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Usucapião Tabular e Segurança Jurídica - II

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Atualizado em 20 de janeiro de 2014 15:56

Dando prosseguimento à nossa discussão sobre o usucapião tabular, dentro de suas peculiaridades e benefícios concedidos ao cidadão, abordaremos hoje a sua função sócio econômica no ordenamento a partir do vetor da segurança jurídica até o primado da circulação de riqueza.

A estrutura formal dos sistemas de registro, envolvendo a certeza, a absoluta previsibilidade, bem como a veracidade, vem ao longo do tempo impactando de forma particular a economia. Nesse sentido, dentro do cenário fundiário brasileiro, é fundamental o estudo de alternativas que priorizem a regularização dos imóveis e por via de consequências dos registros, diferenciando, por conseguinte, a posse da propriedade dentro de um Estado Democrático de Direito. Para tanto, tem papel peculiar o instituto do usucapião tabular, na medida em que o seu objeto é a regularização formal da propriedade, impactando, portanto, a vida econômica e social do cidadão.

Conforme discutido no artigo anterior, o parágrafo único do art. 1.242 do CC, ao reduzir o prazo do usucapião ordinário de dez para cinco anos, se o imóvel foi adquirido onerosamente e registrado, mas, posteriormente, teve seu registro cancelado, atualiza o antigo instituto do usucapião na medida em que simplesmente visava tornar proprietário o possuidor esbulhador . O disposto acima mencionado passou objetivar regularizar uma situação de alguém que tinha um titulo dominial formalmente insubsistente. Desse modo, o instituto se adapta à nova realidade e passa a proteger muito mais do que a tutela da posse, uma vez que atua em benefício da regularização formal dos imóveis dentro da tábula registral. Ganha, portanto, novos contornos, o que, inclusive, justifica a redução considerável do prazo para o seu aperfeiçoamento. Nessa linha de raciocínio o prazo poderia ser inclusive inferior a cinco anos, já que houve uma aquisição onerosa, estando, portanto, em consonância com o consagrado princípio da vedação ao enriquecimento sem causa.

O novo instituto, porém, não deixa de considerar os requisitos da boa-fé e do justo título do possuidor, em absoluta observância da função social por determinar investimentos de interesse social e econômico no imóvel, procedendo, portanto, ao cumprimento do consagrado artigo 5º, XXIII, da CF/88.

Na perspectiva de regularização da propriedade e de resolver o problema daquele que não sabia, e não tinha como saber, do vício presente no título, o CC se valeu da teoria da aparência, recepcionada no ordenamento jurídico em diversos artigos, dentre os quais o aclamado artigo 1.817. Logo, para a caracterização da proteção dispensada à aparência do direito consideram-se os requisitos subjetivos da boa-fé e do erro escusável que devem atuar inseparavelmente conjugados com os seguintes requisitos objetivos: (i) situação de fato cercada de circunstâncias tais que manifestamente a apresentem como se fora uma situação de direito, (ii) situação de fato segundo a ordem geral e normal das coisas e (iii) que o titular aparente se apresente aos olhos de todos como o legítimo titular.

Desse modo, aplica-se a teoria da aparência na venda a "non domino", em que embora o transmitente não seja o dono da coisa, o adquirente está na convicção de que trata com o proprietário, dado que o titulo é juridicamente perfeito e capaz de iludir qualquer indivíduo em semelhante situação. Desse modo, o elemento pretensamente racional, lógico, dá lugar àquilo que se apresenta como irracional, como é o caso da aparência, pela incidência de valores mais importantes no sistema jurídico, e da segurança das próprias relações jurídicas1. Assim, para a conversão em realidade do direito de propriedade, resta a demonstração de titularidade formalizada por meio do registro. Para tanto, a teoria da aparência aliar-se-á à presunção de veracidade dos registros públicos.

Há duas correntes distintas e opostas quanto à presunção de veracidade do registro. Os defensores da presunção relativa se apoiam no fato de que determinados vícios do título podem gerar a invalidade do registro e, portanto, o seu cancelamento. Já quem defende a presunção absoluta, tem por base a complexidade da atividade, somada à publicidade passiva, de modo a privilegiar o adquirente cauteloso e a garantir que o registro possua maior eficiência, bem como a atividade registral em seu todo. A teoria da presunção absoluta de veracidade dos registros públicos é adotada pelo direito alemão, por exemplo, tendo o Brasil se afastado desta última teoria, na medida em que a grande dimensão territorial exige flexibilidade do modelo, o que em nada compromete a segurança.

O ordenamento jurídico brasileiro, portanto, não prevê a presunção absoluta, como regra, podendo a veracidade do registro oscilar, quando houver nulidade ou anulabilidade do título que deu origem ao registro, ou mesmo defeito de inscrição ou fraude na execução - hipóteses previstas no artigo 216 da lei 6.015/73.

Nesse sentido, dentro do contexto do importante papel dos registros públicos na fundamentação econômica dos direitos de propriedade, o registrador espanhol Fernando Méndez González destaca que "independente do sistema registral escolhido por um dado país, ele deve garantir os direitos do adquirente e dar segurança jurídica para que as transações ocorram com previsibilidade e certeza". Desse modo, afirma que um bom sistema de registro de direitos possui mecanismos que assimilam informações relevantes, como garantias reais que assegurem a titularidade do bem2.

Nesse contexto, o grande objetivo do usucapião tabular é fazer com que a titularidade registral coincida com a verdade social, em consonância, ainda, com o artigo 1.247 do CC. Assim, prestigia, sobremaneira, o princípio da boa-fé e a lídima circulação de riquezas. A aparência deve coincidir com a realidade do registro, exatamente nas hipóteses em que a dignidade da pessoa humana resguarda-se no amplo limite da inserção social.

Por esse motivo, o cancelamento do registro, requisito previsto para aplicação do instituto do usucapião tabular, deve ser sempre motivo de questionamento, a fim de que seja possível aferir com precisão o momento em que houve o erro e, tembém, quem deve ser responsabilizado. O questionamento adequado a respeito do cancelamento do registro permitirá que apenas o indivíduo que agiu de má-fé cubra os prejuízos sofridos pelos titulares de boa-fé.

Em julgamento de recurso especial3, o STJ reconheceu a aplicação do usucapião tabular também para o caso no qual a matrícula não havia sido cancelada, embora estivesse bloqueada há mais de doze anos. Foi proferido o entendimento no sentido de que, mesmo a lei prevendo como pré-requisito para a aplicação do instituto o cancelamento do registro do imóvel, deve-se considerar o longo prazo durante o qual a matrícula esteve bloqueada, desse modo a situação pode ser equiparada ao cancelamento. O entendimento da Terceira Turma foi contrário à determinação proferida pelo magistrado de primeira instância, que havia indeferido a petição inicial dizendo ser indispensável o requisito de cancelamento do registro.

No STJ o recurso foi interposto pelos compradores do imóvel que, tendo realizado o registro em 1996, viram este ser bloqueado posteriormente por decisão judicial. Interessante perceber que o STJ reconheceu o interesse de agir dos compradores/proprietários de usucapião tabular, priorizando assim o interesse e o direito do comprador, ao invés de seguir a letra fria da lei.

A prioridade é, portanto, garantir um equilíbrio entre a estabilidade necessária para aplicação do instituto do usucapião, e a preservação do direito do adquirente de boa-fé que, por motivos alheios teve seu registro cancelado ou, como vimos, bloqueado por tempo indeterminado. Desse modo, o usucapião tabular esta apto a proporcionar grandes benesses à questão fundiária brasileira. Dado que, como afirmou Sérgio Jacomino, "a balburdia fundiária, tantas vezes denunciada é um elemento perturbador da economia e contribui para fragilizar as propriedades e as garantias de crédito já que os direitos podem se esfarelar de uma hora para a outra, em decorrência da anulação dos registros".

Neste sentido, o usucapião tabular é um instituto de extrema valia para o direito e para economia brasileira, além de via adequada e célere para proteger o cidadão adquirente de boa-fé. O ordenamento lhe confere a segurança necessária dentro dos limites da teoria da aparência, aliada à presunção de veracidade dos registros públicos. E, a prática demonstra que a avaliação do preciso momento do cancelamento do registro garantirá a responsabilidade dos prejuízos ao empregador da má-fé. Tudo em um contexto de amplo fundamento social, primando pela estabilidade e segurança das relações fundiárias brasileiras, conforme previsto pela lei maior (art. 184, CF). Um bom sistema de registros públicos, que promova a segurança jurídica e a certeza, é de valia inestimável ao desenvolvimento econômico e social.

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1 - KÜMPEL, V. F. Teoria da aparência no Código Civil de 2002. São Paulo: Método. p. 43.

2 - https://www.cnj.jus.br/noticias/noticias/cnj/16217:para-especialistas-registros-publicos-confiaveis-tem-impacto-na-economia. Acessado em 05.12.2013

3 - REsp nº 1133451. Julgada pela Terceira Turma. Ministra Relatora: Nancy Andrighi. Data do julgamento: 27.03.2012.