar registro se o título em questão não tiver ingresso em outra serventia, já que o ingresso prioritário no registro de imóveis, por exemplo, inibe o registro no RTD.
É necessário, entretanto, que para o título ingressar no Registro de Imóveis, precisa estar enquadrado em uma das hipóteses enumeradas taxativamente em lei, notadamente no rol do artigo 167 da Lei dos Registros Públicos. No caso, a hipótese em que melhor se enquadra a fattispecie de que tratamos encontra-se no artigo 167, inciso I, item 3 da lei 6.015/1973, segundo o qual será feito o registro dos contratos de locação de prédios, nos quais tenha sido consignada cláusula de vigência no caso de alienação da coisa locada. As Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo acrescentam, ainda, a possibilidade de registrar e averbar, além dessa hipótese, contratos de locação de prédios para fins de exercício do direito de vigência e preferência na aquisição8, obedecida nesse caso as normas estabelecidas na lei de locação (lei 8.245/1991).
É claro que, para que o contrato built to suit seja registrável, é imprescindível que essas cláusulas sejam pactuadas e claramente redigidas no instrumento. Não vemos, entretanto, qualquer óbice decorrente da atipicidade do contrato built to suit, na medida em que a tipicidade necessária para o registro está garantida para os contratos de locação e o contrato built to suit, muito embora figura própria, é, em certa medida, espécie locatícia inserida na lei própria sobre a matéria.
Continuaremos explorando as demais condições de registrabilidade desses contratos em colunas subsequentes. Continuem conosco e sejam felizes!
*Tomás Olcese é professor de Direito, pesquisador jurídico e doutor em Direito Romano pela USP.
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1 Acerca das diversas definições elaboradas pela doutrina, cf. F. Henneberg Benemond, Contratos Built to Suit, Coimbra, Almedina, 2013, pp. 19-24.
2 Art. 4º da lei 8.245/1991. Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não poderá o locador reaver o imóvel alugado. Com exceção ao que estipula o § 2o do art. 54-A, o locatário, todavia, poderá devolvê-lo, pagando a multa pactuada, proporcional ao período de cumprimento do contrato, ou, na sua falta, a que for judicialmente estipulada.
3 Art. 54-A da lei 8.245/1991. Na locação não residencial de imóvel urbano na qual o locador procede à prévia aquisição, construção ou substancial reforma, por si mesmo ou por terceiros, do imóvel então especificado pelo pretendente à locação, a fim de que seja a este locado por prazo determinado, prevalecerão as condições livremente pactuadas no contrato respectivo e as disposições procedimentais previstas nesta Lei.
§ 1º Poderá ser convencionada a renúncia ao direito de revisão do valor dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato de locação.
§ 2º Em caso de denúncia antecipada do vínculo locatício pelo locatário, compromete-se este a cumprir a multa convencionada, que não excederá, porém, a soma dos valores dos aluguéis a receber até o termo final da locação.
4 Nesse sentido, cf. O. L. Rodrigues Júnior, Rejeição de Reformas e Revisão de Contrato Built to Suit, in Revista Consultor Jurídico, edição de 24 de abril de 2013.
5 F. Henneberg Benemond, Contratos Built to Suit, Coimbra, Almedina, 2013, p. 94.
6 Coluna acerca dos cuidados a serem adotados ao redigir esses contratos visando a seu posterior registro, cf. M. Gayer Diniz, Contratos de Built To Suit: Cuidados na Elaboração Minimizam Problemas no Registro, in Migalhas, edição de 1º de novembro de 2013.
7 F. Henneberg Benemond, Contratos Built to Suit, Coimbra, Almedina, 2013, pp. 102-103.
8 Item 11.a.3 da Seção II do Capítulo XX do Provimento 58/89 da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo.