Unificação cadastral e o registro civil das pessoas naturais: Considerações preliminares acerca do futuro da serventia
terça-feira, 8 de março de 2016
Atualizado às 08:32
Iniciamos a coluna Registralhas de 2016 com um tema multifacetado, com aspectos positivos e negativos e de extrema importância: o projeto de lei 1.775/15, qual seja, unificação cadastral.
Basicamente, o referido projeto tem por escopo unificar Certidão de Nascimento, Registro Geral, Cadastro de Pessoa Física, Título de Eleitor, carteira de habilitação e passaporte em apenas um documento, sob um mesmo número e com base de armazenamento e gerenciamento dessas informações de toda a população brasileira numa única base de dados.
É inegável que o projeto de lei em si tem aspectos extremamente positivos. Quem não sonha com um único número universalizado? Quem não gostaria de que as informações difusas remanescessem concentradas em um único locus? Quem não gostaria que o cidadão fosse identificado sem duplicidade? Quem não gostaria que a evasão de renda fosse reduzida? Será que o preço pago para tudo isso vale a pena no projeto em questão?
É necessário, após a abordagem inicial do referido projeto de lei, verificar os efeitos em sede de registro civil. Não se busca esgotar tema tão complexo, apenas trazer á reflexão algumas poucas questões
O Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN) é a serventia extrajudicial que tem por finalidade assentar todos os principais fatos naturais da pessoa humana, a saber: nascimento, casamento e óbito além de outros considerados periféricos, como interdição, emancipação, ausência, entre outros. A serventia em questão sucedeu a própria Igreja Católica no mapeamento das pessoas naturais, está em todo município do Brasil e vem realizando um excelente trabalho, cada vez com maior comodidade para a população. Tem conseguido dar publicidade dos atos e manter a privacidade das pessoas. Aqui já está um aspecto secundário para o projeto de lei em questão, por ser vital ao homem comum.
É no Registro Civil das Pessoas Naturais onde se resguardam direitos que acompanham a pessoa desde seu nascimento até sua morte; contribui para a formação de dados estatísticos (IBGE, INSS, Justiça Eleitoral), e é pressuposto para o exercício da cidadania1. No decorrer da existência da pessoa há diversas situações diretamente ligadas as suas necessidades vitais. Desta forma, é preciso que tais qualidades sejam registradas para conhecimento de toda a sociedade.
O registro civil pode, ainda, ser definido como "um escrito, feito como determina a lei, destinado a fornecer uma prova fácil, barata e certa, sobre a existência e o estado das pessoas"2. Porém, não serve apenas para fornecer prova, mas também para conferir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos3.
Há, ainda, quem atribui a concepção de jurisdição voluntária, na medida em que desempenha administração pública de direitos ou interesses privados, sem caráter contencioso. A jurisdição contenciosa, incidente nos casos de litigiosidade, reclama a atuação exclusiva do judiciário.
O Registro Civil das Pessoas Naturais4 é, dentre serventias extrajudiciais, aquela que recebeu por atribuição a tutela fundamental do cidadão nos atos básicos e essenciais norteadores da dignidade da pessoa humana (art.1º, III da CF/88). Nesse sentido. O RCPN tem como bem jurídico fundamental a dignidade humana e o exercício dos direitos de cidadania.
A competência da serventia está determinada nos artigos 236 da Constituição Federal, bem como pela lei 6.015/73 e Lei 8.935/94. Daí, portanto, decorre o primeiro problema da lei 1775/15, fornecer competência ao Tribunal Superior Eleitoral para controlar o órgão e ainda normatizar e fiscalizar a atividade registral, já que há previsão para que regule o controle da dados os quais até o momento, é realizado pelo RCPN.
A competência para fiscalizar os ofícios de registro é dos tribunais estaduais, de forma que referido texto legal, se aprovado, além de ferir elemento essencial no tocante à competência, pode ser visto também como inconstitucional. Inclusive, nesse caso para que possa ampliar competência do TSE, devem ser realizadas por lei complementar, sendo que o projeto 1775/15 é de lei ordinária.
Muitas questões têm sido levantadas. Como pode o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que tem competência constitucional para análise de todas as questões que envolvem o sufrágio controlar direta ou indiretamente o registro civil? Como pode o TSE centralizar toda a base de dados tendo poder para disponibilizá-la a outros órgãos estatais e inclusive à iniciativa privada5? Como podem dados referentes à essência da pessoa natural estar em comércio? É bom lembrar que as serventias extrajudiciais estão, sim, sob controle do poder judiciário, porém estadual, quer sob o ponto de vista da regulação, quanto da própria fiscalização e controle.
Além de tudo isso, existe um problema de capilaridade, na medida em existem doze mil Registros de Ofício Civil espalhados pelo Brasil e que prestam serviço de ótima qualidade, não cabendo ao TSE, por meio de suas zonas eleitorais, substituir ou complementar o referido serviço de nenhuma maneira.
Diante desse quadro, é louvável o projeto de lei sob o ponto de vista da unificação para uma melhor prestação de serviços, porém, com cuidado de não usurpar competência de serventia extrajudicial que vem prestando um bom serviço há mais de um século e que protege a intimidade do cidadão.
São questões que precisam ser melhor debatidas pela sociedade antes do referido projeto se tronar lei, e aí sim apresentar surpresa à sociedade e aos operadores do direito.
Até o próximo Registralhas!
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1 CENEVIVA, Walter, Lei dos Registros Públicos Comentada, 15. Ed, São Paulo, Saraiva, 2003.
2 STARLING, Leão Vieira, Registro Civil Brasileiro. Decreto N. 18.542 de 24 de dezembro de 1928. 1. L. P. T, Gazeta de Leopoldina Ltda, 1929. p. 2.
3 Art. 1º da Lei 8.935/94.
4 CENEVIVA, Walter, Lei dos Registros Públicos Comentada, 15. Ed, São Paulo, Saraiva, 2003, p.3.
5 Art. 8º O Tribunal Superior Eleitoral poderá firmar acordo, convênio ou outro instrumento congênere com entidades governamentais ou privadas, com vistas à consecução dos objetivos desta Lei, observado o disposto no art. 31 da lei 12.527, de 18 de novembro de 2011.
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* O artigo foi escrito com a colaboração da estudante de Direito da USP e pesquisadora jurídica Ana Laura Pongeluppi.