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Um problema, muitas (possíveis) soluções: o meio de impugnação do acórdão que decide o agravo interno do art. 1.030, §2º do CPC

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Atualizado às 07:29

A recorribilidade das decisões que inadmitem recurso especial ou extraordinário tem sido objeto de nossas reflexões.1 Preocupa-nos, especialmente, a situação em que ao recurso de estrito direito é negado seguimento porque nele se estaria discutindo questão já decidida em precedente vinculante.

De acordo com o art. 1.030 do CPC, o presidente ou vice-presidente do tribunal local poderá inadmitir o recurso especial ou extraordinário em razão da falta dos requisitos de admissibilidade, positivos ou negativos, gerais ou específicos, dos referidos recursos (1.030, V). Mas, não é só. Poderá negar seguimento ao recurso extraordinário, sempre que discuta questão constitucional à qual o Supremo Tribunal Federal não tenha reconhecido a existência de repercussão geral ou a recurso extraordinário interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Supremo Tribunal Federal exarado no regime de repercussão geral (1.030, I, a). Além disso, poderá negar seguimento aos recursos de estrito direito sempre que o acórdão impugnado esteja em conformidade com tese fixada pelos Tribunais Superiores no julgamento de recursos repetitivos (1.030, I, b). 

Conforme o art. 1030, ainda, contra a decisão de inadmissibilidade com fundamento no seu inciso V, caberá agravo em recurso especial. Nas hipóteses do seu inciso I, contudo, o dispositivo prevê o cabimento de agravo interno (1.030, §2º). Ou seja, contra a decisão de inadmissibilidade, proferida pelo tribunal recorrido, caberá um ou outro ou ambos os recursos, a depender do(s) fundamento(s) adotado(s) na decisão. Apenas isso já seria suficiente para gerar incerteza jurídica. Afinal, nem sempre as decisões de inadmissibilidade têm sido claras quanto aos fundamentos adotados.

Há, todavia, um segundo (e mais grave) problema.

Como dito, art. 1.030, §2º prevê que, contra a decisão que inadmitir o recurso excepcional com fundamento em precedente vinculante, caberá agravo interno, que será julgado pelo órgão competente, a ser determinado pelo regimento interno do respectivo tribunal. A escolha é coerente. Afinal, dependendo dos fundamentos do agravo interno, será necessário que o julgamento do recurso exija a análise de fatos e provas (para apurar, por exemplo, a distinção entre os casos). Isso apenas pode ser realizado pelo tribunal local.

Julgado o agravo interno, porém, o CPC não traz expressamente qual seria o recurso cabível para a parte levar a matéria ao conhecimento do STJ ou do STF.

A questão remete diretamente à competência para o exercício do juízo de admissibilidade. Como se sabe, esta deverá, sempre, ser do juízo competente para decidir o mérito. No tocante aos recursos, ainda que a lei admita que o juízo de admissibilidade possa ser exercido pelo órgão a quo, tal circunstância não frustra nem impede a reanálise do tema pelo juízo pelo órgão ad quem.

A duplicidade de juízos de admissibilidade recursal visa a evitar que o órgão a quo barre o recurso, "para não sujeitar suas decisões a outro crivo, excluindo a chance de o recorrente ver apreciada sua manifestação".2 É justamente o que ocorre com a hipótese do 1.030, I, uma vez que cria obstáculo quase instransponível para o exercício do juízo de admissibilidade pelos tribunais superiores e gera efeito ainda mais lesivo, especialmente considerando as funções dos recursos especial e extraordinário.3

Tanto o STJ quanto o STF já se manifestaram sobre a questão, entendendo que a decisão de inadmissibilidade, com base no art. 1030, I, a e b, é irrecorrível.4 Desse modo, rigorosamente, caberia ao Tribunal local decidir, de forma definitiva, sobre a existência ou não de distinção entre a situação objeto do caso sub judice e aquela a que se refere o precedente.

Em outras palavras, o controle sobre a correta "aplicação" do precedente pelas instâncias ordinárias caberia unicamente ao Tribunal local.

Não concordamos com esse posicionamento.

Admiti-lo implicaria aceitar que a lei federal teria alterado e excluído a competência do STF e do STJ para o exercício de admissibilidade dos recursos a eles direcionados, o que é inconstitucional. Apenas a própria Constituição Federal pode delimitar a competência dos tribunais superiores, seja para ampliá-la, seja para - principalmente - restringi-la.

Além disso, em nosso entender, esse posicionamento acaba comprometendo o próprio sistema de precedentes, pondo em risco a uniformidade e coerência que se pretendeu assegurar.

Pensamos serem cabíveis, na hipótese, novos recursos excepcionais.5 Esses recursos, é importante ressaltar, não devem ser uma repetição do recurso anterior (inadmitido), ou das violações à lei praticadas pelo acórdão inicialmente impugnado. O acordão recorrido, agora, é o que julgou o agravo interno e, é apenas nele, que devem ser identificadas as violações à lei (ou à Constituição) - se existentes.

Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, por sua vez, defendem a interposição de agravo em recurso especial, ressaltando a inconstitucionalidade da tentativa de supressão do exercício do juízo de admissibilidade pelo tribunal competente para julgar o mérito do recurso.6 O mesmo entendimento é sustentado por Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery que, em interpretação conforme a Constituição, afirmam que a única solução possível, para o problema criado pela ausência de previsão legal quanto ao recurso cabível na hipótese, é admitir a recorribilidade da decisão, que julga o agravo interno, pelo agravo previsto no art. 1.042.7

Além disso, não se pode negar o cabimento da reclamação, diante da violação a precedente vinculante e da usurpação de competência do tribunal superior, que não pode ser impedido de realizar juízo de admissibilidade sobre os recursos a ele destinados.

O mandado de segurança, também, é instrumento de que pode valer a parte. Nesse sentido, nos autos do Agravo Interno no Pedido de Tutela Provisória 473/SP, de relatoria do Min. Raul Araújo, a Quarta Turma do STJ concluiu que: "tratando-se de ato judicial contra o qual não cabe recurso, tem a parte, ainda, via excepcional outra, caso entenda ter tido violado direito próprio".8

O entendimento dominante, contudo, junto ao STJ e STF, é de que não se deve admitir mandado de segurança ou qualquer outro sucedâneo recursal, diretamente para aquela Corte.9

Diante desse contexto, mostra-se especialmente relevante o acórdão proferido pela Primeira Turma do STJ, nos autos do AIRMS nº 53.790/RJ, de relatoria do Min. Gurgel de Faria, em que se entendeu ser cabível mandado de segurança, perante o próprio tribunal.

No caso, diante da inadmissão do recurso especial e do desprovimento do agravo interno, o recorrente impetrou mandado de segurança, perante o tribunal local, que não foi sequer admitido. Seguiu-se recurso ordinário, em cujo julgamento o STJ reverteu a decisão e determinou ao TJRJ que decidisse o mandado de segurança, no mérito:

"7. A irrecorribilidade do acórdão objeto da impetração, que nem sequer admite reclamação, como decidido pela Corte Especial (Rcl 36.476/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, julgado em 05/02/2020, DJe 06/03/2020), evidencia, no caso concreto, situação de exceção a admitir a via do mandamus. 8. O julgado atacado no writ manifesta teratologia no emprego da tese repetitiva firmada no REsp 1.105.442/RJ: "é de cinco anos o prazo prescricional para o ajuizamento da execução fiscal de cobrança de multa de natureza administrativa, contado do momento em que se torna exigível o crédito (art. 1º do Decreto n. 20.910/1932)."

(...) 9. Do confronto entre o acórdão recorrido e o recurso especial obstado, constata-se que a lide não discutia "a extensão do prazo prescricional da pretensão executória da multa administrativa, mas qual seria o seu termo inicial, se a data do ajuizamento da ação anulatória, caso em que a opção pela via judicial antes do exaurimento da esfera administrativa denotaria que o contribuinte abdicou da via administrativa, possível interpretação do parágrafo único do art. 38 da Lei n. 6.830/1980, ou o efetivo término do processo administrativo, uma vez que nele foi interposto recurso pela Petrobras", como bem consignado pelo Ministério Público Federal no parecer lançado aos presentes autos. 10. Caracterizadas a irrecorribilidade e a teratologia do decisum atacado, exsurge cabível o uso excepcional da via mandamental. 11. O indeferimento liminar da inicial do mandamus na origem e a impossibilidade de aplicação da teoria da causa madura em sede de recurso ordinário (art. 515, § 3º, do CPC/1973) não permitem indagar acerca do termo inicial correto para o cômputo do prazo prescricional, mas apenas cassar o aresto recorrido e determinar o retorno dos autos para o Tribunal a quo processar e julgar o mandado de segurança ali impetrado, como entender de direito."10

Devolvidos os autos ao juízo de origem, a segurança foi concedida, de modo que o tribunal local, realmente, reviu a decisão de inadmissibilidade e determinou a submissão do recurso especial "a novo juízo de admissibilidade pela E. Terceira Vice-Presidência".11

Os precedentes vinculantes, conforme ressalta Teresa Arruda Alvim, não mataram a atividade interpretativa do juiz.12 Ela pode ficar, sim bastante reduzida, quando se trata de um precedente proferido para resolver casos de massa que são absolutamente idênticos. Entretanto, mesmo nesses casos, não têm sido incomuns decisões equivocadas, em que o vice-presidente ou presidente do Tribunal, por exemplo, acabam aplicando o precedente para hipótese que não é aquela que deu origem à tese, o que pode acontecer em razão de como a própria tese foi redigida. A tese não deve, segundo salienta Teresa Arruda Alvim, ser abstrata e se afastar demasiadamente do caso concreto que lhe deu origem. Mas há situações em que isso ocorre e que levam a que recursos de estrito direito sejam ilegalmente barrados no tribunal local, pela falta de compreensão do alcance do precedente.

É imprescindível que a questão chegue aos tribunais superiores para que eles próprios possam delimitar a tese que fixaram. Entender de forma diversa, de acordo com Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero, "significa suprimir do STF e do STJ o poder de afirmar os seus próprios precedentes mediante as devidas distinções e ao fim e ao cabo, não permitir o próprio desenvolvimento do direito mediante adições de paulatinas ampliações ou restrições".13

A discussão em torno de qual o meio de impugnação do acórdão, que decide o agravo interno do art. 1.030, §2º do CPC está longe de ser encerrada. Parece haver, porém, convergência quanto à impossibilidade de se admitir que decisões teratológicas sejam mantidas no ordenamento, sem que a parte tenha qualquer chance de defesa. Isso desmoraliza o Poder Judiciário e, especialmente quanto às decisões que tratam da conformidade ou não do acórdão recorrido com tese firmada pelos Tribunais Superiores, retira a confiança no sistema de precedentes, fundamental para a garantia da segurança jurídica.

__________

1 Dois recursos, muitos problemas: sobre a recorribilidade das decisões que inadmitem recurso especial ou extraordinário. Disponível aqui.

2 FUX, Luiz. A reforma do processo civil: comentários e análise crítica da reforma infraconstitucional do Poder Judiciário e da reforma do CPC. 2. ed. Niterói: Impetus, 2008, p. 16-17. 

3 Restrição semelhante é encontrada em decisões monocráticas, nas quais o relator, prolator da decisão agravada, inadmite o agravo interno (por exemplo, vide AgInt no Pedido de Tutela Provisória nº 936/SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, DJe 23/11/2017). Ao assim fazê-lo, obsta que o colegiado tenha acesso à decisão e ao próprio recurso, inviabilizando o controle sobre seus atos. A questão já foi observada por Athos Gusmão Carneiro, que sinalizou para o risco de criar-se um círculo vicioso. Em suas palavras "O agravo regimental (rectius, agravo interno) interposto contra a decisão de relator deve ser submetido, necessariamente, ao órgão colegiado competente [...]". (Recurso Especial, Agravos e Agravo interno: exposição didática: área do processo civil, com inovação à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 300).

4 Agravo Interno no TP 473/SP, julgado em 17/08/2017, DJe 08/09/2017. No mesmo sentido, igualmente de relatoria do Min. Raul Araújo: Agravo Interno na Petição 11.856/PE, julgado em 18/05/2017, DJe 01/06/2017. A Corte Especial afirmou que o agravo interno é o "único recurso cabível" contra a decisão que inadmite recurso extraordinário, na forma do artigo 1.030, I, "a": (Agravo em Recurso Extraordinário no Agravo Interno no Recurso Extraordinário nos Embargos de Declaração no Agravo Regimental no REsp 1532329/SP, Rel. Min. Humberto Martins, Corte Especial, julgado em 19/04/2017, DJe 03/05/2017); No mesmo sentido: "É inadmissível a interposição de novo especial contra acórdão que, no julgamento de agravo interno, manteve a decisão de negativa de seguimento de recurso especial anterior ao fundamento de encontrar-se o entendimento da Corte de origem em harmonia com a orientação firmada no julgamento de recurso especial repetitivo" (STJ, AgInt no AREsp n. 1.829.782/RJ, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 23/5/2022, DJe de 27/5/2022).

5 ALVIM, Teresa Arruda; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários ao Código de Processo Civil. 3. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 1608. No mesmo sentido: CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 554; e LIPIANI, Julia. Como promover a superação dos precedentes formados nos julgamentos de recursos repetitivos por meio dos recursos especial e extraordinário? In: GALINDO, Beatriz Magalhães; KOHLBACH, Marcela [Coord.]. Recursos no CPC/15: perspectivas, críticas e desafios. Salvador: Editora Juspodivm, 2017, p. 145-166.

 

6 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Comentários ao Código de Processo Civil: artigos 976 a 1.044. Vol. XVI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 262-263.

7 "Só será constitucional essa sistemática, se entender-se recorrível por agravo interno, a decisão do relator que nega seguimento ao RE/REsp (CPC 1030 I), e, depois, por agravo de instrumento do CPC 1042, para o STF e/ou STJ, da decisão do tribunal local que julgar o mencionado agravo interno" (Código de processo civil comentado. 21. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2023, p. 2.341-2.342). No mesmo sentido: NERY JUNIOR, Nelson; ABBOUD, Georges. Recursos para os Tribunais Superiores e a Lei 13.256/2016. Revista de Processo, v. 257. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 41, julho, 2016.

8 AgInt no TP n. 473/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 17/8/2017, DJe de 8/9/2017.

9 AgInt nos EDcl no RMS 63.188/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/08/2020, DJe 27/08/2020. Ainda, da Corte Especial: AgInt no MS 25.287/DF, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, CORTE ESPECIAL, julgado em 22/10/2019, DJe 30/10/2019; MS n. 27.348/DF, relator Ministro Og Fernandes, relator para acórdão Ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, julgado em 17/5/2023, DJe de 9/6/2023.

10 STJ, AgInt no RMS n. 53.790/RJ, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 17/5/2021, DJe de 26/5/2021

11 TJRJ, Mandado de Segurança nº 0061939-54.2015.8.19.0000 - MANDADO DE SEGURANÇA. Des(a). CUSTÓDIO DE BARROS TOSTES - Julgamento: 24/10/2016 - OE - SECRETARIA DO TRIBUNAL PLENO E ORGAO ESPECIAL

12 ARRUDA ALVIM, Tereza. O que significa dizer que os juízes devem obedecer a precedentes? Migalhas de Peso, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 9 ago. 2023.

13 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado. 9. ed. São Paulo: Thompson Reuters Revista dos Tribunais. 2023, p. 1.215-1.216.