COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Política, Direito & Economia NA REAL >
  4. O patrimonialismo como estratégia

O patrimonialismo como estratégia

terça-feira, 11 de março de 2025

Atualizado em 10 de março de 2025 09:43

A ideia de patrimonialismo foi cunhada por Max Weber (1864-1920) para descrever a realidade que combina Poder Público e privilégio privado. Os efeitos sobre a governança de um país são indeléveis e com uma trajetória que a experiência histórica demonstra que tropeça nas instituições e na representatividade. Vejamos o caso dos EUA e do Brasil sob essa óptica.

Surpreendentemente, em pleno século XXI, se impôs sobre os Estados Unidos com a liderança de Donald Trump. No Brasil, cujas raízes patrimonialistas são profundas, desde o desembarque de Cabral, a manifestação dos seus efeitos na sociedade já é completa e disseminada. A análise comparativa entre o Brasil e os EUA evidencia a perigosa corrosão do patrimonialismo sobre a governança democrática e a solidez institucional, não propriamente como uma repetição da história, mas como uma inovação do controle e captura do Estado pelos particulares.

Nos EUA, Trump não é apenas uma novidade, mas a manifestação de muitas patologias sociais e econômicas que despencaram sobre a política desde os anos 1980s. Jonathan Rauch1, em artigo recentíssimo, expõe o deslocamento da lógica burocrática-racional para um patrimonialismo latente, no qual a lealdade pessoal transcende a competência técnica e a representatividade política. Trump, em menos de dois meses e com sua estratégia de fidelização da elite e das hordas que o cercam, nomeou secretários assustadoramente incompetentes e desmantelou as agências regulatórias. Pública e midiaticamente, o "homem de cabelos alaranjados" revela os laços que unem o Estado e os apaniguados que o cercam. Assim, a Administração Pública transmutou-se de um aparato impessoal em um feudo de conveniências políticas.

Os modos patrimonialistas de Trump destruíram as especificidades da democracia americana e o tornou o antigo "otimismo" e a crença das excepcionalidades da América no mais explícito autoritarismo. Os impulsos e ressentimentos do apresentador de TV e empresário e as mazelas que o caracterizam criaram uma teia de proteção para os aliados e o arbítrio para os dissidentes. O caso mais notável foi o estímulo e, agora, o perdão para os insurretos de 6 de janeiro de 2021. Sob o patrimonialismo, a legalidade e a "reserva institucional" (não agir na fronteira da lei) se converte ao atendimento do interesse do soberano.

O Brasil, por sua vez, sempre viveu o patrimonialismo. Quiçá, seja essa característica, o mito fundador e a desgraça política nacional. Desde os tempos em que os índios ainda chamavam a nossa Terra de Pindorama, o Estado jamais se revestiu da institucionalidade pública: de fato, sempre vivemos sob os braços longos das elites: do funcionalismo público aos empresários, da intelectualidade aos domínios dos meios de produção. A hipertrofia burocrática, o fisiologismo político e a fragilidade dos mecanismos de accountability são os sinais de fraqueza da relação entre público e privado.

Magistralmente, Raymundo Faoro2, na sua obra "Os Donos do Poder", no uso da teoria e da experiência de Max Weber, demonstra que o patrimonialismo brasileiro não é fruto do acaso, mas é resultado da gênese de nossa espinha dorsal. A burocracia estatal não age em nome da coletividade, mas como uma longa manus de categorias sociais que se perpetuam no poder e usam o erário como fiança da permanência de seu status quo. Quisesse, Trump teria no Brasil um exemplo das feições e desdobramentos do patrimonialismo.

Nos EUA, o patrimonialismo emergiu como um sinal recente na "pele" de uma institucionalidade que se acreditava consolidada. No Brasil, ele é a própria "carne'. Em ambos os casos, o resultado é manifestado, mesmo que de forma assimétrica: a corrosão dos checks and balances., o enfraquecimento dos princípios democráticos e a corrupção por dentro e por fora do ordenamento político e, com efeito, jurídico e jurisdicional.

Outro aspecto notável é a relação entre patrimonialismo e as estruturas econômicas. Nos EUA, desde a implantação das ideias do neoliberalismo nos anos 1980 e, agora, sob Donald Trump, a fiscalização e regulação do Estado beneficia corporações poderosas, como a indústria do petróleo e do carvão, que encontraram menos resistência na exploração predatória do meio ambiente. Nesse momento histórico, temos a dominação tecnológica e midiática. Aqui, o patrimonialismo não é apenas um modelo de governança; é um modelo de negócios calcado e encostado no Estado.

Há também o tema eleitoral. Tanto Trump (e.g. na retórica contra o funcionalismo de Elon Musk) quanto Bolsonaro (e.g. no uso das emendas congressuais) e, também, Lula (e.g. no engajamento em políticas de renda sem "portas de saída"), transformaram a máquina pública direta e indireta (e.g. agências reguladoras e estatais) em instrumentos de proselitismo e dominação eleitoral. No Brasil, o "orçamento secreto" consolidou-se como um expediente original (e especial) de captura parlamentar, enquanto nos EUA, a interferência de Trump no Departamento de Justiça, na Securities and Exchange Commission, no Federal Reserve e, quem diria!, o controle da Suprema Corte revelou-se um esforço calculado para instrumentalizar a administração e o Judiciário em seu favor.

A militarização da política é outro ponto de convergência entre o Brasil e os EUA. Por lá, o crescimento e o aumento de poder de grupos paramilitares como os Proud Boys e a retórica de "guerra cultural" de Trump manifestaram-se como sinais de uma política de poder baseada na força. No Brasil, a tentativa de golpe para imposição da tutela militar sobre a política, a pisotear a autonomia das instituições civis e a reforçar o viés autoritário do governo são pontos de observação do efeito do patrimonialismo. Essa marca, diga-se, está muito presente no Brasil.

Stephen E. Hanson e Jeffrey S. Kopstein, em "The Assault on the State"3, argumentam que o patrimonialismo contemporâneo não é um mero vestígio do passado, mas uma estratégia elaborada e calculada de desmonte institucional. O enfraquecimento das burocracias estatais não é um efeito colateral, mas um objetivo deliberado, um meio de eliminar resistências ao poder do "líder".

Há mais: Anne Applebaum, em "Autocracy Inc4.", amplia essa discussão ao demonstrar como os regimes patrimonialistas estão articulados em redes transnacionais. Trump e Bolsonaro não operam isoladamente; fazem parte de uma constelação de líderes que, como Orbán, Putin e Erdogan, dividem estratégias de manipulação eleitoral, enfraquecimento da imprensa e captura do Judiciário. A lógica patrimonialista global e está em expansão.

O patrimonialismo, portanto, não deve ser entendido como um fenômeno isolado, mas como uma gravíssima patologia que se desfraldou sobre as democracias, sejam liberais ou sociais-democratas.  O futuro da democracia está intrinsecamente ligado à capacidade das sociedades resistirem à erosão dos princípios republicanos na Administração Pública.

Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, a resistência ao patrimonialismo não é uma abstração teórica, mas uma luta concreta contra a captura do Estado por interesses privados. A defesa das instituições, da transparência e da autonomia da burocracia pública não é apenas um imperativo democrático; é a sobrevivência existencial diante do avanço do autoritarismo contemporâneo. O patrimonialismo não é um conceito arcaico: é o espelho onde as democracias em crise se veem refletidas e, no Brasil, sinal de nosso próprio envelhecimento.



RAUCH, Jonathan. One Word Describes Trump. The Atlantic, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 07 mar. 2025.

2 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. São Paulo: Globo, 2001.

HANSON, Stephen E.; KOPSTEIN, Jeffrey S. The Assault on the State: How the Global Attack on Modern Government Endangers Our Future. Londres: Polity Press, 2024.

APPLEBAUM, Anne. Autocracy Inc. Nova York: Doubleday, 2023.