A cláusula de não indenizar na responsabilidade civil na reforma do Código Civil
terça-feira, 5 de novembro de 2024
Atualizado às 07:23
No Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, mediante consenso entre a Subcomissão de Responsabilidade Civil e os Relatores Gerais, foi aprovado o seguinte dispositivo:
Artigo 946-A: Em contratos paritários e simétricos, é lícita a estipulação de cláusula que previamente exclua ou limite o valor da indenização por danos patrimoniais, desde que não viole direitos indisponíveis, normas de ordem pública, a boa-fé ou exima de indenização danos causados por dolo.
As cláusulas sobre responsabilidade podem ser reconduzidas em três grupos: a) convenções de limitação ou agravamento da responsabilidade; b) convenções de exclusão da responsabilidade; c) cláusula penal.
No campo do agravamento da responsabilidade, por meio de uma alteração convencional do regime geral da responsabilidade, o devedor assume um dever de garantia, incorporando os riscos dos eventos inerentes ao art. 393 (fortuito ou força maior). Alternativamente, em vez de assumir integralmente os riscos do aleatório, o devedor aquiesce em se responsabilizar por certos eventos necessários e inevitáveis, alocando o risco para si. Ainda se cogite de agravamento quando o devedor se responsabiliza mesmo quando a inexecução decorra de fato de terceiro, ou aquiesça na conversão de obrigação de meio em obrigação de resultado.
Diversamente, cláusulas de não indenizar, também denominadas cláusulas de limitação ou exclusão de responsabilidade, são aquelas convenções que têm como objetivo impedir o surgimento jurídico de uma das consequências da responsabilidade civil, designadamente o dever de indenizar cabível ao devedor que descumpriu um dever jurídico (contratual ou extracontratual). O acordo de regramento da indenização ou a eliminará integralmente ou estipulará um limite ao seu valor. A convenção deverá integrar um contrato ou se inserir em um contexto cuja responsabilidade, mesmo aquiliana, possa ser tratada de modo convencional.
O Código Civil de 2002, do mesmo modo que o Código Civil de 1916, não apresenta um dispositivo que trate do tema como regra geral. Entretanto, importante notar que o Anteprojeto de Código das Obrigações apresentado por Caio Mário da Silva Pereira em 1963 conteve sugestão de dispositivo que fazia expressa referência à regra geral da cláusula de não indenizar, em seu art. 924, dentro do capítulo que versava sobre a reparação do dano causado1.
Apesar de a cláusula de não indenizar não ter sido objeto de tratamento geral no Código Civil, é possível encontrar dispositivos específicos na codificação que versam sobre a validade de cláusulas de não indenizar em temas específicos, bem como leis especiais que abordam o assunto. Merece destaque o art. 734, caput, do Código Civil, que determina a nulidade da convenção que exclua a responsabilidade do transportador pelos danos causados à pessoa transportada e suas bagagens2. No âmbito da legislação especial, cite-se, por sua relevância prática, o regramento do Código de Defesa do Consumidor, que, em seu art. 51, I, determina a nulidade de pleno direito de cláusulas contratuais relativas a produtos e serviços que impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos3. As normas de ordem pública do Código de Defesa do Consumidor são emanadas do direito fundamental de tutela ao consumidor (art. 5º, XXXII, CF), como parte assimétrica da relação obrigacional de fornecimento de produtos e serviços. A tutela constitucional do consumidor impede que qualquer relação patrimonial possa comprimir excessivamente situações existenciais, convertendo a reparação em algo "desprezi´vel".
Recentemente, a lei 13.874/2019 inseriu o art. 421-A, II, no Código Civil brasileiro, indicando que no âmbito dos contratos civis e empresariais, que se presumem paritários por lei, a alocação de riscos definida pelas partes deverá ser respeitada e observada. Embora este não seja um dispositivo que trata especificamente das cláusulas de não indenizar, a liberdade contratual para alocar riscos entre as partes contratuais é geralmente indicada como um fundamento para a presunção de validade desse tipo de acordo em nosso ordenamento jurídico.
A Lei da Liberdade Econômica revigorou a autodeterminação em termos de primazia de soluções consensuais em detrimento da heteronomia judicial, valorizando a alocação de riscos. Seguindo a noção de Enzo Roppo do contrato como vestimenta das operações econômicas, o art. 421-A captura um redimensionamento do sentido de contrato, que não mais se exaure no negócio jurídico bilateral que lhe deu origem, convertendo-se em uma "atividade contratual", realidade em permanente construção. Assim, é lícito às partes a delimitação consensual das esferas de responsabilidade para que possam se precaver contra eventuais vicissitudes. O contrato passa a ser tido como um instrumento jurídico posto à disposição das partes para a alocação de riscos economicamente previsíveis, para hoje e para o futuro. Com a gestão de riscos, as partes convertem a causa abstrata do contrato em uma causa concreta. Assim, mal ou bem gerido, o risco superveniente não ensejará intervenção externa sobre o que se convencionou. Diversamente da causa abstrata, consiste a causa concreta no objetivo prático visado pelas partes quando da celebração do negócio jurídico, sendo esse um fim a que se dirige dado negócio jurídico específico. Esse fim é imantado pelo que se pode denominar de função econômica do contrato, ou seja, quais os contributos econômicos que as partes razoavelmente podem esperar como advindos da relação negocial celebrada. A definição desse fim econômico prático que integra a causa concreta é correlata ao exercício da liberdade econômica.
Nesse diapasão, em contratos paritários e simétricos são cabíveis convenções limitativas que concernem às espécies de danos patrimoniais indenizáveis. Neste sentido, válida a cláusula que delimite a responsabilidade do devedor ao dano emergente, excluindo a indenização de eventuais lucros cessantes - a recíproca também é cabível - ou mesmo de danos indiretos. Conforme cada situação, concreta, o resultado oscilará entre a exclusão ou limitação. Ilustrativamente, se as partes estabelecem indenização restrita aos danos emergentes, caso o inadimplemento apenas materialize lucros cessantes, neutraliza-se o dever de indenizar, contudo, se da inexecução obrigacional forem produzidos lucros cessantes e danos emergentes, a convenção redundará em uma limitação, pois ao credor restará aberta a via da compensação pelos danos emergentes.
Diante desse panorama legislativo, difundiu-se no Brasil o posicionamento jurisprudencial no sentido de que, em princípio, a estipulação de cláusulas de não indenizar é válida, com base no princípio da liberdade contratual, mas, excepcionalmente, certas circunstâncias podem ensejar a nulidade de tais disposições contratuais. A primeira delas é a impossibilidade de a avença contrariar norma cogente aplicável, por exemplo, às relações de consumo. Também não se admite eficácia à cláusula de indenizar quando a parte devedora age dolosamente em seu inadimplemento ou quando se pretende impor a limitação a indenizações decorrentes de danos psicofísicos à pessoa humana.
A proposta de lege ferenda que ora se deduz tem como objetivo sugerir um dispositivo que trate, como regra geral, da cláusula de não indenizar em nossa codificação de uma forma consistente com nossa cultura jurídica e que, ao mesmo tempo, esteja alinhado com as recentes alterações normativas em outros países e com os esforços de uniformização do direito privado internacional.
Poderia soar inusitado uma limitação ou exclusão de responsabilidade no universo aquiliano, onde não há um prévio contato social entre as partes. Inimaginável uma cláusula de irresponsabilidade sobre qualquer dano resultante de acidente automobilístico urbano entre pessoas sem contato prévio, violando o próprio postulado do neminem laedere que permeia a tutela da segurança comunitária e restringe o mau exercício da liberdade de atuação. Nada obstante, algo distinto é uma convenção na qual as partes predeterminam o afastamento da obrigação de indenizar para a eventualidade de danos à integridade psicofísica - modificando-se o regime geral da responsabilidade civil -, conquanto que, observada a natureza dos interesses merecedores de tutela, a limitação se resuma ao âmbito dos danos patrimoniais e não inclua comportamentos qualificados pelo dolo. Se essa convenção é compreensível quanto à responsabilidade aquiliana produzida no curso de um contrato válido entre as partes (acidente durante uma empreitada) ou mesmo em uma situação de fato que as vincule sem que haja um contrato (v.g relações de direito de vizinhança), o mesmo não se diga quando inexiste qualquer relação prévia entre ofensor e ofendido. De fato, no exemplo de dois proprietários vizinhos, as partes se encontram em uma situação que as possibilita prever a ocorrência de danos mútuos, já um pedestre não ostenta qualquer contato prévio com o proprietário do veículo atropelador.
Inicialmente, o texto indica a validade da figura de uma forma positiva, (i.e., pela licitude), ainda que condicionada, ao invés da escolha textual negativa (i.e., pela invalidade ou nulidade em determinadas hipóteses), o que nos parece ser mais conforme o direcionamento atual da nossa legislação civil. Também se propõe uma designação mais precisa, indicando expressamente que o que se limita ou se exclui com a celebração da cláusula é o dever de indenizar danos patrimoniais, e não a responsabilidade civil em geral do devedor.
Assim, a cláusula que somente limita o montante indenizatório deixa aberta a possibilidade de que entre as partes surja o dever de indenizar - ainda que reduzido - ao passo que a cláusula exoneratória inibe totalmente o surgimento desse feixe da responsabilidade civil. Enquanto a cláusula de exoneração priva o credor por completo da indenização, na hipótese de limitação do dever de indenizar o credor poderá até mesmo receber o valor integral da indenização se o teto definido para o compartilhamento dos riscos for superior ao dano efetivamente devido.
Com relação às invalidades (i.e., as hipóteses em que tal cláusula não deve ser considerada lícita), o dispositivo indica, em primeiro lugar, a impossibilidade de que cláusula de não indenizar seja entabulada em "violação a direitos indisponíveis". Essa escolha textual tem como objetivo principal indicar a invalidade da cláusula quando ela diz respeito a direitos que não podem ser objeto de negociação entre as partes, sobretudo aqueles relacionados à integridade psicofísica da pessoa humana, entre outros. Essa preocupação pode ser verificada, por exemplo, no novo código civil e comercial argentino, que faz menção expressa aos direitos indisponíveis4, e no código civil chinês de 20205, que faz menção à impossibilidade de que as cláusulas de exclusão de responsabilidade abarquem danos físicos causados a uma das partes.
Em seguida, faz-se referência à impossibilidade de que a celebração de uma cláusula de não indenizar ocorra em violação a normas de ordem pública e à boa-fé. Do ponto de vista estritamente lógico-jurídico, seria possível argumentar que essa impossibilidade é um requisito de validade de todo e qualquer negócio jurídico, sendo desnecessária, em princípio, a menção expressa no dispositivo referente especificamente às cláusulas de não indenizar. No entanto, do ponto de vista da oportunidade legislativa que se apresenta, vale apontar que a referência expressa a esses institutos poderá conduzir a aplicação da norma após a reforma legislativa no sentido daquilo que já está consolidado na jurisprudência brasileira. Novamente, o modelo, aqui, é a escolha textual do código civil e comercial argentino. Também é possível encontrar referências similares nos Principles of European Contract Law6 e, em certo grau, à proposta de Caio Mário no Anteprojeto do Código de Obrigações, mencionada anteriormente.
Por fim, o dispositivo proposto faz referência à impossibilidade de que a cláusula de não indenizar sirva como fundamento jurídico para a isenção do dever de indenizar causado pelo próprio dolo do agente devedor. Nota-se que, aqui, a norma diz respeito propriamente ao dolo no não cumprimento, ou seja, na fase da execução contratual, e não ao dolo como vício de consentimento na formação do negócio jurídico. Essa referência à impossibilidade de que a cláusula de não indenizar seja eficaz nos casos de descumprimento doloso é bastante difundida na experiência internacional e merece ser indicada como regra geral em nossa codificação. Faz-se referência, por exemplo, às codificações civis ou obrigacionais vigentes na Espanha7, Suiça8, Itália9, Alemanha10 e, novamente, Argentina.
Em síntese, as cláusulas de limitação e de exclusão se inserem no âmbito da eficácia horizontal de direitos fundamentais, sendo a específica convenção submetida aos limites de merecimento do ordenamento, conforme as contingências históricas, considerando- se o grau de assimetria entre as partes (contratos de adesão ou de consumo) e o bem jurídico em jogo (situações existenciais ou bens relacionados ao mínimo existencial). Estas estremas alimentam o fluido conceito de ordem pública na mensuração do ponto desejável entre a liberdade das partes e exigências de igualdade material e solidariedade.
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1 Art. 924. A cláusula de não indenizar somente prevalecerá se for bilateralmente ajustada, e não contrariar a lei expressa, a ordem pública e os bons costumes, e nem tiver por objeto eximir o agente dos efeitos do seu dolo.
2 Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.
Parágrafo único. É lícito ao transportador exigir a declaração do valor da bagagem a fim de fixar o limite da indenização
3 Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
I - Impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;
4 Artículo 1743. Dispensa anticipada de la responsabilidad. Son inválidas las cláusulas que eximen o limitan la obligación de indemnizar cuando afectan derechos indisponibles, atentan contra la buena fe, las buenas costumbres o leyes imperativas, o son abusivas. Son también inválidas si liberan anticipadamente, en forma total o parcial, del daño sufrido por dolo del deudor o de las personas por las cuales debe responder.
5 Article 506. An exculpatory clause in a contract exempting the liability on the following acts are void:
(1) causing physical injury to the other party; or
(2) causing losses to the other party's property intentionally or due to gross negligence.
6 Article 8:109: Clause Excluding or Restricting Remedies. Remedies for non-performance may be excluded or restricted unless it would be contrary to good faith and fair dealing to invoke the exclusion or restriction.
7 Artículo 1102. La responsabilidad procedente del dolo es exigible en todas las obligaciones. La renuncia de la acción para hacerla efectiva es nula.
8 Art. 100. 1 Any agreement purporting to exclude liability for unlawful intent or gross negligence in advance is void. 2 At the discretion of the court, an advance exclusion of liability for minor negligence may be deemed void provided the party excluding liability was in the other party's service at the time the waiver was made or the liability arises in connection with commercial activities conducted under official licence. 3 The specific provisions governing insurance policies are unaffected.
9 Art. 1229 (Clausole di esonero da responsabilità). È nullo qualsiasi patto che esclude o limita preventivamente la responsabilità del debitore per dolo o per colpa grave. E' nullo altresì qualsiasi patto preventivo di esonero o di limitazione di responsabilità per i casi in cui il fatto del debitore o dei suoi ausiliari costituisca violazione di obblighi derivanti da norme di ordine pubblico.
10 Section 276. Responsibility of the obligor (1) The obligor is responsible for intent and negligence if a higher or lower degree of liability neither is laid down nor is to be inferred from the other subject matter of the obligation, in particular the giving of a guarantee or the assumption of a procurement risk. The provisions of sections 827 and 828 apply accordingly. (2) Anyone acts negligently who fails to exercise the care required in business dealings. (3) The obligor may not be released in advance from liability for intent.