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Porandubas nº 706

quarta-feira, 3 de março de 2021

Atualizado às 07:25

Abro a coluna com uma historinha do Ceará.

Quatro chinelas

O médico Francisco Ibiapina, do Jaguaribe/CE, tratava com muito zelo de um cliente recém-casado e acometido de forte gripe. O clínico fazia prescrições sobre o regime alimentar e sugeria cautelas para evitar recaída. A um lado, a jovem esposa presenciava a conversa, silenciosa e atenta aos conselhos do médico. Fixando nela os olhos amorosos e não se conformando com a desarrumação de sua lua de mel, o doente cochichou um pedido com voz rouquenha:

- Seu doutô: fazerá mal quatro chinela debaixo da minha rede?

(Causo contado pelo historiador Leonardo Mota)

Duas questões centrais

O escritor israelense Yuval Noah Harari (Homo Deus, Homo Sapiens, 21 Lições para o Século XXI) levanta duas questões essenciais que certamente balizarão o nosso futuro: a aparente dicotomia entre a crescente autonomia dos cidadãos e a também tendência em expansão de vigilância totalitária por parte do Estado; e o isolacionismo de viés nacionalista e a globalização solidária. Quem vai predominar nesse conflito e que desenho podemos pintar do amanhã que nos espera? Esse é o dilema que merece nossa reflexão.

A identidade

Na expressão recorrente de nossas análises, temos discorrido sobre a mudança de parâmetros na escala de costumes e valores humanos. O homem-massa, como temos destacado, quer resgatar seu empoderamento, seus potenciais, capacidades, enfim, sua identidade. E isso ocorre nesse oceano turbulento em que navega a Humanidade. Vivemos o maior conjunto de crises da vida contemporânea. A identidade tem sido resgatada pela conquista, mesmo lenta, de direitos, defesa do habitat humano, defesa da privacidade, expansão das condições que formam o Produto Nacional Bruto da Felicidade. Esse grau civilizatório tem balizado as aspirações do conglomerado humano em todos os pedaços do planeta, incluindo territórios marcados pela barbárie.

Os olhos do Estado

Ao mesmo tempo em que se desenvolve tal fenômeno, os olhos do Estado sobre os cidadãos tornam-se mais perscrutadores, querendo saber o que fazem, para onde vão, como estão seu pulso e seu coração, o que comem, quando comem, que meio de transporte usam, com quem se relacionam, quantas vezes vão ao banheiro, qual a cor dos excrementos (tudo importa), para onde olham nas gôndolas de supermercados, que produtos guardam na geladeira, o que difere um queijo de outro, quantas garfadas de alimentos por dia, enfim, tudo, o conjunto de ações do cotidiano das pessoas.

Finalidades

Veja-se a dimensão do conflito: de um lado, os cidadãos na luta por seu pleno empoderamento; de outro, o Estado na luta por pleno domínio de seus entes. O argumento do Estado é denso e vasto: luta contra as mazelas - males, epidemias, pandemias -; realocação de bens e recursos para melhorar o nível de vida das populações; descobertas científicas para a cura de doenças graves; uso de algoritmos extraídos da "grande visão" do Big Brother para definir rumos, novos caminhos, rotas e veredas a serem seguidas ou evitadas. Sob a hipótese de melhorar a vida no planeta, esconde-se o total domínio da vida humana. Daí para o Estado Totalitário, um passo.

O Estado totalitário

Sempre visto como ameaça que paira sobre a Humanidade, chega mais perto com o avanço do sistema tecnológico que se instala na vida cotidiana. A questão é saber se o ser humano, mesmo com a identidade plenamente resgatada, conseguirá evitar os olhos do Grande Irmão e preservar sua privacidade. Lembrando a pergunta de Bobbio: "quis custodiet custodes?" ("quem vigia o vigilante"?) A resposta, pois, pressupõe um controlador superior. O filósofo indaga: Deus, o herói fundador de Estados, o mais forte, o partido revolucionário que conquistou o poder, o povo entendido como a coletividade que se exprime por meio do voto? Teríamos um vidente visível ou invisível?

Poderes invisíveis

Outra escala de problemas é operada nas entranhas do Estado, quando políticos, burocratas e os círculos de negócios, juntos ou separados, exercem um "poder invisível" para defender interesses seus ou de outros, apresentando-se, assim, com força que age contra o "poder visível", este simbolizado pelas instituições de Estado, os poderes constitucionais. Há, ainda, os conglomerados organizados por ondas mafiosas, criminosos de todos os tipos, cartéis de armas e de drogas, que também exercem "poderes invisíveis". O Estado, impregnado desses "exércitos", que lutam nas malhas escondidas das máquinas administrativas, consegue vencer a guerra contra os feitos do mal?

A globalização

Para tornar mais nebulosa a paisagem, eis que a tão aclamada globalização solidária, que poderia ser o espaço de acolhimento ao sonho de ajuda recíproca entre as Nações, de interlocução amigável, parcerias comuns, mãos juntas para fazer avançar a ciência, está ameaçada. E a ameaça começou a surgir antes mesmo da pandemia da Covid-19, quando o isolamento dos países entrou na agenda de grupos populacionais e de políticos populistas. Estamos voltando à era do "quanto mais só, melhor", cada qual com sua realidade. Trata-se, na verdade, de um gesto egoísta, relacionado ao fechamento de fronteiras, um muro que se constrói a cada dia para evitar a imigração de povos em busca de sobrevivência.

Como conjugar?

Como conjugar as necessidades e demandas urgentes de populações em busca de um novo habitat com o ideário de contingentes que se enrolam nas bandeiras do nacionalismo, defesa de empregos exclusivos para os nativos, redomas construídas para abrigar apenas os originários de cada Nação? Um mundo menos solidário causará que tipos de impacto na vida cotidiana? Conservação das culturas ou expansão do egocentrismo, de conflitos entre países, guerras étnicas e raciais? Para onde caminhará a solidariedade? O dilema está à vista: se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come. Meditemos.

O Brasil solidário

Puxando o fio da meada para as nossas plagas, de pronto aparecem nesgas no horizonte. No lado da sociedade, vê-se alargar o espaço solidário, as mãos dadas de tantos quantos, em desespero, clamam aos céus por mais empregos, mais saúde, domínio da pandemia, remédios, mais vacinas. Do lado do Estado, observa-se uma teia de fatores que contribuem para aumentar a descrença na política: leniência dos governantes, desprezo pela ciência, descaso para com a res publica, enfim, des...des..des..des - prefixo para designar desistir, desprezar, destruir etc. Temos dois Brasis: um, solidário, outro, desordeiro. O primeiro agrega os espíritos conviviais; já o segundo agrega o arbítrio, o descumprimento das normas, a permissividade, o ódio, governantes sem escrúpulo.

Notinhas

Preço dos combustíveis

A Petrobras vai entrar na política de ajustes determinada pelo presidente. A conferir.

Pazuello

O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, tenta se agarrar nos números prometidos de vacinas que virão até meados de julho. 80 milhões até junho, é a promessa. Secretários de Saúde dos Estados perderam o prumo.

Luiz Carlos Trabuco Cappi - Em O Estado de S.Paulo, segunda-feira

"As condições objetivas existem. O Brasil tem dois centros de excelência na produção de vacinas - Fiocruz, no Rio de Janeiro, e Butantan, em São Paulo. No segundo semestre, os dois institutos devem inaugurar novas fábricas, capazes de criar também o ingrediente farmacêutico ativo (IFA), necessário para a fabricação das vacinas da Oxford-AstraZeneca e da chinesa Sinovac. A vacina resolve a crise".

Faria

O ministro Fábio Faria, das Comunicações, tem se revelado um perfil eficiente. Seu gol de placa será a implantação do 5G. Fez uma incursão internacional para medir parâmetros.

Pandemia

Ao que parece, os descrentes começam a acreditar nos efeitos mortais da Covid-19. Jovens morrem mais que no primeiro ciclo e abrem pânico.

Frente ampla

Na paisagem das parcerias, Ciro Gomes avança. Disse que seu projeto é tirar o PT do segundo turno de 2022. A declaração passou a impactar setores antes arredios a seu nome.

Variantes

As variantes do novo coronavírus se espalham. A boa notícia é que vacinas mais avançadas estão em fase final de teste.

Vacina da Johnson

Mais uma boa notícia: a vacina em dose única da Janssen-Cilag, do grupo Johnson & Johnson, passa a ser considerada a mais viável para a imunização em massa do planeta. O Brasil não a comprou até agora. Já o comitê da FDA recomendou que EUA autorizem. O teste clínico fase 3 - do qual o Brasil participou - mostra 66% de eficácia.

Garcia

Rodrigo Garcia, vice-governador de SP, do DEM, está em dúvida: sair para entrar no PSDB ou permanecer onde está? E se João Doria não viabilizar a candidatura dele à presidência? Rodrigo começa a procurar PMDB e outros partidos.

Mandetta

O ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, começa a se movimentar sob o olhar de 2022. O DEM tem chances de ter candidato? Essa é a questão.

Bolsonaro

Não fecha a expressão. Continua dando corda ao relógio dos simpatizantes. Não percebe que esse tipo de atitude gera bumerangue. Volta-se contra ele.

"Mijar sangue"

'A OAS tem que mijar sangue', diz procurador em diálogos da Lava Jato. Novas mensagens enviadas pela defesa de Lula ao STF mostram Lava Jato discutindo como 'bater, bater e bater' em investigados.

Imposto sobre bancos

Governo deve aumentar impostos sobre bancos para compensar desoneração do diesel e gás de cozinha. De acordo com fonte da equipe econômica, a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido deve subir para zerar tributação dos combustíveis, medida que tem custo total de R$ 3,6 bi.

Conflito federativo

Acirra-se a divisão no campo da gestão da pandemia entre governadores e presidente da República. Governadores pedem mais ação, mais firmeza, mais vacinas. Presidente anima suas bases. Pano de fundo: conflito federativo.

Lockdown

Pedido geral de especialistas: lockdown entre 18 horas e 5 da manhã durante 16 dias. Março é mês do pico agudo.

Fecho a coluna com um "causo" paulista.

Eu e Deus

O "causo" ocorreu em Conchas/SP. Era a audiência de um processo - requerimento do Benefício Assistencial ao Idoso para um senhor alto, velho, magro, negro, humilde e muito simpático, tipo folclórico da cidade. Antes da audiência, o advogado lembrou ao seu cliente para afirmar perante o juiz morar sozinho e não ter renda para manter a subsistência. Nisso residiria o sucesso da causa. Na audiência, veio a pergunta:

- O senhor mora sozinho?

- Não! respondeu ele (o advogado sentiu que a coisa ia degringolar).

- Hum, não? Então, com quem o senhor mora?

- Eu e Deus, respondeu o matreiro velhinho.

O advogado tomou um baita susto. Mas a causa foi ganha. O juiz considerou procedente a ação.

(Historinha enviada por Éder Caram e contada pelo pai dele).