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Direito real de laje e tutela das vulnerabilidades na reforma do Código Civil brasileiro

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Atualizado em 9 de dezembro de 2024 13:14

"Peço a Deus por minha gente

É gente humilde

Que vontade de chorar"

Chico Buarque de Holanda

Sabe-se que o Direito privado brasileiro tem clara vinculação com o princípio vetor da ordem social democrática da República Federativa do Brasil: a dignidade humana. Dessa forma, abre-se espaço para uma nova hermenêutica interpretativa, propiciando o surgimento de um Direito privado mais solidário, consentâneo com os direitos humanos. 

Dentro dessa perspectiva, portanto, é que proponho na coluna de hoje algumas reflexões sobre as modificações introduzidas no anteprojeto de reforma e atualização do CC, no campo dos direitos reais, mais especificamente, no que concerne ao direito real de laje.

Escolhi esse tema por compartilhar do entendimento de que "na base do estatuto brasileiro", a propriedade imobiliária assim apreendida, se conecta a intensas desigualdades.

No âmbito de uma máxima voltada à função social da propriedade, o direito real de laje está inserido na categoria dos direitos reais de utilização, que, como o próprio nome sugere, permite o uso imediato da coisa1 e foi introduzido no CC/02 a partir de 2016 com a inclusão do inciso XIII ao art. 1.255, tendo sua regulamentação com a lei 13.465/17, que introduziu os arts. 1.510- A ao 1.510-E.

É importante destacar que esse tema já vinha alcançando relevância na doutrina e na jurisprudência pátria, certamente em razão da realidade socioeconômica do Brasil, máxime da urbanização das comunidades populares que, como se sabe, correm à margem da ordem jurídica.

Nesse ponto particular, ainda quando restava carente a previsão expressa do direito de laje, já se entendia que o direito de superfície não trazia, em si, qualquer incompatibilidade com a sobrelevação ou superfície de segundo grau, traduzido posteriormente no direito de laje, cada vez mais comum nas comunidades de baixa renda.

Desse modo, nunca é tarde rememorar que o direito real de laje tem como fundamento a construção alheia já implantada, utilizando o titular de tal direito, nomeado lajeário, do gabarito aéreo ou do subsolo que não tinham sido totalmente aproveitados.

Como dito, apenas com a lei 13.465 de 2017 a "laje" foi alçada à categoria de direito real próprio, dispensado a aplicação de normas concernentes ao direito de superfície ou do condomínio edilício, conforme a hipótese. 

Entretanto, impõe-se o registro de que o legislador regulamentou o direito de laje de maneira autônoma e independente em relação à superfície, tanto é assim que o direito de superfície pode ser constituído por tempo determinado ou determinável, enquanto a laje é perpétua, gerando matrícula autônoma e desvinculada do registro de propriedade da construção-base.

Diga-se, ainda, que com o direito real de laje tem-se a coexistência de unidades imobiliárias autônomas de titularidades distintas, rompendo-se, portanto, o clássico princípio de que o titular do solo é também titular do que sobre ele seja edificado. Ou seja, o titular do solo é o titular da primeira de edificação.

Outra característica imprescindível para o direito real de laje concretizar-se consiste no isolamento funcional e acesso independente da unidade imobiliária, o que permite matrícula própria no registro imobiliário. 

A propósito, por ser autônomo o direito de laje é passível de usucapião, conforme já aduz o enunciado 627 da VIII Jornada de Direito Civil.

Como bem assevera, Marcelo Milagres2, essa independência não é absoluta, pois ora se submete às limitações de ordem pública, provenientes das diretrizes urbanísticas, consoante se infere do art. 1.510-A, § § 5º e 6º, ora às de ordem privada, voltadas à satisfação de interesses comuns, conforme aduz o art. 1.510-C, §1º.

Assim, o proprietário poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção-base, a fim de que o lajeário mantenha unidade distinta daquela primitivamente construída sobre o solo. Nesse sentido, inclusive, o teor do enunciado 669, da IX jornada de Direito civil já assinalava ser "possível o registro do direito real de laje sobre construção edificada antes da vigência da lei, desde que respeitados os demais requisitos previstos tanto para a forma quanto para o conteúdo material da transmissão" 3.

Reitere-se, portanto, que o direito real de laje abrange tanto o espaço aéreo quanto o subsolo, recaindo sobre terrenos públicos ou privados, em projeção vertical, como unidade autônoma não completando as demais áreas edificadas, ou não pertencentes ao proprietário da construção-base como se depreende da leitura do § 1º, do art. 1.510-A.

Válido, ainda, chamar a atenção para uma consequência que é possível a partir dessa projeção de verticalidade que caracteriza o direito real de laje. Refiro-me à possibilidade de constituição de laje superior (sobrelevação) ou inferior (infrapartição), que tanto pode se efetivar por negócio jurídico entre vivos, como por transmissão causa mortis, sem desconsiderar a possibilidade de aquisição por usucapião (usucapião lajeária). 

Logo, admite-se a instituição sucessiva do direito real de laje nos termos do § 6º do 1.510-A, desde que haja autorização expressa dos outros titulares da construção-base e das demais lajes, bem como a submissão às normas edilícias e urbanísticas em vigor.

Outro ponto que merece destaque diz respeito à regra do direito de preferência, que deve ser assegurado na hipótese do exercício do direito de disposição do direito real de laje. O art. 1.510-D prevê o direito de preferência dos titulares da construção base e da laje, nessa ordem, que serão notificados por escrito para se manifestarem no prazo de 30 dias, salvo se houver disposição contratual em sentido diverso. Havendo mais de uma laje, terá preferência, de modo sucessivo, o titular das lajes ascendentes e o titular das lajes descendentes, assegurada a prioridade para a laje mais próxima à unidade sobreposta a ser alienada.

Caso haja violação ao direito de preferência, o prejudicado poderá, mediante depósito do valor devido, haver para si, a parte alienada a terceiros, se o requerer no prazo de 180 dias, contado da data da alienação. 

Feitas essas considerações introdutórias, passamos a contextualizar as modificações sugeridas no anteprojeto de reforma e atualização do CC.

O direito real de laje recebeu um tratamento mais próximo da realidade das cidades brasileiras, em que, nas comunidades com titularidades não regularizadas, raro é haver a formalização da propriedade do terreno. Assim, no anteprojeto de reforma e atualização procurou-se fomentar o reconhecimento da autonomia da posse da laje, além da possibilidade de usucapião, buscando sobretudo a melhoria da habitação, permitindo que esse direito possa ser dado em garantia real de financiamento.

Para tanto, foi acrescentado o art. 1.510-F, mediante a adição de 6 parágrafos, com a finalidade de consolidar a autonomia entre o direito real de laje e sua posse. 

Assim, no caput do art. 1.510-F afirma-se que "Admite-se, além do direito real de laje, autonomia de sua posse". O § 1º, por sua vez, esclarece que a posse pode ser cedida a título gratuito ou oneroso, bem como se admite a transmissão por ato entre vivos ou causa-mortis. 

No § 2º explicita que os sucessores, sejam legítimos ou testamentários, não ficam impedidos de exercer a posse prevista no § 1º, mesmo que sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. 

A seu turno, o § 3º reafirma a possibilidade de acrescentar sua posse à do antecessor, desde que sejam ambas contínuas. Na sequência, o § 4º inova ao preconizar de forma expressa "os direitos decorrentes da posse de que trata este artigo podem ser objeto de garantia real imobiliária, uma vez reconhecida a usucapião de laje. 

Já o § 5º reproduz a funcionalização do instituto ao dispor que: "A posse de que trata este artigo dependerá de comprovação de que unidade imobiliária atende a critérios de habitabilidade, entendendo-se como tal as condições da edificação ao uso a que se propõe dentro da realidade em que se situa o imóvel, não sendo necessário a expedição de habite-se". Trata-se de importante exigência de que o direito de laje se preste à concretização de sua finalidade derradeira, qual seja, a consolidação do acesso ao direito à moradia. 

E por fim, o § 6º explicita a imprescindibilidade de que a unidade imobiliária sobre a qual recai a posse da laje deverá ter saída própria, direita ou indiretamente, para via pública, além de possuir designação numérica ou alfabética para fins de identificação. 

Conclusão

Graças à crescente valorização da tutela do ser humano e de seus valores existenciais por parte da ordem jurídica constitucional e infraconstitucional, tem se dado uma crescente valorização da necessidade de efetivação de direitos fundamentais, entre eles o direito à moradia, o que repercute nas esferas da organização urbanística e da regularização fundiária.

O direito ao planejamento urbano, em particular, passa a ser compreendido como um direito social, a demandar o estabelecimento adequado de diretrizes acerca da consagração do acesso à moradia, sempre a demandar a crescente intervenção do Direito para tais fins. 

O direito de laje consagra fundamentalmente a premissa do necessário acesso universal à moradia digna. Trata-se de fenômeno de desenvolvimento relativamente recente, que se caracteriza por sua notável funcionalidade social e por sua plena autonomia em relação aos demais institutos jurídicos que permeiam o Direito das Coisas.

A aludida autonomia do direito de laje, de fato, se consagra em variadas e distintas vias, a saber:

  • A autonomia registral, posto que o direito real de laje é constituído em matrícula própria;
  • A autonomia material, porquanto a laje é unidade imobiliária autônoma e com acesso próprio;   
  • A autonomia funcional, por ser a laje um instrumento social de acesso à moradia de inúmeras famílias que, de outro modo, não conseguiriam efetivar seu direito à moradia digna;
  • Finalmente, a autonomia jurídica, por ser o direito de laje um direito real próprio, que não se confunde com os demais direitos reais tipificados pelo rol constante do art. 1.225 do CC.

Assim não restam dúvidas que o direito real de laje consiste em um relevante instrumento de regularização fundiária, revelando-se indispensável para promover o acesso à moradia e a segurança jurídica aos lajeários, titulares de direitos sobre a laje.

Espera-se que ao instituto em apreço seja conferida a devida relevância nos âmbitos jurídico e social, precisamente por se tratar de um instrumento voltado à consecução dos interesses de um imenso contingente de pessoas em situação de vulnerabilidade.

__________

1 FACHIN, Luiz Edson. Questões do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.51

2 Os direitos reais limitados, incidem sobre coisa alheia restringindo ou retirando algum elemento da propriedade, cf LOBO, Paulo. Direito civil, coisas, v.4, 8ª Edição, São Paulo: Saraiva, 2023, p.287.

3 MILAGRES, Marcelo. Manual de direito das coisas, 4ª Edição, São Paulo: Editora D'Plácido, 2023, p.159.

4 Cf.IX JDC Enunciado 669.

5 FACHIN, Luiz Edson. Questões do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

6 LOBO, Paulo. Direito civil, coisas, v.4, 8ª Edição, São Paulo: Saraiva, 2023.

7 MILAGRES, Marcelo. Manual de direito das coisas, 4ª Edição, São Paulo: Editora D'Plácido, 2023.