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Reprodução humana assistida no anteprojeto de reforma do CC

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Atualizado em 16 de dezembro de 2024 14:28

Por que existe a necessidade de se inserir no anteprojeto de reforma e atualização do CC o tema da filiação decorrente de reprodução humana assistida?

Iniciar este artigo com uma pergunta talvez seja a melhor maneira de apresentar aos leitores desta coluna as razões que levaram a comissão de juristas a assim fazê-lo.

A necessidade decorre da inexistência de solução para garantir o direito à herança do filho nascido post mortem, por exemplo.

Ou, ainda, da não previsão em lei quanto à possibilidade de uso de cessão temporária de útero, seus requisitos, limites e repercussões jurídicas.

Também por inexistir um controle mínimo do material genético de doadores,  o que evitará a possível consequência de ocorrer casamento entre parentes biologicamente próximos, como irmãos.

Não seria demais lembrar que, até então, não se previu em lei outro destino para os embriões excedentários (aqueles que "sobram" do tratamento de fertilização), além do envio para pesquisa, nos termos da lei de biossegurança (lei 11.105/05).

Ressalte-se, ademais, o confronto entre o sigilo conferido ao doador de gametas por resolução médica, emanada do CFM - Conselho Federal de Medicina, portanto sem força de lei, e o direito ao conhecimento da origem biológica daquele que é concebido com sêmen ou óvulo de doador(a), direito reconhecido expressamente ao filho adotivo, no art. 48 do ECA, como se constata:

Art. 48.  O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos. 

Parágrafo único.  O acesso ao processo de adoção poderá ser também deferido ao adotado menor de 18 (dezoito) anos, a seu pedido, assegurada orientação e assistência jurídica e psicológica.

Estes são apenas alguns dos motivos que ensejaram a proposta de inclusão de disciplina legal sobre a reprodução humana no anteprojeto de reforma, mas somem-se a estes os que decorrem das incongruências que se evidenciam na redação do único artigo no CC que trata da matéria, o art. 1.597.

O referido dispositivo dispõe sobre presunção de filiação. Deixando-se de lado a inconsistência do caput que restringe a presunção apenas aos filhos concebidos durante o casamento, os incisos III, IV e V versam sobre a filiação decorrente da assistência médica reprodutiva, mas os três, sem exceção, ferem a igualdade, garantida na CF/88, como já tivemos a oportunidade de ressaltar em outro texto, publicado nesta coluna.

Não prever a necessidade de autorização da mulher para a inseminação heteróloga - quando se utiliza sêmen de doador (inciso V), não presumir como filho aquele que é excedente ("sobra") de fertilização heteróloga (inciso IV) e presumir a filiação post mortem apenas quando falecido o marido e não a mulher são apenas alguns destaques.

Deveriam os juristas da reforma perpetuar as inconstitucionalidades e a omissão do CC/02 ou enfrentar os problemas jurídicos que decorrem da aplicação e uso das referidas técnicas médicas reprodutivas?

É importante lembrar que, desde 1984, técnicas de fertilização são utilizadas no Brasil. De lá para cá, mais de quatro décadas passaram sem que tivéssemos um regramento positivado sobre a matéria.

No capítulo inserido no Livro de Família, nominado de Filiação decorrente de Reprodução Assistida, encontram-se 22 artigos (arts. 1.629-A - 1.629-V) que regulamentam as questões acima levantadas e tantas outras que impactam nas relações familiares e sucessórias.

Destacaremos algumas das propostas do anteprojeto, a fim de ilustrar o intuito pacificador das inserções.

No que se refere ao sigilo do doador de gametas versus o direito ao conhecimento da ascendência genética por parte da pessoa concebida com material doado, garante-se o sigilo ao doador, mas salvaguarda-se o direito da pessoa nascida com a utilização de material genético doado de conhecer sua origem biológica, mediante autorização judicial, para a preservação de sua vida, a manutenção de sua saúde física, a sua higidez psicológica ou por outros motivos justificados (art. 1.629-K).

Com tal determinação, busca-se garantir o tratamento isonômico entre filhos, atribuindo ao filho concebido com o uso de qualquer técnica médica reprodutiva heteróloga os mesmos direitos já previstos para os filhos havidos por adoção, como acima descrito.

Observe-se, ainda, que o texto ainda assegura o mesmo direito ao doador "em caso de risco para sua vida, saúde ou por outro motivo relevante, a critério do juiz" (art. 1.629-K, § 1º).

Para conter, porém, qualquer intenção de se reconhecer o vínculo parental com o doador, o texto da proposta prevê que "nenhum vínculo de filiação será estabelecido entre o concebido com material genético doado e o respectivo doador" (art. 1.629-K, § 2º).

Já quanto à cessão temporária de útero, em consonância com a previsão constitucional que veda a comercialização de órgãos ou partes do próprio corpo (art. 199, § 4º da CF/88) - no texto do anteprojeto está previsto que a cessão não poderá ter finalidade lucrativa ou comercial, devendo, preferencialmente, a cedente temporária ter vínculo de parentesco com os autores do projeto parental (arts. 1.629-M e 1.629-N).

Importante, também, destacar o art. 1.629-O do anteprojeto:

A cessão temporária de útero deve ser formalizada em documento escrito, público ou particular, firmado antes do início dos procedimentos médicos de implantação, no qual deverá constar, obrigatoriamente, a quem se atribuirá o vínculo de filiação.

Esta previsão garante a segurança necessária ao contrato de cessão assim como a identificação dos autores do projeto parental. Ademais, garante-se, ainda, que "em nenhuma hipótese, o cartório de registro civil de pessoas naturais publicizará o assento de nascimento ou dados dos quais se possa inferir o caráter da gestação" (art. 1.629-P, parágrafo 2º), em respeito à previsão constitucional da não discriminação entre filhos.

Coadunando a valorização da autonomia da vontade com a segurança jurídica necessária aos envolvidos no projeto parental em que há recurso ao tratamento de reprodução humana, entre os arts. 1.629-S e 1.629-V, encontram-se as especificações sobre o consentimento informado.

O art. 1.629-S prevê que para a "realização do procedimento de reprodução assistida, todos os envolvidos terão de firmar o termo de consentimento informado".

O detalhamento consta da redação do art. 1.629-T:

A assinatura será precedida de todas as informações necessárias para propiciar o esclarecimento indispensável de modo a garantir a liberdade de escolha e adesão ao tratamento e às técnicas indicadas.

Parágrafo único. As informações quanto aos riscos conhecidos do procedimento escolhido serão fornecidas por escrito, juntamente com suas implicações éticas, sociais e jurídicas.

Já em caso de paciente casado ou que viva em união estável, exige-se, para o uso da técnica heteróloga - aquela em que é utilizado material de doador(a) - "a manifestação do cônjuge ou convivente, concordando expressamente com o procedimento indicado e com o uso ou não de material genético de doador" (art. 1.629-U), prevendo-se, ainda, que se houver "vício de consentimento quanto ao uso de qualquer uma das técnicas de reprodução assistida heteróloga, será admitida ação negatória de parentalidade, mas subsistirá a relação parental se comprovada a socioafetividade" (art. 1.629-U, parágrafo único).

Por fim, o último artigo do anteprojeto no âmbito da filiação decorrente de reprodução humana assistida - art. 1.629-V - determina que no termo de consentimento deve constar o destino a ser dado ao material genético criopreservado em caso de rompimento da sociedade conjugal ou convivencial, bem como no caso doença grave ou de falecimento de um ou de ambos os autores do projeto parental ou em caso de desistência do tratamento proposto.

O detalhamento da reprodução assistida post mortem encontra-se no art. 1.629-Q, que possibilita o uso de material genético de qualquer pessoa após a sua morte, seja óvulo, espermatozoide ou embrião, desde que haja expressa manifestação, em documento escrito, autorizando o seu uso e desde que seja indicado a quem deverá ser destinado o gameta, seja óvulo ou espermatozoide, quem o deverá gestar após a concepção.  

Assegura-se, no texto do anteprojeto, em caso de filiação post mortem, o vínculo entre o filho concebido e o genitor falecido para todos os efeitos jurídicos de uma relação paterno-filial.

Prevê-se expressamente, por fim, que "não serão permitidas a coleta e a utilização de material genético daquele que não consentiu expressamente, ainda que haja manifestação de seus familiares em sentido contrário" (art. 1.629-R).

A disciplina da filiação decorrente de reprodução humana transbordou o livro de Direito de Família, pois urgia, ainda, disciplinar o direito à herança do filho concebido post mortem, vindo o caput do art. 1.798 da proposta de reforma a determinar que "legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão, bem como os filhos do autor da herança gerados por técnica de reprodução humana assistida post mortem, nos termos e nas condições previstos nos parágrafos seguintes".

Constam da proposta seis parágrafos, garantindo o primeiro deles, aos filhos gerados após a abertura da sucessão, o direito sucessório se nascidos no prazo de até cinco anos a contar da data da abertura, tendo de haver autorização expressa e inequívoca do autor da herança para o uso de seu material criopreservado, dada por escritura pública ou por testamento público, observado o disposto nos arts. 1.629- B e 1.629-Q.

Por derradeiro, após serem destacados alguns artigos do anteprojeto de reforma do CC, oportuno frisar aos leitores que não estamos falando de uma prática médica de rara indicação. Alguns números, oficialmente registrados e divulgados pelo SisEmbrio - Sistema Nacional de Produção de Embriões - demonstram que estamos, no Brasil, negligenciando as consequências jurídicas da prática médica.

Apenas no ano de 2023, foram realizados 56.821 ciclos de fertilização in vitro, sendo 2.584 ciclos com sêmen de doador com 508 gestações clínicas obtidas, restando, ao todo, 115.745 embriões congelados.1

Os números e os problemas evidenciados demonstram que é imperiosa a tutela legal da filiação decorrente de reprodução humana assistida para que o Brasil possa ter um sistema jurídico completo que garanta, sobretudo, a igualdade entre filhos, nos termos do mandamento constitucional existente.

É o que se espera que aconteça com a aprovação da proposta e com a brevidade que a atualização e a matéria exigem.

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1 Disponível aqui.