A inevitabilidade do capitalismo e da democracia
terça-feira, 11 de fevereiro de 2025
Atualizado em 10 de fevereiro de 2025 12:10
A reflexão sobre a inevitabilidade do capitalismo e da democracia, quando analisada sob a ótica das ideias construídas na segunda metade do século XX no Ocidente, leva-nos a questionar a forma como concebemos o progresso histórico e as estruturas político-econômicas contemporâneas - não se trata de um tema acadêmico, mas da ordem política vigente, de nossa vida cotidiana. Os conceitos da política da inevitabilidade e da política da eternidade, propostos por Snyder1, fornecem um arcabouço para compreendermos se as instituições são, de fato, o desfecho inescapável da história ou apenas construções cíclicas e sujeitas à sua própria implosão.
A política da inevitabilidade sustenta que o futuro é uma projeção linear do passado, que as leis do progresso são conhecidas e que não há alternativas viáveis ao curso presente. Que conforto deve ser saber que tudo está predestinado a seguir o caminho correto, sem desvios, tropeços ou quedas do cavalo, tal como um protagonista trágico de um romance do século XIX! Sob essa perspectiva, a expansão do capitalismo e da democracia liberal é tida como um fenômeno natural e inevitável. No entanto, essa concepção ignora a dinâmica das instituições e sua dependência de fatores históricos, culturais e políticos.
Por outro lado, a política da eternidade sugere que a história não se move em linha reta, mas em "ciclos repetitivos de vitimização", onde as ameaças passadas são incessantemente revisitadas para justificar um status quo imutável. Ora, que bela construção para garantir que nada nunca mude! Basta recordar velhos inimigos, evocar terrores ancestrais e pronto: a realidade presente não precisa ser contestada. O capitalismo, dentro dessa lógica, não seria um destino inevitável, mas uma forma contingente de organização econômica que se perpetua pela crença na sua própria perenidade. É parte integrante, inclusive, do denominado "excepcionalismo da América", por dentro de onde se esconde a arrogância de ser a maior nação.
Tony Judt2, em sua crítica às desigualdades geradas pelo neoliberalismo, alertava para os riscos de se assumir o capitalismo como um fim inquestionável da evolução social, tentação a qual Francis Fukuyama3 sucumbiu, pelo menos de alguma forma. Sejamos justos: afinal, o mercado resolve tudo, desde que não nos importemos com as mazelas sociais, a exploração e, claro, os pequenos ou grandes inconvenientes de crises financeiras cíclicas. Para Judt, a reconstrução do Estado de bem-estar social e a revalidação de políticas redistributivas eram essenciais para mitigar os excessos do mercado.
Ao estudar as formações nacionais e a influência das instituições sobre a identidade política, Linda Colley4, professora de história de Princeton, evidencia como a democracia é um fenômeno historicamente contingente e não uma força inevitável da civilização. Uma decepção para aqueles que acreditavam que a democracia era como o sol, que nasce todos os dias independentemente do que fizermos! Sua pesquisa mostra que a consolidação democrática depende de fatores específicos, como guerras, crises e lideranças transformadoras, e não de uma progressão natural das sociedades. A inevitabilidade e a eternidade, do ponto de vista da política, são meros abismos dos quais não se saiu quando nos rendemos às suas premissas.
Zygmunt Bauman5, por sua vez, introduz uma perspectiva intrigante ao discutir a fluidez das relações sociais, políticas e econômicas. Para Bauman, a "modernidade líquida" transformou as instituições outrora sólidas em estruturas instáveis, sujeitas a mudanças bruscas e imprevisíveis. Uma descoberta de que nossas certezas políticas e econômicas são como gelo fino: transparentes, escorregadias e, acima de tudo, temporárias! O capitalismo, que já foi visto como um sistema robusto e estrutural, agora parece moldável aos interesses de uma elite globalizada, enquanto a democracia se vê à mercê das marés da opinião pública digital, cuja perda de representatividade é cristalina, evidente e disforme.
A ascensão da China como potência econômica e política representa um desafio para essa discussão. O modelo chinês, que combina autoritarismo político e capitalismo de Estado, desafia a narrativa de que a democracia e o livre mercado são indissociáveis - um mito que foi tratado como verdade por muito tempo. Enquanto o Ocidente enfrenta crises institucionais e políticas, a China expande sua influência por meio de estratégias como a "Iniciativa do Cinturão e Rota" (a nova "Rota da Seda") e o desenvolvimento tecnológico acelerado - veja-se a discussão sobre IA - Inteligência Artificial face ao programa chinês Deep Seek - o que demonstra que o sucesso econômico não é exclusivo dos sistemas democráticos. O Ocidente, por sua vez, parece empenhado em discutir se um tweet pode ser considerado um crime de lesa-pátria. É preciso elevar o nível da discussão sobre a democracia ocidental, não é?
Em um artigo de 19306, G.K.Chesterton escreveu que "as falácias não se tornam menos falácias porque se tornaram modas" A crescente erosão das democracias liberais ocidentais, impulsionada por polarização política, desinformação e desconfiança nas instituições, exige uma reavaliação profunda do modelo democrático e constitucional. Em um mundo onde a democracia não é garantida, mas sim um projeto em constante disputa, a questão que se impõe não é se ela é inevitável, mas se estamos dispostos a lutar por sua permanência e aprimoramento. Mas sejamos francos: quem quer lutar por algo tão trabalhoso quando há uma série nova para "maratonar" ao longo da semana?
1 SNYDER, Timothy. The Road to Unfreedom: Russia, Europe, America. New York: Tim Duggan Books, 2018.
2 JUDT, Tony. Ill Fares the Land. New York: The Penguin Press, 2010
3 FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
4 COLLEY, Linda. Britons: Forging the Nation 1707-1837. New Haven: Yale University Press, 1992.
5 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
6 Illustrated London, 19 de abril de 1930.