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Calotear ou não calotear

terça-feira, 20 de julho de 2004

Atualizado às 07:53

Francisco Petros*


Calotear ou não calotear


A questão fiscal e do endividamento público brasileiro está se tornando cada vez mais presente nas discussões entre os economistas e políticos. Tais discussões estão extrapolando o âmbito dos seminários e de setores acadêmicos e começam a ser divulgadas na mídia e por personagens que inesperadamente surgem no cenário. Foi o que aconteceu neste fim de semana (17 e 18/7/04), quando o jornalista Merval Pereira do Globo dedicou duas colunas sobre as reflexões em relação à possibilidade de um "calote" da dívida interna.

O ponto de partida da matéria de Pereira foi uma entrevista do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso à Revista Primeira Leitura (edição de Julho/04) onde afirmou que "é a dívida que está comandando o governo; não é o governo que está comandando a dívida". Além disso, o ex-presidente falou abertamente que para que "o país volte a crescer vamos ter de resolver esta questão (da dívida interna)". O ex-presidente diz que a solução tem de ser "pactuada". Não seria um "calote", mas algo "politicamente discutido". Como? Através de "uma pedagogia da dívida", nas palavras de Fernando Henrique Cardoso. Assim, a sociedade entenderia "de onde é que vem" o endividamento e, assim se obteria "a adesão de grupos importantes a uma nova solução, que evite a impressão de se estar propondo um calote".

Estamos diante de um fato dos mais significativos. Os senhores lembram das discussões ao longo de 2002 sobre a possibilidade de que Lula ou Ciro Gomes viessem a dar um calote na dívida interna, caso fossem eleitos? Lula, para se viabilizar junto às classes dirigentes e médias da sociedade brasileira divulgou um documento, a Carta ao Povo Brasileiro, na qual assumia uma série de compromissos e responsabilidades em relação à condução da política econômica, inclusive no que se referia ao cumprimento de contratos (que incluía o pagamento da dívida interna). A atual discussão sobre a situação fiscal brasileira evidencia que este compromisso pode ter cumprido o seu papel estabilizador no processo eleitoral, mas pode não ser passível de uma solução de continuidade diante da realidade objetiva: o setor público brasileiro está endividado em excesso e não há como compatibilizar crescimento sustentado com, (1) aumento de investimentos públicos, (2) o financiamento da dívida via metas fiscais, (3) o cumprimento de metas de inflação e (4) ações que melhorem o regime de exclusão social em que vivemos.

O lado positivo é que esta discussão se amplia a partir de uma entrevista do ex-presidente Fernando Henrique, em cujo governo o endividamento público cresceu em grande velocidade e magnitude. Lamentavelmente, ainda não temos nenhum grupo politicamente organizado que faça uma proposta factível para que a solvência do setor público brasileiro não seja mais contestada ou debatida nos termos atuais: "calotear ou não calotear, eis a questão!"

De forma bastante singela, há dois caminhos para que o tema do endividamento público seja enfrentado. O primeiro seria através de uma profunda reforma do Estado por meio de uma revisão completa dos gastos e investimentos públicos e que fosse capaz de, ao mesmo tempo, (1) aumentar a eficiência e a produtividade das ações estatais de forma a viabilizar investimentos públicos e sociais e (2) reduzir os gastos públicos e impostos, aumentando a produtividade do setor privado o que faria o país crescer de forma sustentada.Com efeito: haveria a redução da relação dívida pública/ PIB que está atualmente no patamar de 57% em termos líquidos (descontando-se as reservas) e 78% em termos brutos (dívida total/PIB).

O segundo caminho é a redução da dívida por meios políticos de forma negociada ("repactuação?") ou não (leia-se, calote no melhor estilo argentino ou russo). Assim, o setor público ganha fôlego, as taxas de juros caem e o país volta a crescer. Este crescimento será mais ou menos efêmero caso haja ou não uma profunda reforma do Estado. Senão, depois de algum tempo, um novo calote (ou repactuação) será "necessário" (na falta de outra palavra).

Na primeira hipótese, a das reformas profundas que resolvam o problema da solvência do país, será preciso bem mais do que uma lipoaspiração da Constituição, conforme as palavras do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim. É necessário um enorme apoio político para que o Estado fique menor. Serão implementadas reformas de natureza liberal! Será possível fazê-lo no atual quadro partidário do Congresso? Ou a partir de um Governo liderado pelo Partido dos Trabalhadores?

Na segunda hipótese, tudo é possível acontecer! Advogar uma "pedagogia" para que se obtenha "adesão" à hipótese de redução do endividamento público me parece muito difícil. A natureza do capitalismo é não-cooperativa. Ou seja, ninguém está disposto individualmente a perder algo em benefício da coletividade. Apenas o Estado, de forma coercitiva, é capaz de fazê-lo. Talvez o ex-presidente Cardoso pudesse desenvolver melhor a sua idéia "pedagógica". Pessoalmente, acredito mais na hipótese "caótica", caso haja a percepção de que um calote (ou repactuação) da dívida interna está próximo de ocorrer.

De qualquer maneira, uma coisa é certa: está ficando claro que do jeito que está, o país não anda. É preciso que o governo e a sociedade tenham coragem de enfrentar a realidade como ela é. Há um problema muito grave de solvência do setor público e ele começa a "transbordar" podendo colocar em risco a estabilidade do país.
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* Francisco Petros é economista formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pós-graduado em finanças (MBA) pelo Instituto Brasileiro do Mercado de Capitais (1ª Turma-1987). Em 1988, ingressou na Brasilpar onde atuou por dez anos nas áreas de corporate finance e administração de recursos (esta foi a primeira empresa independente de gestão de recursos). Em seguida, foi diretor-executivo do Grupo Sul América na área de investimentos. Em 1998, fundou a NIX ASSET MANAGEMENT da qual é sócio-diretor. É membro do Conselho Consultivo do Ethical Fund, fundo de investimento administrado pelo ABN-AMRO. Foi diretor (1992), Vice-Presidente e Presidente (1999-2002) e membro do Conselho Consultivo e do Comitê de Ética (atual) da APIMEC (Associação dos Analistas e Profissionais de Investimentos do Mercado de Capitais - São Paulo). É Certified Financial Planner (CFP®) pelo Instituto Brasileiro de Certificação de Profissionais Financeiros (IBCPF) e Analista de Investimento com CNPI (Certificação Nacional de Profissional de Investimento). É colunista da Revista Carta Capital, do Jornal Valor Econômico e consultor da Rede Bandeirantes de Rádio (BAND), além de contribuir esporadicamente para diversas publicações especializadas em mercado de capitais, economia e finanças. Em 2004 foi escolhido o "Profissional de Investimentos do Ano" pelo voto direto dos associados da APIMEC em função da sua contribuição para o desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro.

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