Teoria do Processo
quinta-feira, 1 de junho de 2017
Atualizado em 31 de maio de 2017 12:41
Jorge Amaury Maia Nunes
Em uma coluna sobre processo e procedimento, que já com mais de dois anos desde a primeira publicação, parece um imperdoável equívoco não ter sido lançado, até agora, nenhum artigo que procurasse discutir sobre as teorias que tentam explicar o processo, e buscar sua natureza jurídica. Vamos tentar resgatar o débito, a partir desta data.
Processo é o veículo posto à disposição dos cidadãos para levar sua ação ao Poder Judiciário, visando a obter deste uma resposta sobre determinada pretensão (sentido lato) exercida. Processo é instrumento de provocação da jurisdição, que, na maioria dos casos, serve à realização do direito material, seja por meio de sua reparação, seja por meio de sua preservação, seja por meio de seu acertamento.
Uma das grandes preocupações da ciência processual moderna sempre foi, desde OSKAR VON BÜLOW1, encontrar a natureza jurídica do processo. Isso se explica pelo fato de que, até com vistas à formulação de um conceito adequado de processo, é necessário que o doutrinador tenha prévia compreensão da seara em que se situa o instituto e como ele se situa.
Os primeiros estudos a esse respeito e que se centravam numa vertente histórica, buscando compreender o processo civil romano para daí extrair um conceito que fosse fiel às suas origens, intentavam compreender o processo como sendo um contrato ou como um quase-contrato, tendo como premissa que, no processo (como já visto alhures), firma-se a litiscontestatio por meio da qual as partes se comprometiam a aceitar a sentença que viesse a ser proferida pelo juiz privado.
É certo, primeiro, que a litiscontestatio não constituía um contrato nem um quase-contrato dado que às partes não era dado furtar-se a firmá-la. Eram compelidas a fazê-lo em obediência ao poder que detinha o magistrado perante o qual se encontravam.
Frustrada essa tentativa, buscou-se considerar o processo como uma instituição, como uma situação jurídica, como uma relação jurídica (BÜLOW), como uma entidade jurídica complexa e, mais recentemente, como o procedimento em contraditório (FAZZALARI).
Algumas dessas tentativas são francamente frustradas, como, por exemplo, tentar definir o processo como instituição, quando por outro motivo não seja, pelo fato de que o termo instituição é essencialmente plurívoco (há mesmo quem haja encontrado mais de 50 diferentes acepções do que seja instituição, sem contar o institucionalismo de Maurice HAURIOU e de SANTI-ROMANO). Assim, dizer que o processo é uma instituição é dizer muito pouco em termos de busca pela identificação de sua natureza jurídica.
Com o trabalho de OSKAR BÜLOW, procurou-se identificar o processo como uma relação jurídica de natureza pública (cuja definição mais singela é: um vínculo intersubjetivo qualificado pelo Direito), com seus pressupostos próprios, distintos dos que ornam a relação jurídica de direito material que lhe serve de conteúdo. Essa vertente, que ganhou foros de certeza científica, possui alguns desdobramentos que devem ser acentuados, dado que diferentes visões sobre o processo o admitem como uma relação jurídica: (i) o processo é uma relação jurídica linear, que se desenvolve entre autor e réu; (ii) o processo é uma relação jurídica angular, que se desenvolve entre autor-juiz e juiz-réu; (iii) o processo é uma relação jurídica triangular, que se desenvolve entre autor-juiz, juiz-réu, autor-réu.
A teoria do processo como situação jurídica, devida ao gênio de JAMES GOLDSCHMIDT, nega que o processo seja uma relação jurídica. Diz ele que o processo, diferentemente do direito material, pode ser comparado a uma situação de guerra, onde predomina um estado de incerteza, de insegurança, quanto aos direitos e obrigações daqueles que se encontram em conflito, até porque ninguém poderá prever o conteúdo da sentença. O processo seria assim caracterizado por um sistema2 de possibilidades e de ônus. Sem necessidade de avançar na crítica, apesar de registros elogiosos sobre o fato de que a categoria ônus processual muito deve à teoria de GOLDSCHMIDT, é inegável que esse doutrinador confunde o direito material com o direito processual. Deveras, a incerteza que se estabelece é sobre o objeto do processo, sobre o direito material que está em discussão, e não sobre o processo propriamente dito.
A teoria do processo como uma entidade jurídica complexa talvez encontre melhor explicitação na dicção de GIOVANNI CONSO3, para quem o processo se materializa através de um procedimento, cuja estrutura revela o encadeamento de atos, cada qual deles guardando sua particular conceituação e função, todos, entretanto, vinculados por um nexo de antecedente e consequente, que os articula finalisticamente, tendo-se em vista o resultado final típico perseguido - a prestação jurisdicional. Uma fattispecie complexa de formação sucessiva, do tipo procedimento.
ELIO FAZZALARI procurou dar nova feição aos estudos sobre a natureza jurídica do processo, caracterizando-o como o procedimento em contraditório e afastando as premissas até então fixadas. Parece, entretanto, que os estudos que realizou não o conduziram ao pretendido afastamento, na medida em que se valeu de conceitos (faculdade, poder, direito subjetivo) que o aproximam invariavelmente do conceito de relação jurídica. Com efeito, direito subjetivo é posição de vantagem em face de outrem com quem se está em relação jurídica. Esses conceitos são indissociáveis.
Demais disso, o acrescentamento do contraditório como sua marca identificadora do processo levaria a conclusões inaceitáveis, como, por exemplo, somente haveria processo em situações contenciosas, descartada, portanto, e indevidamente, a generalidade das hipóteses de jurisdição voluntária, os processos de inventário e partilha em que houvesse interesses de menores e incapazes, os processos necessários em que não houvesse controvérsia, etc.
Temos, para nós, que o processo judicial - tomando emprestados alguns elementos de GIOVANI CONSO, já antes referido - pode ser caracterizado não como uma relação jurídica, mas como um conjunto de relações jurídicas que se ajustam e se concretizam por meio do procedimento (não necessariamente em contraditório), cuja estrutura revela o encadeamento de atos, cada qual deles guardando sua particular conceituação e função, todos, entretanto, vinculados por um nexo de antecedente e consequente, que os articula por meio de uma unidade de escopo que a prestação da atividade jurisdicional.
Convém ir adiante. Embora não nos alinhemos entre os fanáticos pelas doutrinas neoconstitucionalistas, pós-positivistas e quejandas, é induvidoso que a matriz do processo civil brasileiro, do devido processo legal, possui estatura constitucional, o que nos impõe o dever de examinar os princípios constitucionais e infraconstitucionais que mais de perto nos dizem respeito e que regram a atividade do legislador e do aplicador das regras processuais, tais assim, o princípio do devido processo legal, aí compreendido o princípio do juiz natural, o direito ao contraditório efetivo e à ampla defesa, o princípio da fundamentação das decisões judiciais, do duplo grau de jurisdição, da proibição da utilização da prova ilícita. Não é possível, neste espaço, e de uma só vez, examinar todos esses princípios com a necessária verticalidade. Faremos algumas escolhas e, em outro momento, completaremos a investigação.
É certo que o Código de processo de 2015 trouxe, logo no seu pórtico (Livro I, Título Único, Capítulo I, das Normas Fundamentais do Processo Civil), um conjunto de preceitos de natureza principiológica, alguns de estatura constitucional, outros de natureza infraconstitucional, que servem para iluminar a compreensão de todo o processo civil brasileiro. Claro que se imbricam, aqui, princípios que são pertinentes ao processo com aqueles que dizem mais de perto com a jurisdição, até porque se trata de dois institutos xifópagos, que se superpõem como se fossem as escamas de um peixe.
Logo no art. 2º. O legislador processual reafirmou o princípio da inércia da jurisdição, consagração do velho prolóquio ne procedat iudex ex officio, princípio esse que impõe um movimento inicial de parte daquele que pretende a prestação jurisdicional, exatamente por isso denominado movimento heterodinâmico (id est, efetuado por quem não é parte do poder judiciário, capaz de pô-lo em ação). Esse princípio quer significar que a jurisdição somente se movimenta (impulso inicial) se houver provocação das partes e vem consagrada na máxima do nemo judex sine actore. É preciso que haja o aviamento de uma ação para que o juiz preste a jurisdição.
Merece nota, nesse passo, o princípio da inafastabilidade da jurisdição, que, no caso brasileiro, decorre de expressa dicção constitucional, encartada no art. 5o, XXXV, da Carta Política, que soa, in verbis: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". O código de 2015 reproduziu esse comando, quase que ipsis verbis, no seu Livro inicial, Capítulo I, art. 3º, com pequena alteração: "Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito." Desnecessário dizer, para nós, que o princípio da inafastabilidade tem como destinatário o legislador. Sem embargo disso, em alguns manuais de Teoria Geral do Processo, esse princípio vem confundido com outro princípio, o da indeclinabilidade, que tem como destinatário o magistrado, impedindo que ele se furte ao dever de julgar (o que era possível no Direito Romano do período das ações da lei e período formulário, em que o juiz, por ser um cidadão comum, um particular, poderia pronunciar o famoso non liquet e recusar-se a proferir sentença). Mesmo que entenda haver lacunas no ordenamento jurídico, o magistrado deve julgar, valendo-se de formas de integração/interpretação, como os costumes, aplicação de princípios gerais e a analogia.
Também merece referência o princípio do Juiz natural, que tem pertinência com o fato de que todo e qualquer cidadão tem direito a um juízo imparcial, que seja pré-existente à controvérsia a ser examinada. Dizendo de outra forma, não se pode criar um juiz ou tribunal para julgar determinada causa. O tribunal deve pré-existir ao caso a ser julgado. Proíbe-se, assim, a criação de tribunais ex post facto, que são os chamados tribunais de exceção ou juízos de exceção de que, vez por outra, a História da notícia.
A Constituição da República, copiando o que já era regra no pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, dispôs sobre a necessidade de que a atividade jurisdicional seja prestada em prazo razoável, respeitando, assim, a velha advertência de RUI BARBOSA, Lançada na Oração aos Moços, no sentido de que justiça tardia não é justiça, senão que injustiça qualificada e manifesta. A disposição constitucional, erigida à condição de direito fundamental lançado no catálogo do art. 5º, foi trazida para o seio do código 2015, já no art. 4º, com esta dicção: As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral de mérito, incluída a atividade satisfativa.
É claro que a simples inserção desse comando, seja na Constituição, seja no Código de Processo Civil, não terá o condão de eliminar todos os padecimentos da cidadania em relação ao tempo médio de entrega da prestação jurisdicional que é bastante grande. As causas dessa ineficiência são de natureza vária e não podem, nem devem ser levadas à conta exclusivamente do Poder Judiciário que, se tem sua parcela de culpa, não é o grande vilão da história.
Outro aspecto a ser considerado em qualquer estudo teórico sobre o processo é, como apontado nos manuais da disciplina, a categoria pressupostos processuais, que é devida aos estudos de OSKAR VON BÜLOW, o qual, justamente para extremar a ideia de processo da ideia de relação jurídica de direito material, buscou encontrar os elementos que lhe fossem próprios. Vale aqui a ressalva doutrinária no sentido de que, ao estudar os pressupostos processuais tendo como base o ordenamento jurídico brasileiro, é necessário ter certas cautelas dadas as escolhas "científicas" prevalecentes em nosso País. A rigor, para os estudiosos que trabalham com a teoria dos três planos (da existência, da validade e da eficácia), pressupostos seriam somente os pertinentes ao plano da existência, seguindo a esteira do pensamento de Pontes de Miranda. Para o plano da validade, cuidar-se-ia de requisitos (ou de elementos, como, na doutrina portuguesa, preconiza MARCELO REBELO DE SOUZA no seu primoroso O Valor Jurídico do Acto Inconstitucional).
No direito processual brasileiro, entretanto, pressupostos e requisitos estão encambulhados. Nada obsta, entretanto, que, em sede doutrinária, a distinção seja feita, ainda que em efetiva correspondência com o que está contido na legislação de regência.
A doutrina costuma dividir os pressupostos em (i) pressupostos subjetivos; (ii) objetivos; (iii) litisingresso impedientes.
Os primeiros pressupostos processuais subjetivos podem ser relativos (i) ao juiz (dotado de jurisdição, que é um pressuposto de existência), que tem de ser competente, não impedido e não suspeito (que são pressupostos de validade) e (ii) às partes que têm de ter capacidade de ser parte, pressuposto de existência), capacidade de estar em juízo e capacidade postulatória (que são pressupostos de validade)4.
Os pressupostos objetivos indicados pela doutrina são a existência de uma demanda ou de um pedido (requisito de existência). Indica-se, também, a existência de citação, como pressuposto de existência e que ela seja válida, como requisito de validade do processo. Nunca acreditamos nem numa coisa nem em outra (com muito mais razão, agora, com a regência do novo Código). Citação não é pressuposto processual, haja vista que pode existir processo, com sentença de mérito transitada em julgado, sem que o réu, beneficiário da coisa julgada, jamais tenha sido citado para integrar a relação processual.
Com relação aos pressupostos litisingresso impedientes (expressão difundida pelo professor CELSO NEVES da Universidade de São Paulo), são aquelas situações externas ao processo que não podem existir a fim de que o processo possa desenvolver-se validamente. E se existirem, o destino do processo será a morte prematura.
São a perempção, a litispendência, a coisa julgada e a convenção de arbitragem, que vêm apontadas no art. 337 do novo Código de Processo Civil e que, se presentes, devem ser alegadas mesmo antes de iniciada a discussão sobre o mérito da causa.
Essa parte, pertinente aos pressupostos, que foi aqui apenas enunciada, será desenvolvida no próximo texto.
Até lá!
_________
1 Cf. La teoria de las excepciones procesales y los presupuestos procesales. Buenos Aires: Europa-America, 1964.
2 Derecho Procesal Civl, Trad. Leonardo Prieto Castro. Barcelona: 1956, p. 8.
3 I.fatti giuridici processuali penali, Milão,Giurffrè,1955, p. 115 e ss
4 Teresa Wambier sustenta que capacidade postulatória é pressuposto de existência do processo.