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O que não está nos autos não está no mundo?

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Atualizado às 14:38

Quantas e quantas vezes essa frase não foi repetida. Isso significa, basicamente, que o juiz não pode levar em conta para decidir. Nada, absolutamente nada, a não ser que esteja estribado em elementos que constam dos autos.

Tem parecido que, hoje em dia, esta é uma verdade relativa.

São três as razões que me levam a fazer esta afirmação.

Um contexto em que as decisões têm de ser tomadas não levando em conta exclusivamente aquilo que consta dos autos, é o do litigante de má-fé, que age em venire contra factum proprium. Também a conduta da parte que seja anterior ao processo ou mesmo externa, concomitante, ao processo, deve ser levada em consideração.

A boa-fé irradia-se sobre todo o campo do Direito Público1 e Privado2. Para além de assegurar um critério para a adequada interpretação das condutas e gerar novos deveres a serem seguidos, a boa-fé também se volta a coibir o exercício inadmissível de direitos; quer dizer, o exercício de direito subjetivo de modo aparentemente lícito ou que esteja de acordo com o negócio celebrado ou com a lei, mas que deve ser coibido por ser disfuncional.3

Desse modo, os sujeitos são impedidos de desviar o exercício dos direitos de sua função e, ainda, são responsáveis pelas expectativas geradas pelo seu comportamento, objetiva e isoladamente considerado. Por isso, uma conduta que quebra a confiança ou frustra as legítimas expectativas pode ser considerada abusiva e sujeita ao controle do Judiciário.

Nem todo comportamento que está em conformidade com a lei deve ser admitido, pois pode não estar em conformidade com o Direito. Se o Direito Positivo é insuficiente para regular de forma expressa todas as possíveis situações que surgem nas relações jurídicas, a solução adotada pelo legislador é impor, mediante o estabelecimento de conceitos e cláusulas abertas, que os indivíduos atuem de modo leal, respeitando os seus comportamentos anteriores e as expectativas que foram criadas a partir deles.

Por isso, a vedação ao comportamento contraditório. Se a conduta atual deve respeitar as legítimas expectativas que foram criadas, o comportamento anterior da parte deve ser levado em consideração, quando se analisa se determinada conduta foi violadora da boa-fé. Por isso, Menezes Cordeiro busca definir o nemo potest venire contra factum proprium a partir da noção de "exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente".4

O comportamento contraditório ocorre quando existem dois ou mais comportamentos distintos, isolados e praticados pelo mesmo sujeitos, que embora lícitos, em si mesmos, se contradizem, de modo que o segundo rompe com a expectativa criada pelo primeiro.

No âmbito do processo, a boa-fé objetiva, como cláusula geral, foi expressamente prevista no art. 5º, do CPC, aplicando-se, também, o nemo potest venire contra factum proprium, que coíbe a conduta processual contraditória e desleal. Isto é, também no processo não pode haver a quebra da confiança gerada na parte contrária.

Para que a confiança, de uma das partes na conduta da outra, seja mantida íntegra, não serão levados em conta os atos praticados apenas no processo. Toda a relação das partes será analisada, independentemente de onde a conduta se manifeste: outros processos judiciais, processos administrativos, atos prévios ao ajuizamento da ação e, até mesmo, atos praticados no plano do Direito Material.

Outro exemplo se liga à litigância predatória. De fato, se uma das hipóteses de litigância predatória é o fato de 30 ações serem movidas quando, na verdade, os pedidos feitos, nestas 30 ações, poderiam ser formulados numa só, não há como o juiz se aperceber de que se trata de litigância predatória, a não ser que olhe para além dos limites do próprio processo.

Trata-se também de um comportamento contrário à boa-fé objetiva. A litigância predatória nada é mais é do que o abuso do exercício do direito de ação.5

A verificação da existência de conduta que pode ser qualificada de litigância predatória depende da ponderação entre valores ligados à boa-fé processual e ao acesso à Justiça. Embora a expressão litigância predatória não apareça expressamente em nenhuma norma escrita, evidentemente, é possível associá-la a diversas condutas previstas na lei, como, por exemplo, o art. 77, I, II e III, do CPC.

O contexto em que a litigância predatória tende a surgir é aquele em que há a democratização de bens e serviços essenciais, realidade que vem acontecendo de forma evidente nos séculos XX e XXI.

Tanto a democratização do acesso ao crédito quanto programas de incentivo do Estado que concretizam o direito fundamental à habitação, como, por exemplo, o Projeto Minha Casa, Minha Vida, consistem em exemplos deste fenômeno.

É interessante salientar, aqui, que em função destes exemplos acima referidos, são justamente o Estado e instituições financeiras réus habituais e também vítimas de litigância predatória.

A litigância predatória se manifesta predominantemente nas ações de massa (embora não exclusivamente como se disse), que podem dar origem às ações repetitivas, que podem gerar tanto o uso dos recursos repetitivos, quanto a instauração do IRDR, como podem, também, gerar ações coletivas.

Esses instrumentos processuais podem desempenhar o papel de instrumentos de cidadania. É lamentável que se faça mau uso deles, transformando-os em instrumentos por meio dos quais se praticam fraudes e é ainda mais triste se constatar que os verdadeiros autores das fraudes são, realmente, os advogados. Muitos deles acreditam que grandes empresas, instituições financeiras, e o próprio Estado seriam as suas "galinhas dos ovos de ouro", contra quem podem ser ajuizadas milhares de ações consumeristas, sob a falsa imagem de que esses advogados estariam servindo à sua função constitucional.6

O art. 2.º da recomendação 127/22 do CNJ define a litigância predatória como sendo: "[...] ajuizamento em massa em território nacional de ações com pedido e causa de pedir semelhantes em face de uma pessoa ou de um grupo específico de pessoas, a fim de inibir a plena liberdade de expressão[...]".

Este conceito não é exauriente, pois a litigância predatória pode ter outras finalidades, como, por exemplo, a de prejudicar um negócio concorrente, a de conseguir duas vezes a mesma indenização etc.

Em qualquer situação, há evidente violação a princípios éticos.

As medidas que o juiz pode tomar quando detecta a probabilidade de estar diante de um caso de litigância predatória é tema sobre o qual nosso STJ deve logo decidir, Tema: 1.198.

Discute-se a possibilidade de o juiz determinar, quando constata a prática de litigância predatória, a emenda à petição inicial, com apresentação de documentos aptos a embasar as pretensões deduzidas em juízo, como a procuração atualizada, declaração de pobreza, cópias do contrato e dos extratos bancários etc.

Trata-se de um recurso especial, julgado no regime dos repetitivos, em que se verificou a existência de 78.610 processos movidos contra bancos por apenas três advogados da cidade de Iguatemi, no Estado do Mato Grosso.7

No Brasil, existem também tristes exemplos em que as associações, que são legitimadas pela lei brasileira a mover ações coletivas, praticam fraudes por meio de ações coletivas. Dados oficiais do TJ/PE revelam que nas comarcas de Araripina e Ipubi, 30% a 50% dos processos tem o perfil de litigância predatória.8

Importante que se observe que o caráter predatório da litigância não é evidente, não é explícito. Normalmente aparece "disfarçado" de ato lícito, como acontece no exemplo já dado, em que um mesmo advogado entra com 6 ações, cada uma a respeito de um contrato diferente, celebrado pelo mesmo cliente, com uma certa instituição bancária.

Muito frequentemente, a litigância predatória é detectada a partir de uma análise que não envolve exclusivamente o processo em que ela ocorre. O observador deve distanciar mais a câmera do objeto focado, para ver o que está em seu redor. No caso concreto do exemplo dado, é necessário que o juiz perceba que existem seis processos, quando, na verdade, poderia haver apenas um. Normalmente, a vantagem que com isso se procura obter é um dano moral diferente para o prejuízo ocorrido em função de cada um dos contratos.9

Também é relevante sublinhar que a litigância predatória gera prejuízos para a própria administração da Justiça, pois são práticas que aumentam o custo da atividade judicante, tornando os processos mais morosos. Aumentam-se também os gastos com a gestão administrativa do acervo pelos tribunais. Há documentos oficiais em que se constata que a litigância predatória representa cerca de 30% dos processos em trâmite e um custo de mais de 10 bilhões de reais ao Judiciário, pois uma grande parte dessas ações tramita com gratuidade de justiça.10

A litigância predatória é evidentemente uma consequência nefasta da facilidade do acesso à Justiça. É relevante e louvável que haja acesso à Justiça quando se está diante de ações de consumo que dizem respeito aos setores de saúde, das finanças e de moradia, ligados a situações mais importantes da vida das pessoas.

No Amazonas, o juiz Marco Aurelio Plazzi Palis, do 1º Juizado Especial Cível de Manacapuru, extinguiu mais de 600 processos semelhantes, movidos por um só advogado: eram danos morais cobrados de uma empresa de energia elétrica. As partes, moradoras de comunidades rurais à beira de rios, de muito pouca ou nenhuma instrução, nem conheciam o advogado. Provavelmente, havia procurações com assinaturas falsificadas.11

A terceira e última circunstância que mostra que o juiz, às vezes, olha para fora do processo para decidir, é o campo das provas e da internet.

Tem acontecido de magistrados decidirem com base na prova dos autos, de certo modo, "complementada" por alguma pesquisa que tenha feito na internet. Esta circunstância não se confunde com as regras de experiência, nem com os fatos notórios. Estas são "brechas" lícitas para que a realidade penetre no processo, sem estar lá documentada. Autorizam o juiz a ter por verdadeiros "fatos que todo mundo sabe que ocorreram" ou o "modo como as coisas aconteceu".

Se dessa pesquisa, feita na internet, resultarem dados que vão servir de base de sua decisão, evidentemente, o contraditório deve ser proporcionado. A pesquisa pode estar enviesada ou malfeita. Ambas as partes têm o direito de se manifestar sobre pesquisas feitas pelo magistrado na internet, e, evidentemente, produzir contraprova.

Os problemas mais sérios acontecem quando magistrados resolvem fazer pesquisas para julgar um recurso especial. Por meio do recurso especial se decide matéria de Direito e não há, nesta fase do processo, dilação probatória. Como fazer?

Uma solução possível seria permitir que esta prova seja produzida; outra, recorrer por recurso extraordinário da decisão que leva em conta uma pesquisa feita por ministros na internet, sem que eles tenham aberto oportunidade para que as partes se manifestem e produzam contraprova. O juiz produziu prova de ofício! Como não dar às partes o mesmo direito? A ofensa ao princípio da ampla defesa é evidente.

Não admitido o recurso extraordinário por ausência de repercussão geral, o que nos resta é a rescisória: por ofensa manifesta e inadmissível ao art. 10 do CPC.

_______________

1 Tal como previsto no art. 5º, do CPC: "Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé"; e art. 37, da CF/88: "A Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte (...)".

2 Exemplificativamente, Art. 113, do Código Civil: "Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração"; e art. 422, do Código Civil: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé".

3 Judith Martins-Costa bem explica que "Evidentemente, a função de criação de deveres para uma das partes, ou para ambas, pode ter, correlativamente, a função de limitação ou restrição de direitos, inclusive de direitos formativos. Por essa razão é alargadíssimo esse campo funcional, abrangendo, por exemplo, relações com a teoria do abuso do direito, com a exceptio doli, a inalegabilidade de nulidades formais, a vedação a direitos por carência de seu exercício em certo tempo para além das hipóteses conhecidas da prescrição e da decadência etc. (...). Sob esta ótica, apresenta-se a boa-fé como norma que não admite condutas que contrariem o mandamento de agir com lealdade e correção, pois só assim se estará a atingir a função social que lhe é cometida". (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva. Educação, 2018, p. 440).

4 CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2011, p. 742.

5 Para maior aprofundamento do tema v.: SOUZA, Gabrielly de. Litigância predatória, tutela coletiva e o porvir do acesso à Justiça. Revista de processo, São Paulo, v. 49, n. 353, p. 217-237, jul./24.

6 ARRUDA ALVIM, Teresa; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; UZEDA, Carolina. Litigância predatória: um sério prejuízo à advocacia e ao acesso à justiça. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em: 13 jan. 2025.

7 Disponível aqui.

8 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO. Disponível aqui. Acesso em: 13 jan. 2025.

9 SOUSA, Alexandre Rodrigues de; OLIVEIRA JÚNIOR, Délio Mota de; SOARES, Carlos Henriques. Notas sobre a chamada litigância predatória: investigação de um conceito e métodos de mitigação. Revista de Processo, São Paulo, v. 49, n. 355, p. 23-51, set./24.

10 Ver Nota Técnica 01/22 CIJMG, citada por: SOUSA, Alexandre Rodrigues de; OLIVEIRA JÚNIOR, Délio Mota de; SOARES, Carlos Henriques. Notas sobre a chamada litigância predatória: investigação de um conceito e métodos de mitigação. Revista de Processo, São Paulo, v. 49, n. 355, p. 23-51, set./24.

11 Juiz extingue processo de advogado com mais de 600 ações semelhantes. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em: 17 jan. 2025.