A doação em regime de separação obrigatória
terça-feira, 29 de abril de 2014
Atualizado às 08:38
Recentíssima decisão da 3ª turma do Superior Tribunal de Justiça1 determinou a validade da doação efetuada pelo de cujus à sua consorte antes do casamento sob o regime de separação obrigatória de bens. O fundamento da decisão se deu sob o reconhecimento de união estável anterior ao casamento, a qual afastaria a norma insculpida no artigo 312 do Código Civil de 1916 que guarda relação com o artigo 1.647, inciso IV do Código atual, ou seja, absoluta incomunicabilidade de bens no regime de separação obrigatória nos casamentos de sexagenários, hoje septuagenários. A ministra Nancy Andrighi considerou o atualíssimo pensamento, que não vigorava por ocasião dos fatos, de que para o casal em questão o regime de separação obrigatória não precisaria incidir. Sob essa premissa fundamental, entendeu válida a doação porque o casal já convivia por ocasião das bodas, tendo, portanto, a faculdade de adotar regime diverso da separação obrigatória, conforme enunciado 261 da III jornada do Conselho da Justiça Federal. Contudo, o grande problema é que lido o extrato da decisão de forma simplista, poder-se-ia concluir que o STJ flexibilizou a doação em regime de separação obrigatória de bens, o que de fato não ocorreu.
O tema envolvendo o regime de separação obrigatória, por si só, é extremamente complexo e tortuoso, sérias dúvidas pairam sobre a existência de um único regime de separação voluntário ou obrigatório, ou da existência de dois regimes que muito embora guardem em comum a não comunicação de bens, ainda sim são distintos por uma série de fatores, inclusive pela incidência da súmula 377 do STF. O que é bom que fique claro é que o regime de separação veda a existência de um condomínio germânico, porém, não a existência do condomínio romano à luz dos artigos 1.314 e seguintes.
Bem é verdade, a discussão em torno da hipótese desarrazoada de determinação do regime de separação obrigatória de bens aos maiores de setenta (maiores de 60 até o advento da lei 10.406 de 2002) - o Código de 1916 previa a adoção da separação legal à mulher com mais de 50 anos e ao homem sexagenário. De fato, a obrigação acaba por impor mais uma sanção, que propriamente uma proteção aos cônjuges, afrontando também o próprio Estatuto do Idoso. É bom mencionar que a teleologia da norma visava evitar casamento por interesse econômico, gerando de toda a sorte um preconceito e um bloqueio, determinando uma situação, muitas vezes desarrazoada. Nesse contexto, a exceção à obrigatoriedade caberia exclusivamente ao casamento antecedido por união estável, situação em que os noivos poderiam escolher o regime que melhor lhes conviesse. Isso significa que se o casal já convivia em união informal antes de atingir a idade proibitiva em que não havia bem jurídico a tutelar (casamento por interesse), de forma a gerar plena liberdade na adoção do regime que melhor lhes aprouvesse. E é sobre este último ponto que se pautou a ministra Nancy Andrighi, reconhecendo que até mesmo a hipótese da imposição do regime matrimonial de bens seria questionada, quando da realização do casamento entre as partes, em razão de antecedente união estável, que vivenciavam há oito anos. É bom apenas mencionar, que a ministra fez uma interpretação atemporal, pois pegou uma situação do passado e aplicou regra do presente.
Também se discutiu no caso em tela a incongruência da restrição da invalidade da doação no caso do superveniente matrimônio, posto que inexistente ou inválido o casamento não haveria qualquer óbice à doação, trata-se de silogismo complexo, mas considerando que o casal já coabitava há 8 anos e se encontrava em uma união estável em que reinava por presunção as regras da comunhão parcial, nada impediria a validade da referida doação. Dessa sorte, a norma estava obrando contra a sua que simplesmente se conhecessem para fins de casamento e diante da inexorável obrigação de se casar sobre o regime da separação obrigatória, passassem a burlar a norma, por meio de doações antenupciais ou anteriores ao casamento posto cientes de que durante a vigência nada comunicaria. No caso não é razoável imaginar que o arcabouço legislativo visava estabelecer maior tutela protetiva ao casal na ausência do matrimônio.
É bem verdade que o enunciado sumular 377 surgiu por força do artigo 259 do código civil de 1916, não reproduzido no atual, o referido artigo determinava a comunicação dos aquestos no regime de separação total convencional, a fim de proteger a mulher vulnerável, alijada do mercado de trabalho. O Supremo Tribunal Federal na época entendeu que os efeitos do artigo 259 deveriam ser estendidos também para o regime da separação total obrigatória a fim de igualar os dois regimes na tutela em questão. Ocorre que com a revogação expressa do artigo 259 pelo atual código, a súmula 377 perdeu o seu sustentáculo que era a isonomia do regime de separação. Porém, o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, em sede de dúvida registral entendeu vigente a súmula 377, quer para os casamentos anteriores ou posteriores ao código civil atual, entendendo ser obrigatória a outorga uxória ou marital no regime de separação obrigatória, estabelecendo uma verdadeira distinção entre o regime da separação obrigatória e da separação convencional, não justificável sob qualquer prisma que se queira encarar hoje a questão.
Não à toa, quando imposto o regime da separação obrigatória, surgem questionamentos sobre a possibilidade e por que não utilidade da firmação do pacto antenupcial entre os nubentes? Verdade é que se a finalidade do mesmo realmente for a simulação de negócio tendo em vista o afastamento do regime de separação absoluta, o pacto será inválido e ineficaz.
Há que se considerar ainda a relevância do interesse social, melhor servido pela flexibilidade e mutabilidade a serviço do bem estar social. A nova sociedade carece de um direito de vanguarda, flexível e célere, por isso, o enfoque do direito de família deve sempre adaptar-se às novas exigências de uma realidade cambiante, pautado sob as égides da segurança jurídica.
A vedação às doações antenupciais nas hipóteses de celebração de casamento pelo regime da separação obrigatória foi restrição que visou evitar a burla do regime, eventual pressão de um dos contraentes sobre o outro, com a possibilidade de comunicação imprópria de bens, principalmente na hipótese em questão que o objetivo maior é evitar o interesse econômico. No caso da doação embora a preocupação legal seja diversa, visto que não há a finalidade da proteção de descendência, sendo o mote maior a oportunidade do compartilhamento da fortuna entre os cônjuges, a preocupação com a preservação e permanência do regime estabelecido pelo código é essencial à proteção e dignidade da família, garantida pelo Estado (art. 226 CF). Embora, admita-se que por outro lado, a proibição absoluta da comunicação de bens também possa dar margem a graves injustiças e incovenientes2.
A família passou por nítidas mudanças e o Código Civil de 2002 atrelado à Constituição Federal estabeleceu como valor primordial daquela a afetividade, tendo a em vista a dignidade da pessoa humana e seus princípios decorrentes que visam influenciar fortemente a aplicação nos negócios jurídicos adentrados nos ramos imobiliários, incluindo vetores hermenêuticos quando da qualificação dos títulos que versam sobre o direito de família.
Por fim, visando sempre a operabilidade e melhor aplicação do direito, é essencial que se volte sempre ao exame das necessidades e particularidades que tocam a cada caso. O mote é evitar a repercussão e generalização de especificidades à espécie de um leading case, sob pena de criar hipóteses não contempladas pelo sistema. Como dito, no caso discutido, não houve a flexibilização do regime de separação obrigatória, que assim permaneceu com seus pesares e benesses. Logo, requer-se sempre a análise da razoabilidade e proporcionalidade, tendo por fim maior o equilíbrio entre o direito de família e as questões patrimoniais. Daí o desafio.
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