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Educação e o dilema individual e da cidadania

terça-feira, 25 de março de 2025

Atualizado em 24 de março de 2025 14:04

"A crise nas escolas exige medida radical para impedir que meninos machuquem meninas e a si mesmos".
Jack Thorne, coautor de "Adolescência"

Foi inquietante, provocante e, por vezes, provocador, assistir a série "Adolescência" de Jack Thorne e Stephen Graham, uma reflexão rigorosa e dramaticamente estruturada que escancara o dilema existencial no qual a educação está enredada no mundo contemporâneo. Uma análise precisa e, ao mesmo tempo, implacável sobre o estado atual de nossa formação cidadã. Infelizmente, tornou-se banal a noção de que a educação desempenha um papel central na construção da cidadania e, por consequência, da própria política. A ideia é rotineira, mas a implementação dessa premissa tem sido negligenciada no Ocidente - muito se discute e pouco se realiza diante de um mundo que mescla o real e o virtual.

Nas sociedades que aspiram a democracia enquanto um valor e não apenas "um modelo", o sistema educacional deveria ser organizado de forma a propagar a compreensão de que vivemos sob leis que protegem os bens comuns e promovem a cidadania em seu sentido mais comunitário. É cada vez mais evidente que essa missão não pode ser delegada exclusivamente à família ou, ainda mais, ao setor privado, pois não é possível educar para a cidadania por meio de "modelos educacionais desconectados". Somente um sistema cívico público pode garantir a formação equitativa e republicana dos indivíduos, especialmente em meio à fragmentação proporcionada pelas mídias sociais. Em verdade, a educação cívica pública é indispensável para a manutenção da democracia e para a consolidação de uma sociedade justa e coesa: essa me parece a conclusão mais sensata quando se assiste a uma série como "Adolescência".

É necessário, mais do que nunca, um "planejamento cívico" que origine e desenvolva a "consciência e a uniformidade" necessárias para a regulação da vida da cidadania, por meio do ensino dos valores humanistas e da estimulação e fixação da ideia de "excelência social", compreendida como a convicção de que cada indivíduo pertence à sociedade (local e global) e tem responsabilidade com o bem comum. Claro que não é uma tarefa que se possa ser modulada para uma administração de governo. Tem de ser propagada e sedimentada ao longo do tempo, de forma prioritária e não oportunística. Não há educação cívica num ambiente de oportunismo e populismo governamental. Simples assim.

A cidadania não pode ser compreendida apenas como um conjunto de direitos individuais, mas como um compromisso coletivo baseado na justiça e na equidade. Michel Sandel enfatiza que a democracia exige cidadãos engajados, capazes de compreender o bem comum e de participar ativamente da vida política1. Tal concepção exige um planejamento educacional que vá além da simples transmissão de conhecimentos técnicos e inclua a formação ética e cívica dos indivíduos. Desde muito, Aristóteles já argumentava no seu seminal "Ética à Nicômaco"2 que a educação moral é um elemento essencial para o desenvolvimento da virtude e da vida em comunidade. Sem um sistema educacional que priorize essa formação, corre-se o risco de criar uma sociedade cujos cidadãos não interagem entre si, onde a cidadania se torna meramente formal e instrumental, desprovida de significado social (de valor e de prática). Dessa maneira, um planejamento educacional cívico é indispensável para garantir que todos os cidadãos compartilhem uma base comum de valores e responsabilidades.

Martha C. Nussbaum propõe, com rara clareza intelectual, que a educação deve fomentar a empatia, a reflexão ética e a capacidade de julgamento crítico3. Valores que sejam universalmente difundidos evitam a exclusão social e de distorção dos valores fundamentais da humanidade - talvez seja esse o ponto central da série da Netflix. Aqui vale citar Umberto Galimberti4 que adverte sobre os perigos da 'racionalidade técnica', que reduz a educação a uma mera instrumentalização do conhecimento, negligenciando sua dimensão ética e cívica. Essa percepção filosófica de Galimberti expõe a essência do mundo virtual, que se entrelaça ao cotidiano das sociedades contemporâneas, produzindo o distanciamento social perigoso dos indivíduos. Afinal, quando a lógica da eficiência e do pragmatismo domina o sistema educacional, a cidadania perde espaço para uma formação tecnicista que não prepara os indivíduos para a participação democrática e para a promoção do bem comum.

O avanço tecnológico tem modificado a maneira como o conhecimento é disseminado e assimilado, trazendo consigo tanto oportunidades quanto desafios para a educação cívica. Se por um lado a tecnologia permite maior acesso à informação, por outro promove a desinformação e dificulta o desenvolvimento de uma consciência cidadã coesa. Umberto Galimberti enfatiza que a "palavra técnica" tornou-se um tipo de racionalidade que visa atingir os máximos objetivos com o mínimo de meios, o que, quando aplicado à educação, pode resultar na desvalorização do pensamento crítico em favor de habilidades meramente instrumentais5. Para mitigar esse risco, é necessário que o ensino público incorpore a tecnologia de maneira responsável: o autor de Adolescência Jack Thorne disse à BBC que a "crise nas escolas exige medida radical para impedir que meninos machuquem meninas e a si mesmos".

John Dewey, em sua obra 'Democracy and Education', argumenta que a escola deve ser uma extensão da sociedade democrática, onde os indivíduos aprendem, desde cedo, a importância do pensamento crítico e da participação ativa na vida pública"6. Sem uma educação que promova esses valores, os cidadãos podem se tornar passivos diante das injustiças sociais e vulneráveis à manipulação política e, nos tempos atuais, à fragilidade midiática. Paulo Freire pregava essa ideia, há muito, ao defender que a educação deve ser libertadora, promovendo a conscientização dos indivíduos sobre suas condições sociais e estimulando-os a agir para transformar a realidade. Com efeito, a educação pública, quando estruturada de forma cívica, permite que todos tenham acesso às ferramentas necessárias para exercer plenamente sua cidadania, vertendo o indivíduo para à paz e não para a violência.

Em "A Theory of Justice", John Rawls sustenta que "a equidade social é uma condição fundamental para que a educação seja acessível a todos". Segundo o autor, "somente uma sociedade minimamente equitativa pode garantir que os indivíduos se sintam incluídos na cultura e nos negócios da comunidade"7. Esse princípio é crucial uma vez que traz à tona a ideia de um ciclo virtuoso pelo qual a equidade se faz por meio de um acesso universal à educação, que não pode ser um privilégio "real" de poucos, mas um direito universal de participação ativa na vida democrática. A escola pública deve, portanto, atuar como um espaço de inclusão (equidade), onde as barreiras sociais são minimizadas e a cidadania pode ser plenamente exercida.

Por fim, e imprescindível que o sistema educacional adote uma abordagem interseccional, considerando as desigualdades estruturais e históricas que afetam a cidadania. A filósofa Martha C. Nussbaum argumenta que a educação deve fomentar o pensamento crítico e a capacidade de se colocar no lugar do outro, elementos essenciais para a construção de uma sociedade mais justa e democrática8. Sem essa preocupação, a educação corre o risco de reproduzir desigualdades e aprofundar a exclusão social, minando os próprios fundamentos da cidadania. A educação, portanto, não é apenas um meio de transmissão de conhecimento, mas um instrumento essencial para a construção de uma sociedade mais justa e democrática, em meio à espetacularização da vida pessoal e social das mídias modernas, como mostra "Adolescência", de forma exemplar.

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1 SANDEL, Michael. A democracia sob risco. São Paulo: Editora Civilização Brasileira, 2020.

2 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. António de Castro Caeiro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018.

3 NUSSBAUM, Martha C. A fragilidade da bondade. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

4 GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: L'uomo nell'età della tecnica. Milão: Feltrinelli, 1999.

5 GALIMBERTI, Umberto. Il nichilismo e i giovani. Milão: Feltrinelli, 2007.

6 DEWEY, John. Democracy and Education. New York: The Macmillan Company, 1916.

7 RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1971, p. 101.

8 NUSSBAUM, Martha C. Not for Profit: Why Democracy Needs the Humanities. Princeton: Princeton University Press, 2010.