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O caso Brumadinho e a responsabilidade dos administradores

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Atualizado às 07:37

I - Introdução

Recentemente, no âmbito do Processo Sancionador nº 19957.0079916/2019-38 da Comissão de Valores Mobiliários - CVM, foi emitido um voto de autoria do relator do caso. o eminente Diretor da CVM Daniel Maeda em face de executivos da Vale acusados de descumprimento do dever de diligência do artigo 153 da Lei das Sociedades Anônimas (6.404/76) no contexto do rompimento da Barragem B1, ocorrido em 25.1.2019 em Brumadinho/MG.

É notável o fato de que o voto do relator resultou em multa da ordem de R$ 27 milhões em vista de alegada falta de cumprimento do dever de diligência o que ensejou responsabilização pela falta de supervisão da referida barragem, que se rompeu.

O caso se constitui, a meu ver, em referência no que tange ao tema dos deveres dos administradores de companhias em casos administrativos, cíveis e criminais.  Ademais, sua aplicabilidade pode ocorrer em relação a empresas de diversos portes e características em vista da eventual jurisprudência que se forma. É preciso, da parte dos administradores engajados na governança de empresas, prestar atenção aos argumentos jurídicos do referido caso, do ponto de vista ontológico, axiológico e prático da gestão dos negócios e atividades empresariais.

Este artigo tem o objetivo de explorar os temas carregados pelo caso concreto, sem tratar dele propriamente, somente referencialmente, e trazer à luz uma perspectiva, senão nova, ao menos "renovada", do tema das responsabilidades dos individuais dos administradores das empresas, sejam conselheiros de administração, membros de órgãos de assessoramento (comitês), diretores e de outras funções que se vinculem aos "deveres dos administradores".

II - Governança Corporativa no Contexto de Decisões Complexas

Inicialmente, é importante reconhecer que no mundo moderno a complexidade das empresas, a sua globalização e o novo contexto tecnológico, tornaram a gestão dos negócios cada vez mais dependente de sistemas corporativos que se integram para a tomada de decisões corporativas.

Das mais singelas às mais estratégicas, a gestão ordinária dos negócios e aquelas que são mais esporádicas, requerem múltiplas fontes de informações e de meios sofisticados para atingir soluções. Nesse contexto, o exercício da governança corporativa, seja a superior (e.g. conselhos de administração), seja a executiva e gerencial, é resultado de uma vasta rede de mecanismos que para cada decisão funcionam de forma específica.

A doutrina e a jurisprudência sobre os deveres dos administradores no contexto nesse ambiente corporativo complexo confrontam o comando jurídico standard de "que o administrador deve empregar os cuidados e diligências de um homem ativo e probo"1 às situações factuais complexas, com controles externos e internos, níveis de poder com variações significativas de forma e execução, diferentes stakeholders, estruturas de capital variadas, procedimentos e políticas variadas e assim por diante.

Num contexto como esse, quando da tomada de decisão individual por parte do administrador são realizadas ponderações entre os múltiplos fatores a influir naquela decisão. Outro administrador, diante da mesma situação, pode tomar um caminho diferente face às suas próprias ponderações.

III - Dificuldade de Individualizar a Responsabilidade em Estruturas Sistêmicas

Considerada a boa-fé que se presume a todos, não há padrão razoável para o ato de gestão e a correspondente diligência aplicável ao caso concreto. De outro lado, a gestão sistêmica das empresas, se bem-feita, é a base de uma espécie de pesos e contrapesos (checks and balances), usualmente representado pelos controles internos, que evita que o domínio do processo decisório pelos administradores seja pleno. Nesse contexto, estruturas decisórias complexas tornam a responsabilização individual de administradores extremamente difícil, senão impossível de serem feitas.

Em casos visivelmente dolosos, os fatos são identificados usualmente pela utilização de overriding de instâncias decisórias e controles que fraudam os sistemas e as estruturas decisórias para que ao fim e ao cabo o ato de gestão doloso possa ser realizado. Ironicamente, as situações dolosas são mais fáceis de serem investigadas, analisadas e sancionadas. O overriding é evidente, o dever de diligência cumprido, nem sempre.

O ponto central da análise da responsabilidade dos administradores quanto à sua diligência diz respeito a como atribuir responsabilidade individual em função do não preenchimento de deveres num contexto sistêmico. Fazer a leitura do comportamento dos administradores em circunstâncias do hipercapitalismo líquido é muito difícil. Avaliar o passado talvez seja impossível em certos casos, sobretudo porque há sobreposição de aspectos objetivos, como no caso dos sistemas de controles, procedimentos e políticas, frente a dados subjetivos, usualmente comportamentais da parte dos administradores.

O sancionamento de administradores por autoridades é, assim, uma tarefa em que se intenta aproximar ao máximo os fatos às circunstâncias decisórias e, por sua vez, às normas jurídicas aplicáveis. Nesse processo de subsunção é até possível reproduzir razoavelmente as estruturas hierárquicas e decisórias, mas é muito difícil atribuir um "nível de confiança" (de natureza probabilística) que cada administrador teria de atribuir ao sistema de decisão, aos relatórios e opiniões recebidos das instâncias internas e externas da empresa, às auditorias externas e internas, ao sistema de compliance e assim por diante. Somente em casos flagrantes de ausência de diligência, geralmente e francamente dolosos, é possível materializar e caracterizar a responsabilidade de administrador.

Do ponto de vista jurídico, mesmo as previsões legais e estatutárias são, de fato, apenas referências gerais, exemplificativas ou cogentes, de um comportamento a ser seguido. Especificamente no caso de "normas abertas" as previsões normativas ganham um contorno muito complexo vez que esta "abertura" 'é caracterizada pelo texto genérico, pela flexibilidade interpretativa, pela atualização constante via doutrina e jurisprudência e, especialmente, pelo peso significativo do intérprete e julgador na sua aplicação.

III - Dever de Diligência à Luz do Sistema de Gestão

A especificidade do "dever de diligência" é ainda mais complexa: tem uma forte conotação moral. Embora seja um conceito jurídico e corporativo, ele está intrinsecamente ligado a princípios éticos que norteiam o comportamento responsável, cuidadoso e prudente nas decisões e ações dos indivíduos, especialmente aqueles em posições de liderança ou gestão.

A literatura moderna informa que o dever de diligência implica que os gestores e administradores de uma empresa não devem apenas seguir a lei, mas também agir de maneira ética. Eles devem tomar decisões que beneficiem a empresa e os seus stakeholders, sempre levando em conta o bem-estar geral e não apenas o interesse próprio ou de curto prazo. Isso exige um senso moral de responsabilidade em relação às consequências de suas ações

Tomar decisões de forma informada, criteriosa e ponderada é não só um requisito legal, mas também um dever moral. Os acionistas e administradores devem buscar informações suficientes e considerar os impactos a longo prazo de suas escolhas, o que demonstra uma postura de respeito e comprometimento com a integridade da organização e das partes envolvidas.

A prudência é uma virtude clássica associada à moralidade, e o dever de diligência requer exatamente essa qualidade. Ser prudente nas ações e decisões empresariais reflete uma preocupação com a sustentabilidade, evitando riscos desnecessários ou comportamentos irresponsáveis. Esse comportamento reflete valores morais que vão além do mero cumprimento de deveres formais, os quais são aparentes - valores morais não são.

Embora o dever de diligência tenha suas raízes na responsabilidade legal e corporativa, a aplicação prática desse dever está fortemente vinculada a uma abordagem moral, pois envolve a tomada de decisões éticas, o cuidado com os outros e a atuação responsável, refletindo uma conduta moral que é esperada de quem ocupa uma posição de poder dentro da organização.

Quando se confronta o dever de diligência (norma aberta com forte conotação ética) e outras normas, como o estatuto de uma companhia a complexidade2 de avaliar, analisar e julgar o comportamento dos administradores ainda mais incerto. Não à toa que se somarmos um comportamento doloso aos fatos analisados à luz de normas aplicáveis ao caso concreto e do dever de diligência, especificamente, o julgamento sobre a devida diligência paradoxalmente se torna menos tortuoso, conforme argumentamos anteriormente. Isso ocorre porque ganha saliência o conteúdo moral do dever legal que se torna muito mais relevante que as normas estatutárias para fins de atribuição de responsabilidades.

Ocorre que para os casos culposos, mais comuns na vida prática das empresas, as ponderações do julgador sobre os fatos, contextos e informações têm de ser mais técnicas. Isso significa que:

"A técnica não se coloca o problema do bem ou do mal, mas apenas o do funcionamento. Ela não requer ética, porque seu único critério é a eficiência."3

No texto seminal de Galimberti quero destacar "funcionamento" e, daí, retorno à sistemática da tomada de decisões para fins dos atos de gestão.

O "funcionamento" implica em relações regradas de cada elemento (e.g. área corporativa) com um determinado conjunto (e.g. uma empresa). Se transformarmos essa proposição na forma de um axioma podemos evoluir para um conceito no qual a atuação de um administrador é parte de um sistema de gestão cuja repercussão no qual a ação individual é dependente de uma série de outros elementos sistêmicos, bem como os seus efeitos são igualmente extensivos. Nas palavras de Eizirik:

"A função do administrador de uma sociedade empresária deve ser entendida como parte integrante de um sistema maior, no qual suas decisões impactam não só o desempenho econômico, mas também os direitos dos acionistas, credores, empregados e outros stakeholders, sendo fundamental a consideração do todo na condução dos negócios."4

Está claro que, a partir dessa construção lógica, a função dos administradores não deve ser vista isoladamente, mas como parte de um conjunto maior de interações que afetam diversos grupos de interesse dentro da empresa. Aqui Craig N. Smith se ajusta perfeitamente:

"A responsabilidade moral das empresas não pode ser reduzida às ações individuais de seus membros, uma vez que elas operam como sistemas complexos de tomada de decisão."

(...)

"Quando uma falha ocorre dentro de uma empresa, a responsabilidade moral deve ser atribuída à organização como um todo, visto que as decisões são resultado de um processo coletivo e sistêmico."5

Nesse diapasão, a individualização da responsabilidade teria de ser examinada à luz de um sistema e deste "retirar" as atribuições individuais, os atos decorrentes dessas atribuições e ponderar sobre o grau de responsabilidade inerente a certo administrador inserido em um sistema de decisão e de informações. Para fins de responsabilidade culposa, no âmbito cível, trata-se de uma tarefa hercúlea, senão impossível.

Usualmente, conforme afirmado logo acima, a individualização de responsabilidades tem por fonte o Estatuto Social, no caso das sociedades por ações. Ocorre que a previsão estatutária trata do "elemento" e não do "sistema". Logo, aquelas atribuições são referências funcionais limitadas ao fim que se deseja atingir: a configuração geral de uma estrutura corporativa e isso não é a sua governança concreta. A título de ilustração um diretor de recursos humanos pode ser responsável pela área de treinamento, mas isso é insuficiente para minimamente garantir que esse treinamento possa ser aplicado na área na qual trabalha o funcionário pois, ele dependerá de outras situações (e funções) completamente diferenciadas das "atribuições" do diretor de recursos humanos. Como determinar a responsabilidade individual sobre um treinamento nesse caso? Muito difícil, senão impossível.

Carlos Portugal Gouvêa bem coloca, no uso de famoso texto de Peter French6, o tema das estruturas internas (com grifo meu):

"Mesmo no momento da constituição, a composição dos interesses dos acionistas-fundadores dá origem a objetivos da companhia que são distintos das suas intenções individuais. Além disso, o estatuto social e as políticas das companhias tendem a ser estáveis, de modo que as alterações radicais na política de uma companhia implicam a criação de uma nova companhia".7

No mesmo sentido, caminha Posner:

"Corporate charters provide a legal framework for governance, but they are inherently unable to reflect the company's market strategies, the behavior of executives, or the economic conditions that determine its performance."8

A conclusão é clara: embora o estatuto social seja um marco fundamental para definir a estrutura e funcionamento de uma companhia, ele não é capaz de refletir plenamente o status quo da empresa, ou seja, sua realidade operacional, financeira e cultural.

A dinâmica das empresas é influenciada por uma série de fatores que estão fora do escopo do estatuto social, como o mercado, a cultura organizacional e as decisões estratégicas. O estatuto, por si só, oferece uma visão limitada e estática da companhia, deixando de lado aspectos essenciais que determinam seu verdadeiro funcionamento e situação atual. E são estes os aspectos que determinam o dever de diligência que não necessariamente pode ser cogente a determinado administrador por força da previsão estatutária.

IV - Gestão de Riscos e Expectativas Racionais

Eventualmente, o dever de diligência pode ser associado com a necessidade de que o administrador se informe, se eduque, se prepare, investigue, etc. para que nessa esteira formativa e informativa possa exercer com maior plenitude o dever de diligência. Embora salutar e necessário esse comportamento, há de se reconhecer que a mera evidência de que o administrador buscou ciência e consciência sobre o cumprimento de suas responsabilidades não é razoável prova de diligência.

Teria de se verificar a fundo o quanto esse processo "educativo" contribuiu de fato para a sua formação e para se tornar informado sobre os temas de cada área. Vale dizer, ainda, que a expertise que se requer no contexto sistêmico de uma empresa complexa varia muito frente às diversas disciplinas (e ciências) aplicáveis às decisões de gestão e supervisão. Da mesma forma, a disponibilidade de conhecimentos não precisa ser individual, mas coletiva (em equipes, inclusive aquelas que não estão subornadas a certo administrador. Nesse sentido, é extremamente dificultoso se evidenciar o que significa concretamente, e.g., "se informar" diante das tarefas diárias de uma empresa.

Além do conteúdo moral e sistêmico, os atos, e também, as omissões de gestão poderiam ser avaliados do ponto de vista dos riscos os quais originam as red flags. É inegável que um sistema avaliação de riscos é extremamente necessário às empresas. Há, contudo, um paradoxo no acompanhamento dos riscos empresariais. Vejamos.

As empresas, desde quando surgiram, sempre foram acompanhadas pelos seus stakeholders (historicamente determinados) com base nos seus resultados. O surgimento da contabilidade, e.g., derivou da necessidade de apurar os resultados e a situação econômica das empresas em vista de suas mutações patrimoniais apuradas por meio das famosas "partidas dobradas" dos lançamentos contábeis, desenvolvidas por Luca Pacioli em 1494. A sofisticação dessa apuração de resultados e situação patrimonial acompanha o desenvolvimento capitalista do tempo das Companhias das Índias até a era da Inteligência Artificial e Big Data.

Já os sistemas de avaliação de riscos se multiplicaram, mas não se registra uma padronização de sua apuração por meio de informes equivalentes às demonstrações financeiras. Não há cânones sobre riscos: a relação "risco versus retorno" das empresas não é apurada na forma que possa servir para uma gestão sistêmica que tenha correspondência com a formação das cadeias de valor ou financeiras que são as que formam as demonstrações financeiras.

Em verdade, os riscos corporativos são estabelecidos in abstracto frente a uma realidade imaginada o presumida. Todavia, quando esses riscos se materializam (in concreto) são observados gaps muito relevantes em relação que estava analisado in abstrato.

Por mais penosa que seja uma experiência de materialização de risco é dela que se podem extrair experiências relevantes para a futura prevenção de (velhos e novos) riscos. Em outras palavras: a prevenção de riscos a partir de um certo tipo de mapeamento contém um grau muito variável de probabilidade. Há mais: os maiores riscos ocorrem em hipóteses (estatísticas) que em princípio são muito difíceis de ocorrer. Mas, ocorrem, vale relembrar.

O dever de diligência é obrigação de meio, como é cediço na literatura jurídica e nos precedentes dos tribunais. Atentar para as red flags de riscos é preventivamente necessário, mas a determinação do que é um red ou yellow flag é algo muito difícil de discernir em termos concretos. Desastres ambientais, colapsos financeiros, crises sanitárias e assim por diante podem atingir empresas sem que se tenha a percepção razoavelmente precisa de como essas tragédias podem ocorrer.

A gestão de riscos é uma tarefa de aproximação entre uma ação de prevenção frente a uma ocorrência presumida, que pode ser muito maior. A ação diligente (ou não) nesse contexto é muito difícil de ser detectada com razoável precisão.

No uso, breve e casuístico, da "Teoria das Expectativas Racionais", a prevenção de riscos baseada em um "risco imaginado" que se revela muito maior ou menor do que o previsto cria uma tensão entre o que foi racionalmente esperado e o que ocorre na realidade. Administradores, ao tomarem decisões, lidam com a incerteza de forma contínua. Julgadores se utilizam de uma visão ceteris paribus (mantendo as demais coisas constantes).

A avaliação do dever de diligência poderia, assim, estar sujeita ao questionamento sobre se os administradores tomaram as precauções e medidas necessárias com base nas informações e cenários improváveis e radicais. Neste caso, as precauções a serem tomadas implicariam que se trabalhasse sempre com a premissa de riscos superestimados, o que é uma hipótese muito improvável porquanto gerencialmente irracional.  Avaliar esse tema a posteriori é ainda mais complexo uma vez que não se pode reproduzir razoavelmente o que se "imaginava" e o que de fato ocorreu. Somente um erro grosseiro que possa ser percebido proporciona razoável aferição sobre o dever de diligência. Ademais, tudo isso tem de ser avaliado num contexto dinâmico e não de forma inerte.

No mundo corporativo, em empresas razoavelmente bem administradas, achar evidências de erros grosseiros é muito raro, pois as hipóteses e modelos sobre riscos usualmente utiliza "distribuições normais" de ocorrências e não em hipóteses "heroicas" e "colapsos inesperados". Logo, erros grosseiros são raros, observada a "normalidade" dos eventos.

É também relevante que um risco normalmente contém outros riscos "embutidos" ou "correlacionados" sobre os quais as prevenções são modeladas de formas variadas o que pode causar grandes inconsistências com uma situação real.

Como se poderia estabelecer um critério razoável para avaliar a devida diligência numa situação como essa? Aqui o critério deveria de o de se render a uma realidade difícil de ser reproduzida em nível razoável para, assim, julgar os agentes em relação a sua diligência.  

V - A Teoria da Complexidade e a Comunicação em Sistemas Corporativos

A complexidade sistêmica das empresas, além de tornar o processo decisório igualmente complexo e recheado de nuances, origina percepções divergentes de diversas partes (e.g. áreas de uma empresa) sobre um mesmo fato. Vejamos em maiores detalhes, no uso particular e específico da "Teoria da Complexidade" de Morin9.

Em um sistema complexo, os diferentes agentes (de uma empresa, e.g.) estão interligados e suas ações influenciam uns aos outros e, eventualmente a todos, de maneira imprevisível. Essas interações criam feedbacks contínuos que dificultam a transmissão clara e objetiva de informações. Como resultado, a comunicação pode se tornar fragmentada, já que cada parte percebe o sistema a partir de sua posição específica e de suas interações locais, o que pode gerar distorções e ruídos na troca de informações.

Nos sistemas complexos, as informações e os significados são contextuais e podem ser interpretados de maneiras diferentes, dependendo do ponto de vista do receptor (e.g., um administrador). A complexidade envolve a integração de elementos aparentemente contraditórios ou heterogêneos. Assim, a comunicação em um sistema complexo pode ser sujeita a múltiplas interpretações, levando a percepções diferentes entre as partes, especialmente se os agentes envolvidos não compartilham os mesmos referenciais ou experiências.

Emergência e imprevisibilidade: em sistemas complexos, novas características emergem da interação entre as partes, o que pode tornar a comunicação ainda mais complicada, pois o comportamento do sistema como um todo pode não ser previsível com base nas interações individuais (e.g. de administradores). Isso gera uma dificuldade adicional de transmitir informações de maneira completa, uma vez que mudanças inesperadas podem ocorrer, levando a uma divergência entre a percepção das partes sobre o estado atual ou futuro do sistema (e da empresa).

Redução e simplificação da informação: para lidar com a complexidade, os indivíduos (e.g. diversos administradores) tendem a simplificar a realidade e focar em partes específicas do sistema. Essa simplificação pode criar vieses (bias) ou visões limitadas, onde cada parte comunica apenas os aspectos que considera mais relevantes, muitas vezes ignorando outras dimensões importantes. Tal redução pode gerar assimetrias informacionais (de uma empresa, e.g.), onde certos grupos possuem mais ou menos informação relevante em relação aos outros, ou têm acesso a diferentes interpretações da mesma informação.

A assimetria informacional ocorre quando diferentes partes de um sistema (ou empresa) têm acesso desigual à informação, o que pode resultar em desequilíbrios de poder (e.g. de uma estrutura empresarial ou um organograma funcional) e distorções na tomada de decisão. Em sistemas complexos, as assimetrias informacionais são amplificadas pela natureza interconectada e não linear do sistema, que torna difícil para qualquer parte ter uma visão completa e precisa da totalidade do sistema.

Diversidade de informações: As partes de um sistema complexo geralmente operam com diferentes fontes de dados e perspectivas (e.g. para se evitar um acidente ambiental). A fragmentação da informação pode ocorrer porque as partes têm acesso a diferentes partes do sistema ou interpretam a mesma informação de maneiras distintas, o que cria uma assimetria informacional natural. Isso é típico, por exemplo, em grandes organizações, onde diferentes departamentos possuem visões e dados diferentes sobre o mesmo problema.

Barreiras de comunicação: as barreiras de comunicação podem surgir devido à especialização e divisão de conhecimento entre as partes. O uso de jargões técnicos, diferenças culturais ou organizacionais e até a localização física dos agentes podem dificultar a troca eficiente de informações, gerando um ambiente onde certas informações são retidas ou mal interpretadas.

Falta de transparência: a complexidade também pode levar a uma falta de transparência, seja de forma intencional ou não. À medida que as partes tentam gerenciar a complexidade, podem adotar comportamentos de ocultação de informações ou filtro excessivo, exacerbando a assimetria informacional. Isso é comum em ambientes de negócios, onde certas informações críticas podem ser retidas ou manipuladas, levando a decisões erradas por outros agentes.

A teoria da complexidade de Morin destaca que, em sistemas complexos, as partes envolvidas podem ter percepções diferentes da realidade, o que pode gerar conflitos e dificuldades na coordenação de ações. Essas percepções divergentes são resultado de experiências e contextos diferentes: cada parte de um sistema complexo opera dentro de seu próprio contexto e com base em suas próprias experiências, o que influencia como interpreta e reage às informações recebidas. Isso pode criar visões de mundo distintas, levando a diferentes interpretações dos mesmos dados ou eventos.

Visão fragmentada: nenhuma parte tem uma visão completa do todo. Cada agente tem uma visão parcial baseada em sua posição e nas interações limitadas com o sistema. Isso cria percepções divergentes, pois o que uma parte percebe como um risco ou oportunidade pode não ser visto da mesma maneira por outra.

Tendências cognitivas: as partes podem ser influenciadas por viéses cognitivos, o que afeta a forma como percebem e processam informações. Por exemplo, uma parte pode subestimar certos riscos devido à familiaridade com o sistema, enquanto outra pode superestimá-los devido à sua exposição limitada. Isso diverge sobremaneira sobre a "especialidade de um administrador" que se pode presumir na análise posterior de fatos e atos de gestão.

Como se pode verificar, em um contexto da comunicação entre partes em sistemas complexos, podemos ver que a interdependência, a imprevisibilidade e a fragmentação das informações levam a assimetrias informacionais e percepções divergentes. A comunicação eficaz, nesse sentido, exige uma abordagem que leve em consideração essas dinâmicas, promovendo maior transparência, troca de informações abrangente e a capacidade de compreender o sistema em sua totalidade, ao invés de focar apenas em partes isoladas.

No caso do dever de diligência, que exige que os administradores tomem decisões prudentes e informadas, a imprevisibilidade dos sistemas complexos significa que, mesmo que o administrador tenha agido de forma diligente com base nas informações disponíveis no momento da decisão, a verificação a posteriori do cumprimento do dever podem não refletir essa diligência. Como os efeitos de suas decisões podem ser amplificados ou distorcidos por interações desconhecidas, a verificação do cumprimento do dever geralmente não é precisa, especialmente o processo de tomada de decisão.

Ao avaliar o cumprimento do dever de diligência, é difícil isolar as ações de um administrador de outros fatores do sistema (estrutura da tomada de decisão) que possam ter influenciado o resultado da diligência de um certo administrador. Mesmo que uma decisão tenha sido tomada de forma prudente e cautelosa, as interações complexas no sistema podem alterar significativamente o processo, tornando incerta a avaliação da diligência a partir do desfecho observado. Mesmo decisões baseadas em um raciocínio lógico e fundamentado podem falhar devido à falta de visibilidade de todas as interações no sistema. O que pode parecer uma decisão prudente em uma situação pode ser interpretado de forma diferente por outro observador em um momento posterior, especialmente se os resultados não forem os esperados.

Finalmente, duas considerações adicionais sobre informações na prática da governança corporativa e na gestão de empresas. O primeiro é que os administradores podem tomar decisões com base nas condições e informações disponíveis, mas essas decisões podem gerar consequências imprevistas e emergentes que não estavam sob o controle ou a previsão do administrador. Isso torna difícil julgar a adequação das ações apenas pelos resultados emergentes, pois esses resultados podem ter sido influenciados por fatores alheios à própria diligência do administrador. O segundo é que um administrador pode parecer ter agido de forma imprudente à luz dos efeitos de longo prazo de uma decisão, mas no momento da tomada de decisão, ele pode ter considerado todas as variáveis relevantes conhecidas. Essa desconexão temporal torna difícil julgar se o dever de diligência foi cumprido, já que os impactos podem ser retardados ou distorcidos ao longo do tempo.

VI - Considerações Finais: O Futuro Incerto para os Administradores

A complexidade inerente à responsabilidade dos administradores, especialmente quanto ao cumprimento do dever de diligência, está refletida nos desafios do ambiente corporativo contemporâneo, onde sistemas interdependentes, múltiplos stakeholders e a evolução constante dos cenários regulatórios tornam cada decisão um exercício delicado de ponderação contínua.

A avaliação a posteriori de eventos é altamente complicada no sentido de avaliar o efetivo exercício do dever de diligência daqueles administradores que eventualmente tenham participado de fatos, sobretudo culposos, nesses eventos que originaram prejuízos de qualquer natureza jurídica para as companhias.

Concretamente, do ponto de vista jurídico, a individualização das condutas diligentes (ou não) guarda enorme subjetividade do julgador o qual pode factualmente não estabelecer parâmetros confiáveis de avaliação da devida diligência. A cadeira de quem avalia fatos passados no futuro é sempre muito confortável.

Fatos e atos de gestão complexos, especificados em libelos acusatórios, sempre serão selecionados para constituir provas contra os administradores. É verdadeiramente improvável que essa seleção possa ser razoável para atender ao objetivo do julgador, pois a complexidade sistêmica das companhias e as tarefas empreendidas por cada administrador são extremamente difíceis de serem ponderadas em termos de culpabilidade. Afora este aspecto, a demonstração do cumprimento de deveres de administradores, de fato, "provas negativas" em relação a uma acusação podem facilmente serem relegadas pelo julgador em face de seus próprios argumentos subjetivos. Cria-se, assim, um "círculo diabólico" termo designado para situações em que a parte é incumbida de apresentar uma prova que, na prática, é extremamente difícil ou impossível de ser produzida. Isso ocorre sobretudo em casos em que os aspectos técnicos prevalecem, como no processo sancionador retromencionado.

 A possibilidade de quebra da legalidade processual é evidente nesses casos10. O abuso de autoridade é uma possibilidade crítica nesse diapasão. Informava Calamandrei:

"O processo não deve ser uma armadilha em que se pega o litigante incauto; o juiz deve intervir para equilibrar as forças e não permitir que o formalismo processe a injustiça."11

O caso do rompimento da barragem em Brumadinho serve como um exemplo marcante da dificuldade de se atribuir responsabilidade em um contexto de governança que exige não apenas expertise técnica, mas também sensibilidade ética e visão holística.

O voto do diretor da CVM é um alerta para os administradores, mas também para os doutrinadores, julgadores e legisladores. A penalização elevada (R$ 27 milhões) não é apenas uma expressão do julgador, mas um sinal gritante para a necessidade de uma justiça equitativa no processo, mas também para vida empresarial brasileira. Já era preocupação de Von Gierke há mais de cem anos:

"A justiça não pode ser simplesmente uma questão de poder ou força. Deve ser acessível e justa para todos, independentemente de sua posição. O Estado, como defensor da justiça, tem o dever de equilibrar as desigualdades e assegurar que o processo jurídico não se torne um instrumento de opressão."12

Do ponto de vista fático, embora a responsabilidade individual de administradores seja um princípio fundamental no direito societário, a aplicação prática desse princípio encontra barreiras significativas, especialmente em situações de decisões empresariais sistêmicas e de risco.

A dificuldade em isolar a ação de um administrador dos elementos sistêmicos que influenciam o processo decisório desafia a doutrina e a jurisprudência a encontrarem soluções justas e proporcionais.

Como afirmamos logo acima, o fato mais sensível do caso de Brumadinho é que o alegado descumprimento do dever de diligência pode implicar em multa de grande montante. É preciso avaliar o caso em vista de outros que podem vir. A injustiça pode se propagar mais rápido que a justiça, importante ponderar.

Os sistemas sociais, incluindo o sistema jurídico, operam com base em uma distinção interna, que no caso do Direito é a distinção entre legal e ilegal. A justiça, segundo Luhmann13, é uma expectativa normativa dentro do sistema jurídico, mas não necessariamente garantida em todos os casos, pois o sistema jurídico pode, por sua complexidade e autonomia, criar barreiras para o acesso à justiça. Especialmente, quando tratamos da individualização de condutas, completo eu.

O verdadeiro desafio do julgador reside em harmonizar o rigor técnico com a necessária flexibilidade ética, assegurando que a análise do dever de diligência compreenda as complexidades próprias da realidade corporativa. Não se trata, evidentemente, de eximir aqueles em posições de liderança de suas responsabilidades pelos efeitos de suas decisões. Contudo, é igualmente imperioso que se evite a negação da justiça para com os administradores, quando múltiplas evidências de cumprimento do dever de diligência são descartadas em favor de um subjetivismo absoluto no julgamento.

_______
 
1 Artigo 153 da Lei 6.404/1976.

2 Aqui o termo "complexidade" tem o sentido de Edgar Morin: ""A complexidade é o tecido de eventos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem o nosso mundo fenomênico. Ela apresenta-se, portanto, como a união, ao mesmo tempo, de diversidade e unidade." MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. 4ª. ed. Pp. 13 Lisboa: Instituto Piaget, 2005.

3 GALIMBERTI, Umberto. Psiche e Techne: L'uomo nell'età della tecnica. Milão: Feltrinelli, 1999. p. 46.

4 EIZIRIK, Nelson. O novo direito societário: governança corporativa e mercado de capitais. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 89.

5 Smith, Craig N. The Moral Responsibility of Firms: Renewed Interest in a Perennial Question of Business Ethics. Journal of Business Ethics, vol. 148, no. 1, 2018, pp. 10 e 18.

6 FRENCH Peter A. The corporation as a Moral Person, American Philosofical Quartely, Campaign, n.3, v.16, pp.207-215, July 1979, pp.214

7 GOUVÊA, Carlos Portugal. A Estrutura da Governança Corporativa, pp. 408-409. São Paulo: Quartier Latin, 2022.

8 POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 8. ed. Pp. 215 New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2011.

9 MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. 4. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 2005.

MORIN, Edgar. O Método 1: A Natureza da Natureza. Porto Alegre: Sulina, 2005.

STIGLITZ, Joseph. Information and the Change in the Paradigm in Economics. The American Economic Review, 2002. (Embora não diretamente relacionado à teoria da complexidade, Stiglitz aborda como a assimetria informacional impacta a tomada de decisões, conceito aplicável a sistemas complexos e comunicação entre partes).

10 "O juiz tem o dever de adaptar as regras do ônus da prova em situações de extrema dificuldade, sob pena de violar o devido processo legal." DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2018.

11 CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

12 GIERKE, Otto von. Das deutsche Genossenschaftsrecht. Berlin: Weidmann, 1913.

13 LUHMANN, Niklas. A função do direito na sociedade. Trad. Klaus Vieweg. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985.