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Votos para 2021: o fim da jurisprudência defensiva

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Atualizado às 07:50

O ano de 2020 foi marcado por muitas mudanças drásticas e repentinas, que atingiram a todos. Com o Poder Judiciário não foi diferente. Todavia, com uma mobilização rápida e organizada, seus órgãos se adequaram à nova realidade, o que impediu a interrupção na prestação da tutela jurisdicional.

Seus servidores merecem nosso reconhecimento pelo seu empenho, bem como a OAB por estar atenta à observância das garantias constitucionais e prerrogativas dos advogados.

Mas uma tendência que se mostrou mais forte neste ano e que merece toda nossa atenção - e preocupação - é o recrudescimento, em especial nos tribunais superiores, da chamada jurisprudência defensiva.

Pensávamos que o CPC/2015, com o devido prestígio que deu aos princípios da instrumentalidade e da cooperação, seria uma barreira suficientemente forte e efetiva para afastar de vez essa prática indesejável dos nossos tribunais. Imaginávamos que o tom da jurisprudência seria marcado pelo aproveitamento dos atos processuais, a fungibilidade e a sanabilidade dos vícios no processo, ainda que graves, inclusive nos tribunais superiores, tal como expressamente previsto nos arts. 76 e 932, parágrafo único do CPC.

Isso porque, como um dos subscritores desta nota já afirmou anteriormente, "'simples' mudanças legislativas, no entanto, não são capazes, por si só, de ensejar grandes alterações. As mudanças efetivas provêm, principalmente, da atuação concreta dos Tribunais Superiores"1, que devem - acrescentamos - ao interpretar a lei, influir positivamente na concretização dos instrumentos previstos pelo legislador de 2015.

Mas, infelizmente, não é isso o que se viu.

No julgamento do REsp 1.813.684/SP, por exemplo, a falta de comprovação do feriado local no momento da interposição do recurso foi tida como vício insanável - já escrevemos a esse respeito em outra oportunidade neste Migalhas2. No Agravo Interno na Ação Rescisória 6.597/DF, a 2ª Seção decidiu que "havendo intimação eletrônica e publicação no Diário da Justiça Eletrônico, prevalece a data prevista nesta última", em contrariedade ao art. 270 do CPC que dá preferência ao ato de comunicação por meio eletrônico3.

Nessa tendência formalista, a Corte Especial, no julgamento do Agravo Interno nos Embargos de Divergência em AREsp 1.238.270/RS, decidiu que a falta da juntada da certidão de julgamento do acórdão paradigma, no ato de interposição dos Embargos de Divergência, é vício insanável, resultando na impossibilidade de correção do vício e, como consequência, na inadmissibilidade do recurso.

De acordo com o STJ, a comprovação da divergência, que é um dos requisitos de admissibilidade dos Embargos de Divergência, deve se dar, cumulativamente, com a "juntada de certidões; (b) apresentação de cópia do inteiro teor dos acórdãos apontados; (c) a citação do repositório oficial, autorizado ou credenciado nos quais eles se achem publicados, inclusive em mídia eletrônica; e (d) a reprodução de julgado disponível na rede mundial de computadores, com a indicação da respectiva fonte na internet" (g.n.).

Segundo entendemos, o STJ não trilhou o melhor caminho em nenhuma dessas três situações.

Especialmente no que se refere à demonstração da divergência, nos Embargos de Divergência, a exigência da juntada da certidão vai diretamente de encontro com o que dispõe o art. 1.043, §4º do CPC, segundo o qual a divergência se provará "com certidão, cópia ou citação de repositório oficial4 ou credenciado de jurisprudência. ou com a reprodução de julgado disponível na rede mundial de computadores" (g.n.). A Corte Especial do STJ criou uma restrição ao conhecimento do recurso que o próprio legislador não impôs, e, como se sabe, segundo recomendam as máximas da interpretação, a limitação ao exercício de direitos deve ser interpretada restritivamente.5

Além disso, a juntada de certidão é, em verdade, só mais um meio de comprovação da divergência jurisprudencial. As informações que constam na certidão - nome do relator, órgão julgador, dia de julgamento, resultado . - em regra, também podem ser extraídas do cabeçalho do acórdão, da ementa, do voto, do dispositivo. A certidão nada mais é do que a "ementa" dessas informações, ou seja, uma "compilação" desses dados, subscrita pela secretaria do Tribunal.

Se a mesma informação consta de outro documento juntado pelo recorrente, ou pode ser facilmente obtida pelo simples acesso à internet - o que, pelo princípio da cooperação, pode ser feito pelo próprio serventuário responsável pela triagem de admissibilidade do recurso - o não conhecimento do meio de impugnação é medida extrema, de injustificável rigor formalista. Quando menos, deve-se proporcionar à parte a oportunidade de juntar aos autos o documento faltante.

O rel. min. Jorge Mussi entendeu, contudo, que a falta da juntada desse documento não se enquadraria na categoria de vício formal, afastando, assim, a aplicação do art. 932, parágrafo único do CPC, que determina ao relator, antes de inadmitir o recurso, que conceda o prazo de 5 (cinco) dias para regularização de vício ou complementação de documentação exigível.

O relator observou que a ausência de juntada da certidão de julgamento "constitui claramente vício substancial, resultante da não observância do rigor técnico exigido na interposição do presente recurso".

Em nosso entender, configuraria falta de rigor técnico interpor o recurso de embargos de divergência sem apontar divergência alguma, ou juntando acórdãos de tribunais locais, o que não era o caso.

A respeito do que sejam os vícios formais, a doutrina esclarece que são aqueles que se reportam à forma, "que pode referir-se ao ato processual em si mesmo (v.g. a forma da sentença); ao conjunto de atos processuais (forma requerida para a validade de outro ato); e à colocação do ato no curso do processo, ou seja, à oportunidade e lugar em que o ato deve realizar-se"6. A falta da juntada da certidão de julgamento, quando muito, poderia ser enquadrada como defeito formal, atraindo, assim,  a incidência do art. 932, parágrafo único, do CPC. 

A gravidade do vício - caso a falta de certidão possa assim ser caracterizada - é absolutamente desproporcional à importância do ato que foi repelido pelo STJ, na hipótese, a interposição dos Embargos de Divergência, recurso voltado a corrigir a desarmonia interna nos próprios Tribunais Superiores e a manter a jurisprudência uniforme e estável, garantindo previsibilidade e segurança jurídica.

O ano de 2020, para dizer o mínimo, está sendo absolutamente atípico. Do começo ao fim... pois a pandemia continua. Mas, ainda que o caos nos tenha rondado, sobrevivemos e iniciaremos 2021 com a esperança de que tudo melhore, e que todos possamos ter, nesse novo ano que se inicia, um pouco mais de paz de espírito.

Para nós, que operamos com o Direito, isso passa pelo fim da jurisprudência defensiva e da visão do processo como um campo minado de armadilhas.

__________

1 João Ricardo Camargo. O novo desenho estrutural dos Embargos de Divergência no STJ traçado pelo Código de Processo Civil de 2015. In: Revista de Processo, vol. 272, p. 294.

2 Disponível aqui.

3 Esse entendimento, todavia, não é pacífico no STJ. Em sentido contrário, dando prevalência à intimação eletrônica sobre a intimação por Diário de Justiça Eletrônico, vejam-se os seguintes acórdãos: AgInt nos EDcl no AREsp 1.430.159/RJ, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª T., j. 8.10.2019; EDcl no AgInt no AREsp 1.281.774/AP, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª T., j. 16.3.2020; EDcl no AgInt no AREsp 1.343.230/RJ, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª T., j. 18.6.2019. AgInt nos EDcl no AREsp 1.343.785/RJ, rel. Min. Raul Araújo, 4ª T., j. 18.6.2019.

4 Segundo a Instrução Normativa 1/2017, os repositórios oficiais da jurisprudência do STJ são os seguintes: "Os repositórios oficiais da jurisprudência do STJ são os seguintes: I - Revista Eletrônica da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça; II - Revista de Súmulas do Superior Tribunal de Justiça; III - Revista do Superior Tribunal de Justiça; IV - Superior Tribunal de Justiça - Publicações eletrônicas; V - Coleção Especial de Jurisprudência do STJ - Publicação eletrônica; VI - Revista do Tribunal Federal de Recursos; VII - Revista Trimestral de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal".

5 Esclarece Tercio Sampaio Ferraz Jr., com toda a razão, que a interpretação restritiva "supõe que o legislador racional, por coerência com os valores que o ordenamento agasalha, deseja uma imposição de sentido rigoroso". Introdução ao estudo do direito. 10ª ed., S. Paulo: Atlas, 2018, p. 257.

6 Roque Komatsu. Da invalidade no processo civil. S. Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, 2019.