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Porandubas nº 538

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Atualizado às 08:09

Abro a coluna com Tancredo e seus conchavos

Conchavo

Premido por casuísmos, Tancredo Neves foi obrigado a fundir o seu PP com o MDB de Itamar. Alguns pepistas pularam do barco e protestaram alegando conchavo. Tancredo foi curto e seco: "Conchavo é a identificação de ideias divergentes formando ideias convergentes". Tinha razão. Há curvas que desembocam em retas. O país vive momentos de conchavos na esteira da profunda crise política.

Reformas semeadas

Seja qual for o desfecho da crise - a permanência ou não do presidente Michel Temer à frente do governo - cristaliza-se na sociedade a irreversibilidade das reformas fundamentais ao desenvolvimento do país. Bateu-se muito nos últimos meses em sua defesa. A reforma trabalhista chega a ser defendida quase todos os dias pelos setores produtivos e pelos grandes jornais. A reforma da Previdência, apesar da polêmica que levanta, também ganha a cada dia mais adeptos. Pode ser que não saia do tamanho com que foi inicialmente proposta. A reforma política, essa, então, virou sinônimo de "urgência" na agenda congressual. Mas divide o Parlamento. A reforma tributária é feita em doses homeopáticas. Portanto, as reformas foram bem plantadas. Só mesmo os perdedores de benefícios as repudiam.

Política, conflitos

Apenas para lembrar porque a reforma política não anda: o patrimonialismo ainda dá as cartas. Nossa cultura política é secular. Remanescem traços da herança deixada por Dom João III, entre 1534 e 1536, quando criou as 15 capitanias hereditárias e as distribuiu entre os donatários. A confusão entre público e privado vem daí. Os políticos acham que são donos do mandato e dos cargos nas estruturas públicas. Consideram-nos feudos.

Complexo de faraó

Ao lado da velha cultura patrimonialista, o Brasil também sedia o complexo de faraó. Haja olhos para contemplar a arquitetura faraônica que se espraia pelo país na forma de construções suntuosas, edifícios majestosos, obras de desenhos arrojados e massas volumosas que causam estupefação. O Brasil se habilita a ser o habitat ideal para abrigar o sono eterno dos faraós, fustigados pelo eco da turba que chega às suas tumbas. Se suas majestades só se sentem confortáveis em pharao-onis, termo do velho latim para significar "casa elevada", é isso que encontrarão no Planalto brasiliense, que pode ganhar o título de morada dos faraós no século 21. O fausto, a opulência, o resplendor, a exuberância se elevam nos espaços, sob o ditame inquestionável de que, se a obra foi construída em Brasília, não deve sofrer limites de gastos. Uma das mais resplandecentes foi a sede do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Catacumbas do desperdício

Outra faceta bem brasileira é o desperdício. Jogamos fora 50% dos alimentos produzidos (perda estimada em R$ 20 bilhões anuais, o que daria para alimentar 30 milhões de pessoas), 40% da água distribuída, 30% da energia elétrica. Os cálculos foram feitos pelo professor de Engenharia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro José Abrantes, autor do livro "Brasil, o País dos Desperdícios". Há simplesmente um PIB e meio desperdiçado, ou seja, jogam-se no lixo R$ 3,6 trilhões. Se a montanha de riquezas perdidas pudesse ser preservada, o país estaria, há tempos, no ranking mais avançado das potências.

Mídia e crise

A crise é profunda. A cada dia, novos episódios se juntam ao contencioso existente. Há, porém, muitos vieses a atrapalhar o esforço de leitura dos acontecimentos. A mídia, por exemplo, exagera nas doses informativas. Regra geral, as matérias dos grandes jornais dão o governo como acabado. Já não existe. Nomeiam ministros do governo Rodrigo Maia, fofocam sobre apreciação do presidente da Câmara sobre uns e outros nomes de sua simpatia/antipatia. Mas o fato é que o governo, mesmo no despenhadeiro, ainda dá demonstrações de força.

Denúncias seguintes

A hipótese tem sentido: o presidente Michel Temer pode vencer a luta da primeira denúncia, ganhando na CCJ e no Plenário, mas terá dificuldades extremas para enfrentar as duas outras denúncias a serem apresentadas pelo procurador Rodrigo Janot. Os parlamentares estarão no recesso em contato com suas bases. E deverão regressar ao ambiente parlamentar sob a influência dos eleitores. O processo de votação - com a identificação pessoal do deputado - é uma barreira para que este perfile ao lado do presidente da República.

A imagem do procurador

Há uma interpretação sobre o futuro de Janot, registrando-se até eventual inserção na esfera política. Ora, a imagem do procurador não é boa em estratos médios, onde se faz o acompanhamento da crise com mais poder crítico. Sua benevolência com os Batista, dando a eles o perdão por terem delatado o presidente da República, causa intensa indignação. Expande-se a convicção de que ele agiu sozinho, julgando o próprio Joesley e tirando o poder do Judiciário para julgar os cabeças de muitos crimes. Há até um dado que circula pelas redes: Joesley teria escapado de uma pena de 2.000 anos.

STF em segundo plano

O fato é que a imagem do Judiciário também saiu chamuscada do episódio da delação dos Batista. Praticamente, o STF cumpriu o papel de convalidar a decisão do procurador. Nesse momento, firulas de natureza jurídica - eventual correção mais adiante do perdão a eles concedido - não são compreendidas por parte de boa parcela da sociedade. O ministro Edson Fachin, sob essa mesma leitura, teria sido muito apressado com sua decisão de aprovar os pedidos do PGR.

Frente da violência

Mais uma vez o Brasil assistiu, ontem, algo inusitado. Senadoras da oposição - Fátima Bezerra, Vanessa Grazziotin e Gleise Hoffmann, Regina Souza e Lídice da Mata - decidiram ocupar a mesa diretora do Senado para evitar a votação da reforma trabalhista. Impedido de sentar-se na cadeira de presidente, o senador Eunício Oliveira ordenou apagar as luzes do ambiente e desligar o som de microfones. O gesto foi designado por elas próprias como um ato democrático. Há quem veja na extravagante ideia das senadoras da oposição um ato violento. P.S. Qualquer senador pode abrir a sessão quando não há quorum. Mas, claro, devem ceder a cadeira de presidente a quem a ocupa por direito. Quando este se fizer presente. Senadores governistas estão tentando um acordo com as rebeldes. Pergunta: e o Conselho de Ética será acionado ou não?

Zveiter

Mesmo garantindo que seu parecer teria um cunho eminentemente político, o deputado Sergio Zveiter, relator da denúncia contra o presidente da República na CCJ, produziu uma peça com fortes elementos jurídicos. Entrou no mérito, repeliu a tese de que a denúncia era inepta, falou de sua gravidade e dos fortes indícios de participação do presidente na trama. Mas e a prova dos nove, o recebimento da mala com 500 mil reais? Ficou na lateral. Não disse nada.

Mariz

Antônio Claudio Mariz de Oliveira mostrou porque é um dos mais competentes advogados criminalistas do país. Fez um contundente discurso. Foi veemente. Emotivo. Fez reptos. Desafiou o PGR a mostrar as provas de corrupção. E colocou o conceito de açodamento tanto em Rodrigo Janot quanto no juiz Edson Fachin. Mariz chegou a afirmar que, no país, a anomia impera.

Anomia e impunidade

No Brasil, corruptos e facínoras, se condenados, ganham o mesmo status perante a lei. Por isso, não é de estranhar a anomia que toma conta do país. Vem de longe. Desde os idos da colônia e do Império, fomos afeitos ao regime de permissividade, apesar da rigidez dos códigos. Tomé de Souza, primeiro governador-Geral, chegou botando banca. Os crimes proliferavam. Avocou a si a imposição da lei, tirando o poder das capitanias. Um índio que assassinara um colono foi amarrado na boca de um canhão. Ordenou o tiro para tupinambás e colonos entrarem nos eixos.

Ordenações do reino

Em 1553, porém, uma borracha foi passada na criminalidade, com exceção dos crimes de heresia, sodomia, traição e moeda falsa. Depois chegaram as Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), que vigoraram até 1830. De tão severas, a ponto de estabelecerem a pena de morte para a maioria das infrações, espantaram até Frederico, o Grande, da Prússia, que ao ler o Livro das Ordenações, chegou a indagar: "Há ainda gente viva em Portugal?". Os castigos, porém, eram frequentemente perdoados. (Qualquer lembrança de Joesley Batista é mera coincidência). Na época, a regra era impor uma dialética do terror e do perdão para fazer do rei um homem justiceiro e bondoso, como relata Luís Francisco Carvalho Filho num ensaio sobre a impunidade no Brasil nos tempos da colônia e do Império. E assim, entre sustos e panos quentes, o Brasil semeia "a cultura do faz de conta".

Fecho a coluna com Jânio e as brigas de galo

Galo briguento na panela

Jânio Quadros assumiu a presidência da República, proibiu brigas de galo. A ordem era irrecorrível: "Se cantar, terreiro. Se brigar, panela". José Resende de Andrade, delegado em Belo Horizonte, era janista, zeloso e fiel executor da lei. Mandou prender todos os galos de briga da região metropolitana. José Resende levou a galada para os fundos da delegacia, na praça da Liberdade. De madrugada, começou a alvorada cantante. Magalhães Pinto, governador do Estado, dormindo próximo, no Palácio da Liberdade, foi despertado pela orquestra de José Resende, mandou dar um jeito imediato na zoeira. José Resende recebeu a ordem, não discutiu. Matou todos. Um galicídio. Até hoje os amigos o chamam de Zé Cocó, o mata-galo. E ele, muito mineiramente, sorri modesto: "O dever não distingue o canto do infrator".