O novo CPC e suas implicações na atividade notarial e registral II : o instituto da usucapião administrativa
terça-feira, 5 de abril de 2016
Atualizado às 08:05
Vitor Frederico Kümpel e Rodrigo Pontes Raldi
Dando continuidade à série de artigos, que tem por escopo apontar as principais modificações trazidas pelo novo CPC em matéria notarial e registral, trataremos, na coluna de hoje, do instituto da usucapião extrajudicial, também denominada usucapião administrativa. O procedimento extrajudicial para o reconhecimento da usucapião é matéria nova, introduzida pelo art. 1.071 do novo CPC, que alterou a Lei dos Registros Públicos. Comecemos, então, com uma breve análise crítica dos aspectos materiais da usucapião, passando, em seguida, à descrição do procedimento administrativo de seu reconhecimento, inaugurado pela nova legislação processual.
1. A usucapião e sua relação com o Registro Público no sistema brasileiro
A usucapião é uma das formas de aquisição originária1 de propriedade ou de direito real que recai sobre coisa alheia, tendo em vista não haver, necessariamente, relação jurídica entre o possuidor-usucapiente e o antigo proprietário. Em verdade, ela decorre da lei, uma vez preenchidos os requisitos por esta impostos, vale dizer, o decurso do tempo e a posse - além de outros que, eventualmente, são trazidos pela norma. Consequentemente, diz-se que a usucapião opera ipsu iure2,ou seja, sua concretização se dá com o decurso do prazo legal, sendo a sentença da ação de usucapião meramente declaratória de direito previamente adquirido3.
Nesse contexto, a transcrição da sentença no registro público - até então expressamente prevista no art. 945 do Código de Processo Civil de 1973 como efeito mandamental da sentença declaratória -, tem por escopo tão-somente garantir publicidade à alteração da titularidade do direito real. Logo, nunca foi imprescindível o reconhecimento judicial da usucapião para que se aperfeiçoasse a aquisição da propriedade do bem pelo usucapiente, tampouco seu registro perante órgão competente, diferentemente do que afirma L. Brandelli, que imputa ao possuidor o ônus de levar a registro o processo de reconhecimento da usucapião, sob pena de não torna-la oponível erga omnes4.
Se a propriedade decorrente da usucapião se adquire com o cumprimento dos requisitos legais, já há, tão logo consumado o prazo estabelecido pela lei, oponibilidade desse direito erga omnes, característica inerente aos direitos reais. Lembre-se que a aquisição da propriedade no sistema jurídico brasileiro se dá, via de regra, com o registro. No entanto, o próprio Código Civil traz a usucapião (arts. 1.238 ss.), a acessão (arts. 1.248 ss), a sucessão (arts. 1.784 ss.) e o regime da comunhão universal de bens (arts. 1.667) como exceções a essa regra. Não há como conferir ao possuidor, como faz L. Brandelli, o ônus de levar a registro a usucapião, como se a eficácia de todo e qualquer direito real dependesse do registro.
Veja que o sistema registral brasileiro em muito se difere do modelo alemão, o que traz reflexos sobretudo ao instituto da usucapião. No modelo estrangeiro, o registro público não possui apenas um caráter informativo, mas tem como principal objetivo a proteção do terceiro adquirente5. Ao registro é conferida a chamada eficácia presuntiva do registro público (Vermutungswirkung). Aplica-se como válido o conteúdo do registro, ainda que destoante da situação jurídico-material, em favor do terceiro adquirente, a não ser que este conhecesse a imprecisão (§ 892 BGB)6. Consequentemente, a usucapião (Ersitzung) possui quase nenhuma utilidade prática naquele ordenamento jurídico7.
No entanto, para que o legislador alemão pudesse conferir tamanha segurança jurídica ao registro público, todo o ordenamento jurídico foi direcionado à proteção do terceiro adquirente, por exemplo, com a abstração da causa dos negócios jurídicos que transferem direitos reais (Abstraktionsprinzip), extrema precisão dos registros públicos, entre outros. Fechar os olhos para a realidade brasileira e buscar conferir os mesmos efeitos ao registro público nacional é ignorar a situação de milhares de possuidores que, embora não tenham levado a usucapião à registro, já adquiriram o título dominial, nos termos da legislação vigente.
Assim, a aquisição de propriedade pela usucapião se dá com cumprimento dos requisitos legais, não sendo imprescindível que haja declaração por sentença judicial, tampouco a transcrição da sentença no Registro Público. Nada impede, portanto, o regramento de uma forma extrajudicial para o reconhecimento da usucapião, como forma de facilitar a publicidade dessas aquisições, o que é desejável, embora não constitua ônus ao usucapiente.
2. Procedimento judicial de reconhecimento da usucapião
Como já adiantado, no primeiro artigo dessa série sobre as implicações do novo CPC em matéria notarial e registral8, muito embora seja agora possível o procedimento administrativo para reconhecimento da usucapião, foi expressamente mantida tutela pela via jurisdicional (art. 216-A, § 9o, da Lei dos Registros Públicos), em cumprimento à inafastabilidade constitucional de tutela pelo Poder Judiciário de lesão a direito (art. 5o, XXXV, CF). No entanto, como o novo CPC não reproduziu as regras referentes à ação de usucapião9 (arts. 941 ss. do Código de Processo Civil de 1973), seu trâmite deve se dar pelo rito comum.
3. Procedimento extrajudicial de reconhecimento da usucapião
O procedimento extrajudicial da usucapião segue os ditames do art. 216-A da Lei dos Registros Públicos, introduzido pelo novo Código de Processo Civil, que devem ser observados de forma estrita pelo Registrador. Em caso de lacunas ou omissões, no entanto, a aplicação do novo CPC ocorre de forma analógica e subsidiária10. Para facilitar a compreensão das regras trazidas pelo novo dispositivo, analisaremos o procedimento de forma sistemática.
3.1 Partes do processo administrativo: O art. 216-A, caput, traz como interessado para a propositura do processo extrajudicial de usucapião aquele que exerceu posse direta durante o prazo legal (possuidor originário), bem como o possuidor derivado, decorrente de acessio possessionis.
Por sua vez, os requeridos devem ser todos os titulares de direitos reais ou de outros direitos registrados e averbados na matrícula do imóvel, conforme determina o art. 216-A, § 2o, devendo o oficial notificar eventuais titulares não mencionados para que consintam com a usucapião. Além disso, o art. 216-A, § 4o, exige a publicação do procedimento em jornal de grande circulação, para a ciência de terceiros interessados.
3.2 Representação por advogado: Muito embora o procedimento administrativo não exija, via de regra, a representação da parte por advogado, o art. 216-A, caput, excepciona essa regra, como forma de garantir maior juridicidade ao procedimento. Logo, deverá o requerente apresentar procuração com poderes especiais e expressos para o ingresso do pedido de reconhecimento extrajudicial.
3.3 Competência: O caput do art. 216-A contém imprecisão técnica ao determinar a competência do Ofício de Registro de Imóveis da "Comarca" em que estiver situado o imóvel. Isso porque, a divisão dos Ofícios de Registro não se dá em Comarcas, mas sim em circunscrições imobiliárias, devendo, portanto, ser esta a leitura a ser dada ao referido dispositivo.
3.4 Prenotação: Uma vez apresentado o pedido de reconhecimento administrativo da usucapião, bem como verificado o cumprimento dos requisitos dos incisos I a IV do art. 216-A, caput, deverá o Oficial do Registro autuá-lo, prorrogando-se o prazo da prenotação até a decisão sobre o acolhimento ou rejeição.
3.5 Qualificação Registral: O Registrador deverá, uma vez autuado o pedido, analisar a possível qualificação positiva, para posterior realização do ato de registro. Em primeiro lugar, deve verificar se a planta contém todas as assinaturas dos titulares de direitos reais e demais direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel, promovendo a notificação dos ausentes para que se manifestem sobre o consentimento (art. 216-A, § 2o). Observe-se que o silêncio do titular de direito notificado não pode ser interpretado como anuência. Muito embora, a doutrina registral entenda que o requisito em questão é um retrocesso, sob o ponto de vista constitucional, não é possível pensar em sentido contrário. Isso porque, a tutela fundamental não é do usucapiente, e sim do proprietário tabular.
Em seguida, deverá o Registrador dar ciência à União, ao Estado, ao Distrito Federal e ao Município, para que se manifestem sobre o pedido (art. 216-A, § 3o). Nessa hipótese, não havendo a mesma previsão quanto ao silêncio, deverá este ser entendido como concordância tácita com o pedido. Aqui é possível o referido raciocínio, no sentido de o silêncio equivaler à anuência, pois não obra contra o proprietário.
Necessária também a publicação procedimento em jornal de grande circulação, para a ciência de eventuais terceiros interessados, que terão o prazo de 15 dias para se manifestarem (art. 216, § 4o).
Entendendo o oficial que não estão preenchidos quaisquer dos requisitos legais, deverá emitir de forma fundamentada uma nota de recusa. O interessado, nessa hipótese, poderá se conformar ou requerer suscitação de dúvida, conforme determina o art. 216, § 7o. Lembre-se que a recusa do pedido não impede o ingresso de ação de usucapião pela via jurisdicional (art. 216-A, § 9o).
3.6 Registro
A usucapião deverá ser registrada pelo oficial ou seu preposto, tão logo preenchidos os requisitos legais, bem como decorrido o prazo para manifestação de terceiros interessados (art. 216-A, § 4o), nos termos do art. 216-A, § 6o. Cumpre observar, conforme determina o art. 2o da Medida Provisória n. 700/2015, que só deverá ser aberta nova matrícula quando a usucapião recair apenas sobre parte da área do imóvel registrado. Caso a área coincida com a constante do registro, não é aberta nova matrícula, mas registrada apenas a aquisição originária11.
Tem-se consagrada, com as alterações promovidas pelo novo CPC, portanto, a possibilidade de reconhecimento extrajudicial da usucapião. O tema é, no entanto, bastante complexo, de modo que nem todas as problemáticas que dizem respeito ao instituto puderam ser abarcadas no presente artigo. À medida que novas questões venham surgindo, novos textos sobre a temática serão publicados nas colunas quinzenais do "Registralhas".
Continuem conosco.
Alegria!
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2 F. C. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado - Tomo XI - Direito das Coisas: Propriedade. Aquisição da propriedade imobiliária, 2a ed., Rio de Janeiro, Borsoi, 1971, p. 117.
3 F. C. Pontes de Miranda, Tratado cit. (nota 2 supra), p. 48; J. C. M. Salles, Usucapião de bens imóveis e móveis, 3a Ed., São Paulo, RT, 1995, pp. 109-110; e O. Gomes, Direito das Coisas, 12a Ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997, pp. 172-173.
4 L. Brandelli, Usucapião Administrativa, 1a Ed., São Paulo, Saraiva, 2016, p. 60.
5 F. Baur, J. Baur e R. Stürner, Sachenrecht, 18a Ed., München, C. H. Beck, 2009, p. 741.
6 P. Bassenge, in O. PALANDT et al., Bürgerliches Gesetzbuch Kommentar, 71ª Ed., München, C. H. Beck, 2012, p. 1465.
7 F. Baur, J. Baur e R. Stürner, Sachenrecht cit. (nota 5 supra), p. 742.
8 V. F. Kümpel, e R. P. Raldi, O novo CPC: Implicações na Atividade Notarial e Registral I, s.l.
9 Com o fim da audiência preliminar de justificação da posse (lei 8.951/2013), a ação de usucapião deixou de ter rito especial, seguindo o rito ordinário na vigência do CPC de 1973.
10 L. Brandelli, Usucapião cit. (nota 4 supra).
11 No mesmo sentido: L. Brandelli, Usucapião cit. (nota 4 supra), p. 108.