Porandubas nº 868
quinta-feira, 21 de novembro de 2024
Atualizado em 19 de novembro de 2024 11:45
A prisão... suavemente...
José Maria Alkmin, o matreiro mineiro, foi advogado de um crime bárbaro. No júri, conseguiu oito anos para o réu. Recorreu. Novo júri, 30 anos. O réu ficou desesperado:
- A culpa foi do senhor, dr. Alkmin. Eu pedi para não recorrer. Agora vou passar 30 anos na cadeia.
- Calma, meu filho, não é bem assim. Nada é como a gente pensa da primeira vez. Primeiro, não são 30, são 15. Se você se comportar bem, cumpre só 15. Depois, esses 15 são feitos de dias e noites. Quando a gente está dormindo tanto faz estar solto como preso. Então, não são 15 anos, são 7 e meio. E, por último, meu filho, você não vai cumprir esses 7 anos e meio de uma vez só. Vai ser dia a dia, dia a dia. Suavemente.
(Sebastião Nery conta a historinha).
- Parte I - O fio da memória
Bob Kennedy
A nomeação de Robert Kennedy Jr. para comandar o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA traz à luz a imagem de um político conservador, conhecido por seu ceticismo em relação às vacinas e de ideias pouco ortodoxas sobre saúde pública. A nomeação, para este escriba, foi um choque, eis que conheci seu pai, Bob Kennedy, o braço direito do irmão, John Kennedy, presidente dos EUA, por ocasião de sua visita a Pernambuco.
Um discurso flamejante
Robert Francis Kennedy, apelidado de Bob e também RFK, foi procurador-Geral dos Estados Unidos de 1961 até 1964. Um dos primeiros a combater a Máfia, e senador por Nova Iorque de 1965 até seu assassinato em junho de 1968. Ele foi um dos dois irmãos mais novos do irmão presidente dos Estados Unidos, John Kennedy. Pois bem, repórter do Jornal do Brasil, acompanhei a visita de Bob a Pernambuco. Puxando o fio da memória e usando também as lembranças de Vandeck Santiago, em um denso artigo, lembro o flamejante discurso de um senador americano, orador destemido, defronte ao prédio da Sudene, em inglês, para uma multidão que não entendeu uma palavra do que era dito. Era Bob Kennedy desafiando o regime militar.
Os trabalhadores rurais
Vandeck conta: "Não há dúvidas que foi a cena mais inusitada ocorrida no Recife nos anos 1960. Do alto da capota de um caminhão, em frente ao edifício JK, no Centro da cidade, um homem alto e claro fazia um discurso inflamado a favor dos pobres e dos trabalhadores rurais. O momento não era conveniente para comícios: 23 de novembro de 1965, o Brasil em plena ditadura militar. O idioma utilizado, este é que era inconveniente mesmo: puro inglês do norte dos Estados Unidos, onde o orador nascera... bestializado, o povo embaixo procurava entender na tradução de João Gonçalves, então superintendente da Sudene, qual o verdadeiro teor do palavreado daquele estranho orador...".
Aliança para o progresso
No pronunciamento, Kennedy dizia oferecer uma "revolução pacífica" para se contrapor ao que qualificava como agressão imperialista da União Soviética e de Cuba à região. Kennedy assumia a "Teoria dos Estágios" do economista W. W. Rostow, segundo a qual o desejo por mudanças socioeconômicas, se ignorado, poderia pôr a região na órbita da influência soviética. Era a Aliança para o Progresso. Nos 10 anos seguintes, o programa destinaria US$ 20 bilhões aos países da América Latina, fora a ajuda tecnológica. Pela primeira vez, os EUA se comprometiam com um programa de ajuda financeira de longo prazo aos países latino-americanos...
A Usaid
O Brasil era um alvo claro - em novembro, Kennedy criaria a United States Agency for International Development (Usaid), braço operacional do programa -, mas via o programa com ressalvas. Aceitaria a ajuda externa, desde que ela não condicionasse o país a abrir mão de sua autonomia externa ou interna. Na Carta de Punta del Este ficaria acordado que a ajuda do programa norte-americano seria acompanhada do compromisso, pelos países signatários, de formular planos de desenvolvimento nacionais, implementar projetos conforme esses planos e adequar seus esforços de desenvolvimento à estrutura geral delineada pela ajuda norte-americana. Em 1962, convidados a emitir um relatório sobre a "Aliança para o Progresso", os ex-presidentes Juscelino Kubitschek, do Brasil, e Alberto Lleras Camargos, da Colômbia, concluiriam que o programa não produzia os efeitos esperados, sendo necessárias várias reformulações. Mesmo antes do golpe de 1964, a Usaid já estaria canalizando seus recursos exclusivamente para os Estados brasileiros governados por políticos ideologicamente afinados com os Estados Unidos... Com o assassinato de Kennedy, no final de 1963, ocorreria uma inflexão no programa. Ainda assim, a "Aliança para o Progresso" beneficiaria os governos militares até 1967. Em 1969, com a posse do republicano Richard Nixon, ela seria encerrada.
Bob na Zona da Mata
Volto ao Bob Kennedy. Em 1965, John Kennedy estava morto, assassinado que fora em 23 de novembro de 1963. João Goulart, exilado no Uruguai, foi deposto em 31 de março de 1964. O sinal de que os tempos eram outros viu-se logo na chegada de Bob ao Recife. A polícia prendeu estudantes universitários que distribuíam folhetos. No dia seguinte, Bob viajou à Zona da Mata. Da janela da Cooperativa Mista de Trabalhadores Rurais de Carpina fez discurso defendendo "a urgente organização dos trabalhadores em sindicatos e associações" para "tornar possível a reforma agrária". Eu acompanhava a comitiva.
Revolução segundo Kennedy
Caminhou pelos canaviais ao lado do padre Paulo Crespo, cuja atividade na área rural eu também cobria para a Folha de São Paulo e para o Correio da Manhã, nas sucursais de Recife. Conversou com camponeses, perguntando se eles recebiam o salário mínimo... (em uma das fotos publicadas na época pelos jornais recifenses, Jornal do Commercio e Diário de Pernambuco, este escriba aparece em primeiro plano, enquanto o senador Bob conversava com trabalhadores); em Recife, fez palestra para estudantes da Faculdade de Filosofia... O sociólogo Gilberto Freyre fez o discurso de abertura. Lembrou o passado rebelde e nativista de Pernambuco e disse que o Estado apoiava a revolução: "Revolução no sentido em que John Kennedy entendia revolução".
O fio da memória
Essa moldura aparece, agora, nítida, puxada pelo fio da memória, a partir da notícia da nomeação do filho do senador para o "ministério" da saúde do governo Donald Trump. Confesso: fiquei chocado. O pai tinha uma cabeça aberta, arejada. Puxo mais o rolo da memória, para lembrar o banho noturno que a mulher de Bob Kennedy tomou em Boa Viagem. O casal se hospedara em um hotel da orla. E lá pelas 9 ou 10 horas da noite, a região estava cercada por policiais. Um grande holofote iluminava as águas onde a senhora Ethel Kennedy dava seu mergulho. Lembro de tudo isso e ponderando: o que deu na cuca do filho para ser tão anticiência?
O queijo amarelo e fedorento
Uma coisa puxa a outra. Não foi em Recife, quando comecei meu labor jornalístico, mas em Mossoró, Rio Grande do Norte, onde ouvi falar, pela primeira vez, na Aliança para o Progresso. Seminarista, estudava no Seminário Santa Terezinha, onde padres holandeses eram os administradores e professores do educandário. Pois bem, certo dia apareceu nas mesas do refeitório, na hora do café da manhã, pedaços graúdos de um queijo amarelo-fogo, com buracos esverdeados de mofo. Problema para degustar: o fedor do queijo. Não conseguíamos engolir aquela massa fedorenta. De onde teria vindo aquilo? Descobrimos. Era doação do programa Aliança para o Progresso. Um queijo, que se contava no seminário, era um produto para aliviar a fome das regiões carentes do planeta. Não havia jeito. Tínhamos de sufocá-lo no pão e enfiá-lo na goela, junto com o intragável chá quente.
- Parte II
Raspando o tacho
- Donald Trump anuncia que irá decretar o estado de emergência pública, algo como calamidade, o que lhe conferirá o direito de fazer uma deportação em massa. O caos abre seus sinais.
- O passeio noturno do presidente francês, Emanuel Macron, e a esposa Brigitte na orla de Copacabana, ambos de trajes formais, como estivessem chegando de um evento, puxa o fio da memória para o banho da senhora Ethel Kennedy, em 1965, na orla de Boa Viagem, Recife.
- Donald Trump, ao nomear seu "ministério", de forma açodada, dá impressão de que não quer perder um minuto de seu tempo.
- Joe Biden, o presidente americano em vias de deixar o cargo, viu a devastação da floresta em um sobrevoo de helicóptero. Seu acompanhante, o cientista Carlos Nobre, lhe explicou porquê as águas do rio Negro são negras. A essa pergunta de Biden, Nobre deve ter respondido com a fala da ciência. Mas ele não deu a resposta para os leitores... rs.
- Janja recebeu o leve puxão de orelha do marido, que lembrou: "não precisamos xingar ninguém". De leve.