A lei 14.297/22 e a cobertura acidentária dos entregadores mediante aplicativo - O retorno à Teoria do Risco Profissional
segunda-feira, 10 de janeiro de 2022
Atualizado às 08:32
Nas discussões previdenciárias recentes, não é incomum o sentimento de retrocesso e mesmo insatisfação com o aparato protetivo vigente. É sabido que o momento dramático de pandemia com restrições financeiras limita a atuação estatal, mas, por outro lado, é problemática a adoção de velhas soluções para problemas atuais.
A esquecida evolução da proteção acidentária no Brasil parece ter sido a vítima da vez. Para a época, o decreto 3.724/1919 representou importante evolução na cobertura acidentária de trabalhadores, haja vista estes sofrerem com os encargos de prova para fins de responsabilização de empregadores em acidentes do trabalho. O referido ato, afirmava que o acidente do trabalho "quando occorrido pelo fato do trabalho ou durante este, obriga o patrão a pagar uma indenização ao operário ou a sua família, exceptuados apenas os casos de força maior ou dolo da própria vítima ou de estranhos" (art. 2º). A teoria do "risco profissional" surge daí, na qual a responsabilidade do empregador decorre, objetivamente, da sua atividade profissional, com os riscos inerentes.
A medida foi relevante para a época, mas já na realidade do século passado, insuficiente. Em 1967, a cobertura acidentária foi incorporada ao aparato estatal de proteção social, tendo em vista as deficiências de cobertura de seguradoras privadas e eventuais inadimplementos contratuais dos empregadores. Adotou-se a teoria do "risco social" ao invés da teoria do "risco profissional". O infortúnio do trabalhador, em contexto de solidariedade protetiva, deveria possuir amparo do sistema como um todo.
Paulatinamente, a regulamentação legal da infortunística laboral foi agregada às normas previdenciárias gerais, até uma equiparação quase completa pela lei 9.032/95. Afinal, do ponto de vista protetivo, pouco importa se o evento determinante do benefício foi derivado do trabalho ou não. Não existe um "sobrevalor" na incapacidade laboral. Este aspecto, inclusive, representa um dos retrocessos da EC 103/19, ao reinserir tratamento diverso em prestações acidentárias.
Em retorno normativo de mais de um século, a lei 14.297/22 ressurge com a teoria do "risco profissional", impondo a empresas privadas a contratação de seguros contra acidentes de trabalho, como se nota: "A empresa de aplicativo de entrega deve contratar seguro contra acidentes, sem franquia, em benefício do entregador nela cadastrado, exclusivamente para acidentes ocorridos durante o período de retirada e entrega de produtos e serviços, devendo cobrir, obrigatoriamente, acidentes pessoais, invalidez permanente ou temporária e morte" (art. 3º).
A par da evidente omissão quanto a outras categorias vulneráveis, a norma referida traz forte lembrança do regramento de 1919, atribuindo cobertura autônoma e privada a este segmento de trabalhadores. Difícil não identificar a medida como retrocesso previdenciário, haja vista a existência de modelo protetivo nacional capaz de amparar os referidos trabalhadores. Não se ignora, na atualidade, as possíveis vantagens de atuação concorrente do setor privado na cobertura acidentária, tema que já tratei em outra coluna, todavia, a questão aqui é outra.
O que se observa, como discorri no passado, é a limitada capacidade de cobertura em modelos previdenciários de seguro social, como o nacional, especialmente dentro das novas formas de trabalho, como os entregadores via aplicativos. A norma legal identifica um problema real - a cobertura acidentária dos referidos trabalhadores - mas adota solução errada. Ao invés de avançarmos a um modelo universal de cobertura, retrocedemos a sistemática de proteção acidentária que se mostrou ineficiente ainda no século passado.
Enquanto buscamos soluções paliativas, os grandes problemas do sistema previdenciário nacional vão se avolumando. Por enquanto, a lei 14.297/22 traz solução de momento em contexto de pandemia e acidentes elevados no setor. Mas no futuro, com o desejo de aposentadorias, o clamor será maior e, provavelmente, o modelo protetivo será mudado. Por bem ou por mal.