Felicidade foi embora
quinta-feira, 20 de março de 2025
Atualizado em 19 de março de 2025 12:19
Do ponto de vista político (e jurídico) a felicidade vai para além de uma ideia iluminista: tornou-se, especialmente no constitucionalismo estadunidense, uma promessa. Atualmente, essa promessa está profundamente ameaçada porquanto tornou-se parte integrante do extremado jogo ideológico, da esquerda à direita. É fato que o bem-estar e a satisfação interior da cidadania enveredaram pelo caminho da reivindicação raivosa, marcada pelo ressentimento da desigualdade social e econômica e pela precariedade do atendimento das instituições do Estado, esses os verdadeiros problemas carentes de soluções.
Da felicidade imaginada por Locke, na qual a acumulação de posses era a essência da felicidade, até o contrato social de Rousseau a dicotomia entre a felicidade individual e a socialmente compartilhada proporcionou condições para o progresso capitalista, de um lado, e o idealismo democrático, de outro. Agora, no Ocidente, temos a utopia revolucionária ainda presente na esquerda e a nostalgia reacionária na direita. Há muito mais nos extremos e vale citar dois exemplos: na direita, o empreendimento hiperindividualista criou os excessos do "autocuidado, do coaching e da farmacologia", no dizer de Barbara Ehrenreich1. Por sua vez o identitarismo na esquerda, uma ideologia deveria buscar a justa pretensão à igualdade, tornou-se "um campo de validação social e de direitos meramente discursivos"2 que servem de parâmetros para a "patrulha" de quem não está no mesmo campo de pensamento. Esquerda e direita só ficam no mesmo campo quando se trata de radicalismo.
Nos EUA de Trump, o chefe da polarização global, o caminho se tornou ainda mais tortuoso: a felicidade constitucional, que não foi propositadamente definida pelos "pais fundadores", perdeu a sua principal característica, a de ser um projeto coletivo. Agora, a exclusão do Estado, no seu justo papel coercitivo, evita as complicações morais de quem pensa sobre o que está acontecendo: a anarquia sem utopia3. A luta pela "felicidade" se transformou numa guerra para fixar um conceito ideológico próprio do que é bem-estar e felicidade - nesse sentido a Constituição da América foi atraiçoada e muito.
Na Europa, a junção da migração, o enfraquecimento do Estado do bem-estar social e a desilusão em relação ao neoliberalismo impulsionaram a nostalgia do isolacionismo bretão (Brexit), a desumanização das relações de trabalho e a transformação do sistema econômico em um arcabouço impessoal e antissocial. Na "sede do iluminismo e do racionalismo" os processos eleitorais são comandados por uma irracionalidade emocional e completamente ideológica. Agora vê-se, nesse contexto, a fragilidade da Europa, isolada no apoio à Ucrânia. Os ingleses perderam a ilusão de seu próprio e solitário poderio. Bye, bye, Brexit?
Na América Latina, nunca tivemos uma ideia completa sobre felicidade em seu sentido político: o que nos consolou e amoldou sempre foi a euforia festeira, a visão exótica e a brilhante capacidade do continente para forjar uma cultura popular rica. Já a felicidade geral sempre foi interrompida por golpes de estado, pelo populismo de direita e esquerda e pela falta de denominador mínimo entre os interesses das elites e as aspirações do povo. Dentre teses e antíteses, acabamos sem síntese alguma. Infelizmente, nem tivemos um aggiornamento que nos fizesse amoldar razoavelmente ao que denominamos de "modernidade".
O direito à felicidade, por todo o Ocidente, está preso a um dilema gravíssimo: ou ele é garantido através da disciplina, de uma "ordem" imposta por meio da restrição da liberdade individual em nome do coletivo, ou ele é restrito ao individualismo anárquico e exacerbado, ao direito de se "desconectar do mundo" - como se tudo pudesse ir para o inferno, desde que prevalecesse a sensação de liberdade e do consumismo. A política contemporânea parece incapaz de articular uma felicidade que transcenda essas oposições. O que fazer, então? Como reconstruir um ideal de felicidade política que não se dissolva em extremismos?
O domínio do campo da tecnologia sobre as relações humanas - agora estamos em tempos de inteligência artificial - e as mudanças climáticas requererão que no campo de trabalho, do uso das energias e da necessária privacidade individual transforme "a noção de 'gestão algorítmica" da felicidade em um projeto mais justo, mais "negociável" e, por conseguinte, mais realista e menos "prometedor do paraíso". A mercantilização da felicidade humana (logo, da própria Política) tem de superar o binômio identidade-coletividade por meio da isonomia entre a liberdade (no seu sentido mais latu) e a responsabilidade (para além do próprio nariz do indivíduo).
Não há respostas que sejam definitivas quando tema é felicidade. Em torno dela é melhor que tenhamos a polêmica (e não a guerra) entre dois lados extremados e que isso não seja anti-intelectualista (desprezo em relação a um "pensamento" sobre a felicidade. Tampouco deve servir para desmobilizar forças que desejam um bem comum para além da primazia das visões políticas que acabam por mutilar as esperanças.
Quando um político, dotado de real poder de acabar com o mundo, propõe que a "América seja a primeira" (America First) isso significa que a "América pode tudo". Por essa visão, todas as concepções de felicidade que não se alinham com à do "imperador" são contrárias aos "interesses dos Estados Unidos". Impressiona que haja adesões de radicais ao redor da Terra a essa ideologia. É preciso avisar aos extremados que é a limitação aceitável da felicidade de uns que possibilita a outros uma parcela razoável de felicidade. Há um limite para a felicidade, tanto no sentido individual quanto no coletivo. E esse limite chegou sob pena da finitude de todos, mesmo em meio a toda a fragmentação em tribos na qual estamos metidos nesse tempo obscuro.
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1 EHRENREICH, Barbara. Smile or Die: How Positive Thinking Fooled America and the World. Londres: Granta, 2010.
2 FRASER, Nancy. Redistribuição ou Reconhecimento? Uma Controvérsia Político-Filosófica. São Paulo: Editora Boitempo, 2003.
3 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.