Porandubas nº 608
quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019
Atualizado em 12 de fevereiro de 2019 15:24
Abro a coluna com uma historinha das Alagoas.
Jesus Cristo
Era aniversário de um bravo coronel de polícia de Palmeira dos Índios. Contrataram dois cantores para animar a festa. Os homens chegaram, violas em punho:
- Coronel, vamos cantar a sua vida.
- Nada disso, cantador de verdade não prepara, improvisa. Vou dar um mote, vocês cantam. E nada de minha vida. Quem vai ser cantado, hoje, é Jesus Cristo. E o mote é: - "Jesus Cristo veio ao mundo nos livrar das injustiças".
Um cantador olhou para o outro, cada qual mais branco. O coronel estava nervoso. O jeito era começar. Um tirou:
- Jesus Cristo veio ao mundo nos livrá das injustiça.
O outro respondeu:
- Quando ele tinha 15 anos rezou a primeira missa.
O primeiro engasgou. E foi em frente:
- Quando completou 18, sentou praça na poliça.
O coronel não gostou. Meteu os dois no xadrez.
Um vácuo no jornalismo
A morte de Ricardo Boechat abre um imenso vácuo no jornalismo. A frase é mais uma entre as milhares que circulam por ocasião do desaparecimento de celebridades, pessoas famosas. Mas, no caso de Boechat, a verdade do argumento está no fato de que ele era exceção na galeria dos âncoras de TV e comentaristas de rádio. Desenvolveu forte identidade. Inigualável. Discorria sobre temas que dominava de forma exemplar, informava, interpretava, opinava e até fazia humor, exercendo, assim, as quatro funções básicas do jornalismo: informar, interpretar, opinar e divertir.
Qualidade
Diferenciava-se pelo estilo inconfundível. Com seu vozeirão que entrava forte nos ouvidos da audiência (grande entre taxistas), era um crítico admirado. Batia forte nos agentes de erros e ilícitos. Formava opinião. Tinha como lastro a experiência das salas de jornais, onde foi chefe de redação, como no Jornal do Brasil. Buscava sempre o furo, a notícia em primeira mão, após conhecer panos de fundo para entender melhor os fatos de alcance social e político.
Tragédias se cruzam
Quantas tragédias nesse início de ano, hein? O lindo território das Minas Gerais é o palco central dos desastres. O de Mariana, ocorrido em 5 de novembro de 2015, a maior tragédia ambiental brasileira, cruzou com a tragédia de Brumadinho, acentuando o capítulo da irresponsabilidade da gestão pública no Brasil. No Rio, o incêndio no Centro de Treinamento do Flamengo, que vitimou 10 meninos em início de carreira futebolística, se somou às mortes perpetradas por gangues em disputa pelo mercado de drogas e as causadas por temporais.
Impacto e mais impacto
Sobre nossas cabeças, ainda está acesa a memória do acidente que matou a seleção de Chapecó/SC. Mais recentemente, a morte do jogador argentino Salas, no avião que caiu no canal da Mancha, também gerou forte comoção. O medo volta a se espalhar em Minas Gerais, onde falta controle nas muitas barragens da Vale. E para aumentar a tristeza, deparamo-nos com mais uma página no livro das tragédias, essa queda do helicóptero sobre um caminhão, matando Boechat e o piloto. 2019 se abre sob uma comoção generalizada, fazendo-nos crer que o imponderável está fazendo visitas com muita frequência ao nosso território.
Moldura torta na parede
A sequência de tragédias produz um sentimento generalizado de desconforto, angústia, medo, pavor de que algo ruim circula ao nosso redor. Benza-nos, Deus. Alguns procuram nos astros respostas para os incidentes. Outros apontam para a fatalidade: "quando algo tem de acontecer, ninguém impede, é porque chegou o dia da pessoa". Entre crenças e descrenças, a vida flui, desmanchando famílias, abrindo crateras de desespero, expandindo insegurança. O fato é que 2019 está se mostrando um ano muito letal. Mais que outros? Nos nossos sistemas cognitivos, a taxa de dissonância aumenta.
Protagonistas do cenário
Trata-se de um exercício sujeito a erros esse de tentar interpretar sentimentos e expectativas de protagonistas da cena social-institucional-política do país. Mesmo assim, este consultor se aventura a realizar a tarefa focando um pequeno grupo de agentes. Comecemos por segmentos que habitam os espaços das classes médias. Quais suas expectativas? Essa é a pergunta básica. Convém, primeiro, explicar a constituição das classes médias. As classes médias formam um contingente grande e heterogêneo, reunindo setores com acesso, por meio de renda e/ou por crédito e endividamento, à oferta material e de serviços proposta pelo sistema de produção e consumo. São classes consumidoras. Na América Latina, pela primeira vez em décadas, as classes médias, hoje, superam a população pobre. Mas há diferença entre os segmentos.
Três segmentos
Os economistas, a partir de dados da OCDE e do CEPAL, apontam para a existência de três agrupamentos: uma classe média baixa, encostada à classe C, reunindo pessoas com acesso aos serviços do Estado, e com salários ainda comprimidos; uma classe média B, a intermediária, abrigando profissionais liberais, professores, grupamento formador de opinião, onde se abriga a maior tuba de ressonância do país; e a classe média mais elevada, que reúne perfis dos setores produtivos, empresários, proprietários rurais, núcleos que dispõem de mais recursos e os aplicam no sistema financeiro.
Classes médias: O que são
Entre 2001 e 2015, a parcela da população da chamada classe média consolidada, (que ganhava por dia entre 10 e 50 dólares em valor real em 2005, e em paridade do poder de compra), passou de 21% para quase 35%. Um outro segmento, designado de classe média "vulnerável" - dispondo de soma bem mais modesta entre 1 e 4 dólares/dia - passou de 34%, em 2000, para 40% em 2015. Essa população saiu da pobreza formal nos últimos 15 anos, mas ainda é constituída, em grande parte, por pessoas que passaram a ter acesso parcial e precário ao consumo. E há a classe média alta, com ganhos maiores.
O poder de irradiar
As classes médias constituem o grupamento com maior capacidade de influenciar. Sua expressão corre tanto para baixo quanto para cima. Agem como pedras jogadas no meio da lagoa: criam marolas, ondas, que correm do centro para as margens da lagoa. Seu estado é de expectativas. Seu estado de espírito contamina outros espaços da pirâmide social. São detentores de um otimismo latente. Esperam que a economia melhore e produza as garantias para seu bem-estar. Confiam no novo governo, mas desconfiam que a inovação de costumes e práticas na política ainda não chegou. Defendem um programa progressista e liberal para o Estado. Desfraldam a bandeira da privatização. O perfil ideológico comporta uma tipologia variada. Há segmentos de direita e extrema direita, que comungam com o lema: bandido bom é bandido morto. Mas há setores que se postam na extrema esquerda do arco ideológico. Vejamos alguns protagonistas.
1. Meio acadêmico
O meio acadêmico da Universidade pública forma um bloco duramente crítico ao status quo e, por extensão, ao governo Bolsonaro. A Universidade brasileira, como se sabe, foi intensamente politizada na era lulopetista. Há núcleos simpatizantes ao governo. Mas o meio acadêmico exerce crítica feroz ao escopo de direita, com um tiroteio expressivo focado no alinhamento entre o bolsonarismo e o fascismo. Os acadêmicos exercem influência, porquanto é da Universidade que se ouvem os sons mais estridentes da esquerda. Pessimistas quanto ao futuro, defendem um ideário utópico e vêem em qualquer programa do novo governo um exercício de autoritarismo. Na Universidade privada, o discurso é outro. Professores e alunos tendem a defender o ideário governista e o liberalismo.
2. Ruralistas
No contraponto à Academia, emerge a força do agronegócio. Os ruralistas, que possuem uma das maiores bancadas no Congresso Nacional, pregam o endurecimento de ações com vistas à contenção das invasões de propriedade, subsídios ao setor, reforma agrária sob controle do Estado, liberação de armas para os proprietários rurais, entre outros projetos.
3. Servidores públicos
Os servidores da Universidade pública, retratada acima, também ganharam força na era petista. Seus contingentes elegeram boa fatia de representantes. Os servidores públicos formam massa de manobra de movimentos e partidos políticos, atendendo às convocações feitas por PT, PSOL, Centrais Sindicais e organizações situadas na faixa esquerda do arco ideológico. São antigovernistas e organizam paredões de pressão contra as reformas, principalmente a reforma da Previdência e a reforma trabalhista, esta já realizada.
4. Empresariado
Os setores produtivos constituem o núcleo que expressa maior confiança no amanhã. Aplaudem a equipe econômica, creditam sucesso na implantação de programas liberais, no ideário da competitividade e eficiência dos serviços públicos. Os médios e grandes empresários constituem a vanguarda de defesa do governo. Já o pequeno empresariado queixa-se da alta carga de tributos, passando a defender política de desoneração da folha. Uma de suas bandeiras mais vistosas é a da desburocratização. Por isso, tendem a ser críticos do governismo.
5. Polícias e Forças
As polícias civil e militar e as Forças Armadas chegam ao ápice do prestígio institucional. Os quadros policiais elegeram uma grande bancada, se compararmos os resultados de outubro com os pleitos anteriores. E os militares chegam ao poder por meio do voto. Nome do votado: o general Hamilton Mourão, vice-presidente da República. Sob a teia do voto, começam a descortinar o véu do prestígio e do poder e a esmaecer a imagem sombria da ditadura. Os militares, até por isso mesmo, já aceitam entrar na modelagem da reforma da Previdência. Não querem mais exclusividade. Exercerão suas tarefas no ciclo que se abre sob um horizonte de otimismo. Serão os novos participantes de um país que redefine rumos. Uma frente de muito apoio ao governo. E até começam a vestir a roupagem de poder moderador.
6. Estudantes
O meio estudantil começa a se inserir na esfera da política. A massa que ainda atende aos apelos da UNE funciona como extensão dos braços das esquerdas, sob a égide de três partidos que exercem influência no meio estudantil: PC do B, PSOL e PT, embora este veja esmorecida sua força junto aos estudantes. No contraponto, a massa estudantil da área privada abre os olhos e começa a demonstrar interesse pela representação política. Alguns perfis, a partir de São Paulo, foram bem votados por esse segmento. Em suma, o bloco mais ativista é de esquerda; já a massa menos participativa identifica-se com o discurso da direita. A questão é: essa massa acorrerá aos apelos de movimentos de centro ou centro-direita? Ou continuarão amorfos?
7. Mulheres
A organicidade no bloco dos gêneros é intensa. As mulheres, a cada eleição, participam com mais vigor do processo eleitoral. Algumas tiveram votação impressionante, como a deputada estadual Janaina Paschoal, e as Federais Carla Zambelli e Joice Hasselmann, todas do PSL-SP. Ganharam visibilidade e prestígio ao correr da campanha de Bolsonaro. Defendem uma pauta densa na área dos costumes e da renovação política. Prometem revolucionar o Parlamento. Lembremos que as mulheres constituem a maioria do eleitorado brasileiro (52%). Trata-se de um eleitorado ainda muito dividido quanto às preferências ideológicas.
8. As regiões NE, NO e CO
Os habitantes das regiões menos desenvolvidas, que abrigam grandes parcelas sob a sombra do programa Bolsa Família, costumam ser pragmáticos. Defendem aqueles que propiciam melhorias em suas condições de vida. Tendem as ser mais conservadores e fiéis aos seus patrocinadores. Daí o prestígio que Lula ainda mantém no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. A continuidade do Bolsa Família e uma rede social mais cheia poderão expandir a força do governismo nessas regiões. No Nordeste, o apelo maior, hoje, é pelas águas transportadas do rio São Francisco. Uma observação: as classes médias com habitat nas médias e grandes cidades são críticas e, no último pleito, se somaram aos eleitores de baixa renda para destronar velhos políticos.