PL 4/25: Notas breves sobre as propostas para os artigos 1º, 3º e 4º do Código Civil
segunda-feira, 7 de abril de 2025
Atualizado às 10:50
Procurando honrar o compromisso de escrever alguns textos curtos sobre as propostas de revisão e atualização do Código Civil contidas no PL 04/2025, passo a tratar das sugestões de alteração dos artigos 1º, 2º e 3º.
Quanto ao art. 1o, o PL propõe a manutenção do caput com a inclusão de parágrafo único com a seguinte redação:
Art.1º...
Parágrafo único. Nos termos dos tratados internacionais dos quais o País é signatário, reconhece-se personalidade internacional a todas as pessoas naturais em território nacional, garantindo-lhes direitos, deveres e liberdades fundamentais.
A inclusão deste dispositivo remete ao caput do artigo 5o da Constituição Federal, que garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
No passado, houve alguma discussão sobre se a frase estrangeiros residentes no país implicaria negar aos estrangeiros não residentes no Brasil- turistas, por exemplo- a proteção daqueles direitos fundamentais.
Esse tipo de dúvida revela a filiação a um positivismo à Austin, que já não é levado a sério. Os chamados direitos fundamentais nada mais são do que a positivação de direitos naturais, por definição, universais e aplicáveis a todo ser humano.
Quando o Código Civil de 1916, em seu artigo 2o, e o Código Civil de 2002, em seu artigo 1o, proclamaram que toda pessoa é capaz de ser titular de direitos e deveres, evidentemente, incluíram o estrangeiro.
Poder-se-ia, então, supor inútil a inclusão do referido parágrafo único, mas não é o caso.
A intensificação dos fluxos migratórios, historicamente atrelada ao recrudescimento da xenofobia, justifica que os tratados internacionais e o direito positivo de cada nação reafirmem o óbvio: a pessoa humana- nasça onde nascer, esteja onde estiver- é, sempre, titular de direitos, liberdades e deveres qualificados como fundamentais justamente porque sem eles o ser humano fica exposto aos abusos da tendencial tirania desumanizadora de todo Estado.
A inclusão do parágrafo único ao artigo 1o do Código Civil nada mais faz do que reproduzir o disposto em alguns tratados internacionais, como:
Art. 6º da Declaração universal dos Direitos Humanos: Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.
Art. 16 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos: Toda pessoa terá direito, em qualquer lugar, ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.
Art. 3º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.
Duas notas exegéticas podem ser úteis. A utilização do adjetivo internacional ligado ao substantivo personalidade acabou por ser criticada difusamente por alguns em palestras, sob o argumento de que a expressão seria confusa ou vazia de significado.
A afirmação não é correta. Qualquer dicionário demonstra que a palavra internacional significa: (i) conhecido fora de seu país (Houaiss); (ii) de nação a nação; entre nações (Diccionário Encyclopedico Illustrado da Lingua Portuguesa).
Assim, o dispositivo proposto pelo PL 4/25 afirma que a personalidade civil da pessoa humana é atributo reconhecido universalmente.
Quanto à segunda nota exegética, serve apenas para aclarar a locução prepositiva Nos termos dos tratados internacionais dos quais o País é signatário.
Essa locução de modo nenhum pode ser interpretada de modo a fazer com que somente se reconheça universalmente a personalidade civil de uma pessoa humana se isso estiver previsto em tratado internacional. Como já afirmado, a personalidade civil da pessoa humana é atributo inato e que, por isso, independe de previsão legal, convencional ou mesmo na constitucional.
Quanto ao artigo 3o, o PL propõe a seguinte redação:
"Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:
I - os que tenham menos de 16 (dezesseis) anos;
II - aqueles que por nenhum meio possam expressar sua vontade, em caráter temporário ou permanente."
O caput sofre alteração redacional para adequar o texto ao que nunca foi objeto de dúvida: a incapacidade absoluta não impede que o absolutamente incapaz exerça atos da vida civil, mas que o faça pessoalmente. É dizer, ele, por meio de seu representante, exercerá todos os atos da vida civil.
A novidade vem com a (re)inclusão do inciso segundo.
Com efeito, a lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) trouxe proteções merecedoras dos maiores encômios, como as referentes à acessibilidade física.
Não obstante, ao submeter todas as pessoas com deficiência ao mesmo regime jurídico, criou a absurda situação de retirar proteção jurídica das pessoas com severas deficiências intelectuais e severas enfermidades mentais. Basta dizer que essas pessoas, ao serem tidas como capazes ou, no máximo, como relativamente incapazes, sofrem os efeitos da prescrição, perdem direitos por usucapião e podem celebrar negócios jurídicos que serão, no máximo, anuláveis.
O PL 04/2025 busca remediar a situação ao incluir no rol de absolutamente incapazes aqueles que por nenhum meio possam expressar sua vontade, em caráter temporário ou permanente.
Quando da discussão dessa proposta, sugeri que a redação do artigo 3o fosse a seguinte: São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 anos e os que não tenha discernimento.
Os demais membros da Comissão- exceção feita ao professor José Fernando Simão- rechaçaram a proposta sob o argumento de a palavra discernimento ser capacitista.
Ouso, entretanto, discordar. Capacitismo haveria se a ausência de discernimento fosse tida como consequência necessária da deficiência, o que não é nem nunca foi o caso.
Seja como for, a proposta contida no PL 04/2025 permite que a expressão por nenhum meio possam expressar sua vontade seja interpretada de modo a incluir não somente os que mecanicamente estejam impedidos de expressar sua vontade- como alguém em coma-, mas também os que, por falta completa de discernimento, devam ter desconsiderada a vontade que pessoalmente manifestarem no exercício da autonomia privada.
"Art. 4º (texto original mantido)
I - (texto original mantido)
II - aqueles cuja autonomia estiver prejudicada por redução de discernimento, que não constitua deficiência, enquanto perdurar esse estado;
III - Revogado;
IV - (texto original mantido)
Parágrafo único. As pessoas com deficiência mental ou intelectual, maiores de 18 (dezoito) anos, têm assegurado o direito ao exercício de sua capacidade civil em igualdade de condições com as demais pessoas, observando-se, quanto aos apoios e às salvaguardas de que eventualmente necessitarem para o pleno exercício dessa capacidade, o disposto nos arts. 1.767 a 1.783 deste Código."
Quanto ao artigo 4º, o inciso II, adequadamente, retira a menção às causas que possam implicar redução do discernimento para ressaltar que a qualidade de relativamente incapaz decorre da diminuição do discernimento, e não de causa ou causas específicas como o alcoolismo ou o vício em drogas.
A ressalva expressa na locução que não constitua deficiência tem duplo efeito. Ao não ressalvar a locução enfermidade mental, permite que enfermos mentais, como os que padecem do Mal de Alzheimer, de esquizofrenia e de outras, desde que tais enfermidades impliquem diminuição do seu discernimento, possam contar com o regime jurídico protetivo da incapacidade relativa.
O segundo efeito consiste em evitar a alegação de que o PL buscou afastar o regime jurídico contido no Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Tanto isso é verdade que o parágrafo único do dispositivo, em harmonia com o Estatuto da Pessoa com Deficiência e dando efetivo cumprimento à Convenção Internacional de Nova York sobre Pessoa com Deficiência, garante que a pessoa com deficiência, sem que seja privada da proteção que eventualmente necessite- por exemplo, amparada por um curador ou por apoiador- exerça os atos da vida civil.
Finalmente, quanto à inclusão do art. 4º-A, segundo o qual a deficiência física ou psíquica da pessoa, por si só, não afeta sua capacidade civil, é proposta que reforça a melhor interpretação do regime jurídico das incapacidades.
Para que alguém seja considerado incapaz por outro motivo que não a idade é necessário apenas verificar se houve ou não redução de seu discernimento, sendo irrelevante para fins jurídicos qualquer atribuição de causa para esse efeito.
Agradecendo mais uma vez a oportunidade da publicação, informo que procurarei, em uma próxima oportunidade, tratar das propostas relativas aos direitos da personalidade.