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Dois recursos, muitos problemas: sobre a recorribilidade das decisões que inadmitem recurso especial ou extraordinário

terça-feira, 22 de junho de 2021

Atualizado às 08:36

O art. 1.030 do CPC, determina que, apresentadas as contrarrazões, o presidente ou vice-presidente do tribunal recorrido, poderá inadmitir o recurso especial ou extraordinário: i) por ausência de qualquer dos requisitos de admissibilidade, positivos ou negativos, gerais ou específicos, dos referidos recursos (1.030, V); ii) sempre que o acórdão impugnado esteja em conformidade com tese fixada em recursos repetitivos (1.030, I, b); e iii) quanto ao recurso extraordinário, sempre que discuta questão constitucional à qual o Supremo Tribunal Federal não tenha reconhecido a existência de repercussão geral ou a recurso extraordinário interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Supremo Tribunal Federal exarado no regime de repercussão geral (1.030, I, a). 

O mesmo artigo afirma que contra a decisão de inadmissibilidade prolatada sob os fundamentos expostos no inciso I, caberá agravo interno (1.030, §2º) e que contra a decisão de inadmissibilidade prolatada na forma do inciso V, caberá agravo em recurso especial. Ou seja, contra a decisão de inadmissibilidade, prolatada pelo tribunal recorrido, caberá um ou outro recurso, a depender do fundamento adotado na decisão. Apenas isso já seria suficiente para gerar incerteza jurídica. Afinal, nem sempre as decisões de inadmissibilidade têm sido claras quanto aos fundamentos adotados.

Além disso, também é possível que a inadmissibilidade se dê por ambos os fundamentos. O presidente ou vice-presidente do tribunal recorrido poderá, simultaneamente, inadmitir o recurso especial, diante da incompatibilidade com precedente vinculante e, ainda, pela ausência de preparo ou de demonstração efetiva da violação à lei federal.1

Nesses casos, considerando a multiplicidade de fundamentos da decisão, será necessária a interposição de ambos os recursos, como, inclusive, consta no enunciado 77, do CJF: "Para impugnar decisão que obsta trânsito a recurso excepcional e que contenha simultaneamente fundamento relacionado à sistemática dos recursos repetitivos ou da repercussão geral (art. 1.030, I, do CPC/2015) e fundamento relacionado à análise dos pressupostos de admissibilidade recursais (art. 1.030, V, do CPC/2015), a parte sucumbente deve interpor, simultaneamente, agravo interno (art. 1.021 do CPC/2015) caso queira impugnar a parte relativa aos recursos repetitivos ou repercussão geral e agravo em recurso especial/extraordinário (art. 1.042 do CPC/2015) caso queira impugnar a parte relativa aos fundamentos de inadmissão por ausência dos pressupostos recursais".

Parece-nos que a interposição simultânea é realmente obrigatória. Isso, por força dos enunciados das Súmulas 283/STF e 126/STJ, que impõem a impugnação de todos os fundamentos aptos a sozinhos manterem a decisão recorrida.2-3

A necessidade de interposição de ambos os recursos, sobretudo à luz da jurisprudência do STJ, justifica-se, também, pelo entendimento da Corte Especial, no sentido de que "a decisão que não admite o recurso especial tem como escopo exclusivo a apreciação dos pressupostos de admissibilidade recursal. Seu dispositivo é único, ainda quando a fundamentação permita concluir pela presença de uma ou de várias causas impeditivas do julgamento do mérito recursal, uma vez que registra, de forma unívoca, apenas a inadmissão do recurso".4

Teresa Arruda Alvim sustenta - na mesma linha do enunciado do CJF - que, nesses casos, são cabíveis ambos os recursos. Apesar disso, em entendimento alinhado com a primazia da resolução do mérito e a ampla sanabilidade de defeitos processuais que vigora no CPC/2015, afirma que, interposto apenas um dos recursos (por equívoco da parte), que aborde fundamentos de inadmissibilidade de ambas as naturezas, a solução não deve ser a inadmissão do recurso, mas a determinação do seu desmembramento.5

Há, ainda, um segundo (e mais grave) problema.

Como dito, o art. 1.030, §2º prevê que, contra a decisão que inadmitir o recurso excepcional com fundamento em precedente vinculante, caberá agravo interno, que será julgado pelo órgão competente, a ser determinado pelo regimento interno do respectivo tribunal. A escolha é coerente. Afinal, dependendo dos fundamentos do agravo interno, o julgamento do recurso pode exigir a análise de fatos e provas (para apurar, por exemplo, a distinção entre os casos). Isso apenas pode ser realizado pelo tribunal recorrido.

Julgado o referido recurso, porém, o CPC não traz expressamente qual seria o recurso cabível para a parte levar a matéria ao conhecimento do STJ ou do STF.

A questão remete diretamente à competência para o exercício do juízo de admissibilidade. Como se sabe, esta deverá, sempre, ser do juízo competente para decidir o mérito. No tocante aos recursos, ainda que a lei admita que o juízo de admissibilidade possa ser exercido pelo órgão a quo, tal circunstância não frustra nem impede a reanálise do tema pelo juízo pelo órgão ad quem.

O Min. Luiz Fux, atual presidente do STF, defendendo a duplicidade de juízos de admissibilidade recursal, ressalta que uma de suas finalidades é evitar que o órgão a quo barre o recurso, "para não sujeitar suas decisões a outro crivo, excluindo a chance de o recorrente ver apreciada sua manifestação".6 É justamente o que ocorre com a hipótese do 1.030, I, uma vez que cria obstáculo quase instransponível para o exercício do juízo de admissibilidade pelos tribunais superiores e gera efeito ainda mais lesivo, especialmente considerando as funções dos recursos especial e extraordinário.7

Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, fazendo a mesma crítica que aqui se põe, defendem a interposição de agravo em recurso especial, ressaltando a inconstitucionalidade da tentativa de supressão de recurso, do próprio exercício do juízo de admissibilidade pelo tribunal competente para julgar o mérito.8

Não parece, porém, que seja possível extrair do art. 1.042 interpretação que autorize a interposição daquele recurso, razão pela qual sustentamos, no caso, o cabimento de novos recursos excepcionais.9 Esses recursos, é importante ressaltar, não devem ser uma repetição do recurso anterior (inadmitido), ou das violações à lei praticadas pelo acórdão inicialmente impugnado. O acordão recorrido, agora, é o que julgou o agravo interno e, é apenas nele, que devem ser identificadas as violações à lei (ou à Constituição) - se existentes.

Apesar disso, a jurisprudência tem entendido pelo não cabimento de qualquer recurso. O STJ já se manifestou sobre o tema. Em julgado da Quarta Turma, ressaltou que a decisão que julgar o agravo interno interposto contra decisão de inadmissibilidade é irrecorrível e que, nos termos do voto do Rel. Min. Raul Araújo, "tratando-se de ato judicial contra o qual não cabe recurso, tem a parte, ainda, via excepcional outra, caso entenda ter tido violado direito próprio".10

O cabimento do mandado de segurança foi reiterado recentemente nos autos do AgInt no Recurso em Mandado de Segurança nº 53790/RJ, de relatoria do Min. Gurgel de Faria, julgado em 17/05/2021. Nele, a Primeira Turma consignou que "a irrecorribilidade do acórdão objeto da impetração, que nem sequer admite reclamação, como decidido pela Corte Especial (Rcl 36.476/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 05/02/2020, DJe 06/03/2020), evidencia, no caso concreto, situação de exceção a admitir a via do mandamus".

O entendimento, porém, não é uniforme e significaria, em outras palavras, aceitar que lei federal teria retirado a competência do STF e do STJ para o exercício de admissibilidade dos recursos a eles direcionados, o que é inconstitucional. Apenas a própria Constituição Federal pode delimitar a competência dos tribunais superiores, seja para ampliá-la, seja para - principalmente - restringi-la.

Assim, evidente que mantida a decisão de inadmissão do recurso especial no julgamento no julgamento do agravo interno, deve ser possível a interposição de novo recurso especial ou extraordinário. Além disso, como várias vezes já decidiu o STF, não se pode negar o cabimento da reclamação, diante da violação a precedente vinculante e da usurpação de competência do tribunal superior, que não pode ser impedido de realizar juízo de admissibilidade sobre os recursos a ele destinados.11 Em todo caso, é importante ressaltar que, considerando a dúvida objetiva acerca do meio adequado para impugnar tais decisões, recomenda-se que o tribunal aplique a convertibilidade. Assim, proposta reclamação ou impetrado o mandado de segurança, a medida deve ser admitida e julgada, especialmente porque, tanto em um quanto em outro caso, há a afirmação de que o tribunal local teria cometido violação gravíssima.

Para os advogados e as partes, todavia, o problema persiste. Em um sistema que, embora tenha destacado o princípio da instrumentalidade também em grau recursal (art. 932, parágrafo único, do CPC, por exemplo), tem, na prática punido recursos manifestamente incabíveis, com majoração de honorários recursais; prevê honorários de sucumbência para as reclamações e estabelece competências distintas para o ajuizamento de medidas  que podem chegar ao mesmo resultado (o mandado de segurança, no próprio tribunal; a reclamação, no tribunal cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir), qualquer escolha que a parte faça, na tentativa de garantir seus direitos, estará exposta a riscos. Riscos que, infelizmente, foram criados pelo legislador e, até agora, não foram eliminados pela jurisprudência.

__________

1 Inadmitir e negar seguimento são sinônimos: ambos dizem respeito ao juízo de admissibilidade (negativo) do recurso. Nesse sentido: ALVIM, Teresa Arruda; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários ao Código de Processo Civil. 3. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 1607.

2 Sobre o tema, vide: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil: o processo civil nos tribunais, recursos, ações de competência originária de tribunal e querela nullitatis, incidentes de competência originária de tribunal. 14. ed. reform. Salvador: Editora Juspodivm, 2017, p. 383-386.

3 Claro que tal entendimento não se aplica quando a parte, no exercício da sua disponibilidade sobre o recurso, opte por recorrer apenas parcialmente da decisão de inadmissibilidade, concordando com o trânsito em julgado do capítulo do acórdão impugnado pelo recurso especial, na forma do art. 1.034, p. ú..

4 EAResp 831.326/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Rel. para Acórdão Min. Luis Felipe Salomão, J. 19.09.2018, DJe 30.11.2018.

5 Os agravos no CPC de 2015. 5. ed. - Curitiba: Editora Direito Contemporâneo, 2021, p. 467.

6 A reforma do processo civil: comentários e análise crítica da reforma infraconstitucional do Poder Judiciário e da reforma do CPC. 2. ed. - Niterói: Impetus, 2008, p. 16-17.

7 Restrição semelhante é encontrada em decisões monocráticas, nas quais o relator, prolator da decisão agravada, inadmite o agravo interno (por exemplo, vide AgInt no Pedido de Tutela Provisória nº 936/SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, DJe 23/11/2017). Ao assim fazê-lo, obsta que o colegiado tenha acesso à decisão e ao próprio recurso, inviabilizando o controle sobre seus atos. A questão já foi observada por Athos Gusmão Carneiro, que sinalizou para o risco de criar-se um círculo vicioso. Em suas palavras "O agravo regimental (rectius, agravo interno) interposto contra a decisão de relator deve ser submetido, necessariamente, ao órgão colegiado competente [...]". (Recurso especial, agravos e agravo interno: exposição didática: área do processo civil, com inovação à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Rio de Janeiro : Forense, 2005, p. 316).

8 Comentários ao Código de Processo Civil : artigos 976 a 1.044. v. 16. Coord. Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 262-263.

9 ALVIM, Teresa Arruda; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários ao Código de Processo Civil. 3. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 1608. No mesmo sentido: CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 554; e LIPIANI, Julia. Como promover a superação dos precedentes formados nos julgamentos de recursos repetitivos por meio dos recursos especial e extraordinário? In: Recursos no CPC/15: perspectivas, críticas e desafios. Coordenadoras Beatriz Magalhães Galindo e Marcela Kohlbach. Salvador: Editora Juspodivm, 2017, p. 145-166.

10 Agravo Interno no TP 473/SP, julgado em 17/08/2017, DJe 08/09/2017. No mesmo sentido, igualmente de relatoria do Min. Raul Araújo: Agravo Interno na Petição 11.856/PE, julgado em 18/05/2017, DJe 01/06/2017. A Corte Especial, embora tratando da jurisdição do STJ, afirmou que o agravo interno é o "único recurso cabível" contra a decisão que inadmite recurso extraordinário, na forma do artigo 1.030, I, "a": (Agravo em Recurso Extraordinário no Agravo Interno no Recurso Extraordinário nos Embargos de Declaração no Agravo Regimental no REsp 1532329/SP, Rel. Min. Humberto Martins, Corte Especial, julgado em 19/04/2017, DJe 03/05/2017).

11 Entendendo pelo cabimento da reclamação: Rcl 30505 AgR, Relator ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 29/06/2018, DJe 03/08/2018; Rcl 31401, Relator Min. ALEXANDRE DE MORAES, julgado em 01/02/2019, DJe 04/02/2019. Em sentido contrário, pelo não cabimento da reclamação: Rcl 38845 AgR, Relatora Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 15/04/2020, DJe 12/05/2020; Rcl 24145 AgR, Relator Min. EDSON FACHIN, Primeira Turma, julgado em 07/10/2016, DJe 24-10-2016; e Rcl 9433 AgR, Relator Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 15/03/2016, DJe 11/04/2016 (nesse julgamento, é importante consignar, restou vencido o Ministro Marco Aurélio, que entendeu pelo cabimento da reclamação).