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Os contratos de seguro no anteprojeto de revisão e atualização do Código Civil brasileiro

terça-feira, 23 de julho de 2024

Atualizado em 22 de julho de 2024 11:17

A atividade de seguros é antiga na trajetória histórica da humanidade. Se é no âmbito do Direito das Obrigações e da Responsabilidade Civil que se estudam os atos e fatos causadores de danos, são as notas e compassos dos Contratos de Seguro que criam meios confiáveis para indenizar danos sem prejudicar o patrimônio das pessoas naturais e jurídicas. Em muitos países do mundo existem leis específicas para os contratos de seguro. Em outros, como no Brasil, é o Código Civil que dita as principais diretrizes desses contratos. Ao Estado regulador incumbe criar as normas infralegais que, no cotidiano, vão tratar das especificidades de cada ramo de seguro. Nessa perspectiva, o que significa ter um capítulo de Contratos de Seguro revisado e atualizado no Código Civil de 2002? Que benefícios concretos isso poderá representar para a atividade econômica e social brasileira? 

Alguns aspectos relevantes sobre a legislação de seguros no Brasil 

O Brasil tem no decreto-lei 73, de 1966, e na Lei Complementar 126, de 2007, dois importantes textos legislativos para a atividade de seguro, de resseguro e de retrocessão. Mas, é no Capítulo XV do Código Civil brasileiro que se encontram as normas que mais comumente são aplicadas nas relações contratuais de seguro, normas que definem os aspectos conceituais que direcionam todo o trabalho dos reguladores de seguro, o Conselho Nacional de Seguros Privados - CNSP e a Superintendência de Seguros Privados - SUSEP.

O Código Civil de 2022 efetivou importante mudança na definição dos contratos de seguro para inserir dois aspectos inovadores em relação ao código de 1916: o dever de garantia do segurador e, o interesse legítimo do segurado sobre bens e pessoas para caracterização legal do interesse segurável.

Ambos os aspectos resultaram da empresarialidade que a atividade de seguros adotou em todo o mundo, forma mais adequada para contemplar diferentes riscos e consequências inclusive, os de alto impacto econômico. Interesse legítimo é o que determina qual o risco passível de ser segurado, distingue o contrato de seguro do jogo ou da aposta e, ainda mais relevante, garante que o segurado se comprometa a manter durante todo o período de duração do contrato, a mesma conduta de cuidado e prevenção de riscos que manteria se não tivesse contratado o seguro. Esse compromisso do segurado é essencial para o grupo mutual, é a prática mais genuína da boa-fé e, em especial, é a garantia da função social do contrato de seguro pois seria socialmente bastante negativo que segurados contratassem seguro para poder adotar práticas de pouco ou nenhum cuidado em relação a seus bens.

O dever de garantir, por sua vez, é o que define mais claramente as obrigações do segurador e, com certeza, aqui reside a principal diferença em relação a definição adotada em 1916. O principal dever do segurador não é indenizar os danos resultantes do risco coberto pelo contrato de seguro, mas sim garantir que existam recursos disponíveis para a indenização dos danos patrimoniais e extrapatrimoniais decorrentes do risco segurado. E para garantir a existência desses recursos compete ao segurador organizar e administrar o fundo mutual constituído com recursos dos próprios segurados, a partir da realização de cálculos de estatísticas e probabilidades que definem o valor que cada segurado deverá aportar no fundo durante período de vigência do contrato.

Os riscos do segurado são predeterminados para que seja possível constituir reservas a partir de cálculos atuariais; e, o risco da atividade empresarial do segurador é não organizar e administrar corretamente o fundo mutual, porque nesse caso terá que utilizar recursos próprios para cumprir a obrigação de indenizar decorrente da materialização de um risco coberto pelo contrato. O segurador que organiza e gerencia mal os fundos mutuais sob sua responsabilidade responde no âmbito civil, criminal e administrativo.

Assim, a mudança ocorrida na definição de contrato de seguro de 1916 para 2002 foi bastante relevante e contemplou a dimensão de atualização da própria atividade, não mais uma simples união de esforços entre pessoas com os mesmos interesses, mas uma atividade econômica empresarial de grande porte, complexa, autorizada no Brasil apenas para empresas constituídas na forma de sociedade anônima. 

A revisão e atualização do Código Civil de 2002 

A revisão e atualização do Código Civil de 2002 tem, entre outros, dois aspectos que precisam ser reverenciados: nasceu da experiência das Jornadas de Direito Civil organizadas pelo Conselho Federal de Justiça - CFJ e, utilizou metodologia predefinida de cumprimento obrigatório para todos os participantes.

Não foi construída de forma aleatória ao sabor de interesses ou desejos particularizados, mas em atenção às decisões dos tribunais superiores ao longo desses 22 anos de vigência do Código Civil de 2002, das críticas e ponderações dos doutrinadores referenciados pelos tribunais superiores e, das contribuições de todos os cidadãos e cidadãs que se dispuseram a participar desse esforço coletivo, em especial das entidades convidadas a enviarem sugestões.

Desse esforço coletivo resultou um trabalho técnico que foi entregue ao Senado da República em 17 de abril de 2024, para dar início aos debates políticos que, certamente, vão aprimorar e atualizar ainda mais o texto legal.

É relevante ressaltar a metodologia utilizada pela Comissão de Juristas não apenas por imperativo histórico, mas, principalmente, para que seja possível compreender que o tempo utilizado para a revisão e atualização foi suficiente. Os 180 dias fixados pelo Senado da República para que a Comissão apresentasse um anteprojeto de lei para ser debatido pelas casas legislativas, foram suficientes porque havia uma metodologia prévia a ser seguida. Método, já nos ensinaram os gregos, é o caminho a seguir, é a organização do trajeto para que os objetivos sejam alcançados. Quando se tem metodologia definida o tempo se torna aliado e não algoz.

A Comissão de Juristas foi dividida de acordo com os diferentes livros do Código Civil e os participantes foram alocados em suas áreas de experiência e especialização. Conhecimento prévio, experiência e metodologia de trabalho permitiram aos participantes organizarem o tempo a seu favor, para que fosse cumprido o prazo predeterminado.

No debate político no parlamento haverá o tempo necessário para que a sociedade brasileira participe, encaminhe sugestões de aprimoramento, discuta as mudanças que deverão ser adotadas. O debate democrático e republicano do anteprojeto no parlamento brasileiro é, com toda certeza, a maior expectativa de todos os participantes da Comissão de Juristas, bem como de seus assessores e colaboradores. 

Os contratos de seguro - Revisão e atualização 

O artigo 757 revisto e atualizado no anteprojeto adota relevante determinação para definir o que são empresas de seguro - aquelas autorizadas previamente pelo órgão regulador -, e o que são entidades associativas que realizam atividade de proteção coletiva, porém sem se constituírem em seguradores e sem poderem utilizar essa expressão em suas atividades.

As entidades associativas que atuam na proteção de bens de seus associados cresceu significativamente no país nos últimos anos e, embora não seja ilegal, não possui as mesmas características da atividade de seguros, não oferece a segurança da presença do Estado regulador, não efetua cálculos atuariais, não constitui reservas mutuais e, principalmente, não garante o pagamento de indenizações para riscos materializados. Podem ser reguladas por lei e se tornarem uma opção para o mercado consumidor brasileiro, mas não são atividade de seguro e, para que isso fique claro, cuidou o anteprojeto de criar os parágrafos primeiro e segundo do artigo 757.

Também foi importante a criação do artigo 7575-A que se constituiu em revisão e atualização necessárias para o atual momento econômico e social do país. Os seguros massificados como automóvel, residencial, vida e acidentes pessoais, proteção de eletroeletrônicos, garantia estendida, entre outros, são regulados pela Lei 8.078, de 1990, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, porque o contratante é um consumidor definido como tal no artigo 2º da referida lei. Os seguros não-massificados, em especial os seguros de grandes riscos, são regulados pela lei civil e pelas normas infralegais administrativas que emanam do órgão regulador.

Os seguros não-massificados nem sempre serão de grandes riscos porque temos no cenário econômico brasileiro diversidade de empresas, a maioria delas de pequeno e médio porte. Nesses casos também prevalece a aplicação do Código Civil, porém sem a presunção de paridade e simetria entre os contratantes. Mas, para os seguros de grandes riscos é adequado vigorar a presunção de paridade e simetria, de forma a garantir que as partes contratantes tenham liberdade não apenas para determinar o conteúdo das cláusulas contratuais, mas, principalmente, para definir previamente como solucionarão os eventuais conflitos que surgirem ao longo do período de vigência dos contratos.

Os seguros de grandes riscos envolvem atividades técnicas muito específicas e, o avanço das novas tecnologias tem propiciado ainda maior especificidade, em especial nos sistemas computacionais que utilizam inteligência artificial e suas subáreas, como o aprendizado de máquinas, os contratos autoexecutáveis e a utilização de sequência de registros eletrônicos de dados. Nessa perspectiva, é preciso segregar os contratos de grandes riscos e permitir aos segurados e seguradores que tratem das peculiaridades de cada atividade com liberdade de diálogo, de forma a construírem clausulados que respeitem as bases técnicas da atividade securitária, mas que também contemplem necessidades próprias dos contratantes.

O parágrafo 2º do artigo 766 merece destaque pela mesma razão: o respeito às especificidades da atividade empresarial de grandes riscos. Determina o parágrafo que nos contratos de seguro paritários e simétricos, o segurado tem o dever de indicar, no questionário de avaliação de risco apresentado pelo segurador, as circunstâncias e fatos que ele sabe ou deveria saber e, que têm potencial de agravar o risco segurado. Caso não o faça, o segurado poderá perder o direito à garantia.

O segurado conhece sua atividade econômica empresarial melhor do que o segurador, embora não se possa desprezar a experiência que os seguradores e resseguradores possuem e que devem colocar à serviço dos segurados no momento da definição dos riscos predeterminados no contrato. A vivência em sua atividade e o conhecimento dos riscos aos quais está exposto é, ou deveria ser, de ampla ciência do segurado que, exatamente por isso, tem obrigação contratual de comunicar ao segurador. Contrato de seguro é contrato de boa-fé e esta implica, necessariamente, colaboração entre as partes, especialmente quando atuam em posição simétrica e paritária.

A caracterização da agravação intencional do risco prevista no artigo 768 do Código Civil de 2002, por sua vez, sempre foi tormentosa para a magistratura brasileira. O que caracteriza, de fato, a agravação do risco em cada caso concreto? A redação do artigo agora revisada e atualizada contribui decisivamente para reduzir o problema. Risco agravado é aquele que resulte de ação intencional e relevante, ressalvado que a intencionalidade não se refere ao resultado - dano patrimonial ou extrapatrimonial -, mas à própria agravação.

Dois aspectos técnicos da atividade securitária foram respeitados pela revisão e atualização do Código Civil de 2002: a frequência e a severidade dos riscos. Relevante é a agravação que torne mais frequentes ou mais severos os riscos, como pode ocorrer, por exemplo, com a companhia área que não realiza a manutenção de seus equipamentos da forma recomendada pelo fabricante. Ela aumenta exponencialmente a frequência e a severidade dos riscos. Mas, também pode ocorrer com a empresa de transporte de mercadorias que não prevê horário de repouso para seus motoristas, que os obriga a horas excessivas de trabalho, e que aumenta a frequência de acidentes, ou seja, de materialização de riscos. Em nenhum dos dois exemplos há intenção das empresas de que os riscos ocorram, mas há intencionalidade de redução de custos de transação às expensas do contrato de seguro, o que não é aceitável sob o ponto de vista da boa-fé e da função social do contrato.

Os artigos 769 e 771 criaram prazos para comunicação do segurado ao segurador sobre agravação de risco relevante que possa impactar no contrato e, também sobre o aviso da materialização do risco ou aviso de sinistro como é comumente denominado. O estabelecimento de prazo - 15 dias - e do início da contagem também soluciona um tormentoso problema para os contratantes e para o poder judiciário. Prazos definidos em dias são mais compatíveis com a dinâmica da vida contemporânea do que as expressões utilizadas no Código Civil de 2002. E a criação de um prazo final a partir do qual o segurado perderá o direito à indenização  - parágrafo 3º do artigo 771 - é instrumento técnico para garantia da adequada preservação das reservas técnicas que o segurador é obrigado a manter.

Os artigos 771-C e 771-D foram criados para atualizar o Código Civil de 2002 à luz da experiência cotidiana que pode ser observada nos tribunais brasileiros.

Nos casos de negativa de cobertura parcial ou total - 771-C -, o segurado poderá solicitar o trabalho técnico realizado pelo segurador na regulação de sinistro como forma de ampliar seus argumentos em razão da negativa. Nos contratos paritários e simétricos, no entanto, a posição das partes permite que o segurador tenha como confidenciais os documentos de regulação e liquidação que, no entanto, serão exibidos em juízo caso seja proposta a ação. A confidencialidade é medida necessária para a preservação de provas e, em algumas situações, até para a comprovação de tentativa ou consumação de fraude do segurado.

O artigo 771-D, por sua vez, estabelece regras para a atuação do regulador de sinistro - profissional do próprio segurador ou de empresa contratada para essa finalidade -, que deverá cumprir suas tarefas técnicas com celeridade, correção, boa-fé e com imparcialidade. A redação do artigo abre espaço para que a regulação de sinistro se torne uma qualificação profissional mais valorizada, certificada por escolas técnicas e com remuneração adequada às especificidades técnicas necessárias para cada modalidade de seguro.

Cumpre mencionar, por fim, o disposto no artigo 801 cujos parágrafos 2º e 3º atualizam o Código Civil de 2002 em aspectos essenciais para os seguros de pessoas da modalidade vida. Estabelece a nova redação do parágrafo 2º que a anuência de ¾ do grupo segurado só será exigida quando a mudança no contrato representar ônus ou restrição de direitos para os segurados. Em outros assuntos a anuência não será necessária, até porque representa um custo importante e que pode ser evitado.

E o parágrafo 3º do mesmo artigo adota decisão do Superior Tribunal de Justiça - STJ que reconheceu que compete exclusivamente ao estipulante a obrigação de prestar informações prévias aos potenciais segurados sobre as condições contratuais, em especial cláusulas limitativas e restritivas de direito. Relevante destacar que em muitos contratos de seguro de pessoas - vida e/ou acidentes pessoais -, o segurador sequer dispõe do endereço dos segurados porque o contato é apenas com o estipulante, quase sempre o empregador dos segurados. O mesmo pode ocorrer com contratos coletivos estipulados por operadoras de cartão de crédito, entidades de representação de classe e outros. 

Algumas conclusões 

Recentemente, o Senado Federal aprovou um projeto de lei originário da Câmara dos Deputados que trata dos contratos de seguro. O projeto retornou para a Câmara em razão das emendas apresentadas e, se aprovado será a nova lei de seguros brasileira e revogará o capítulo de Contratos de Seguro do Código Civil de 2002.

O anteprojeto do Código Civil que foi entregue ao Senado da República em 17 de abril revisou e atualizou o capítulo de Contratos de Seguro e, harmonizou esse capítulo com as mudanças ocorridas em outras áreas da lei civil em especial, a teoria geral dos contrato, direito das obrigações e responsabilidade civil. Além disso, compatibilizou o capítulo com o novo livro Direito Civil Digital, o que é bastante relevante na sociedade em que vivemos, de novas tecnologias.

A melhor solução seria compatibilizar o novo capítulo de Contratos de Seguro do Código Civil com o projeto de lei aprovado pelo Senado e em trâmite na Câmara dos Deputados, o "melhor dos dois mundos", unidos em benefício do mundo que sonhamos: sociedade justa, livre, solidária e com contratos de seguro para garantir riscos cujos danos não podem ser suportados individualmente.