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Fraudes contábeis e autoria: a questão do "Domínio da Organização"

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Atualizado em 7 de agosto de 2024 13:46

"Our ability to manufacture fraud now exceeds our ability to detect it".

Al Pacino 

Considerado o mercado de capital e financeiro ao redor do mundo e a importância relativa que ganhou frente a denominada "economia real" a prática de fraudes contábeis é nefasta aos negócios. Afinal, são as informações que delimitam as variações de preços e refletem a criação de valor intrínseco das empresas. Afora isso, as fraudes afetam a integridade do mercado em termos macro e microeconômicos.

No sentido jurídico do tema, há de se considerar que a complexidade da estrutura organizacional das empresas, especialmente das grandes corporações, dificulta a individualização de condutas criminais, tornando desafiadora a atribuição de responsabilidade a agentes específicos. A natureza difusa de muitos crimes empresariais, com a participação de diversos indivíduos em diferentes níveis hierárquicos, obscurece a identificação de um autor principal - em verdade, as fraudes contábeis requerem muitas operações e a participação de muitos indivíduos a depender do que tenha ocorrido. Sempre importante salientar que "erros ou inconsistências" contábeis não se constituem em crimes: são, no máximo, ilícitos administrativos, tributários ou cíveis, passíveis da jurisdição de instituições como a U.S. Securities and Exchange Commission (SEC) e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

 De outro lado, a teoria do Entity Control Level, que se relaciona com os temas das teorias sobre governança corporativa, enfatiza a responsabilidade dos administradores, especialmente conselheiros de administração, membros do conselho fiscal, do comitê de auditoria, do comité financeiro e, até mesmo, de acionistas controladores, nas práticas criminosas ou nos ilícitos cíveis, dada sua posição de controle e influência sobre as decisões da empresa. Esses agentes, em virtude de suas funções, possuem um dever especial de vigilância e controle sobre as atividades da empresa (e.g. deveres constantes dos Art. 153 e ss. da Lei das Sociedades Anônimas), sendo responsáveis por garantir a integridade e a confiabilidade dos processos, controles e políticas das informações contábeis. Além disso, há de ser considerado que a documentação contábil manipulada pode ser elaborada de forma a ocultar a identidade dos responsáveis, exigindo investigações minuciosas e periciais para desvendar a trama criminosa, tarefa essa que não é nada simples. Não à toa, diante da complexidade e dos impactos negativos dessas condutas, a responsabilização das pessoas jurídicas tem se intensificado, especialmente sob a óptica da teoria do domínio da organização. As investigações da Jurisdição estatal, bem como as investigações internas têm se tornado bastante sofisticadas.

Vale dizer que a simplificação dos métodos e dos meios de identificação de condutas, implica em erros grosseiros para fins de acusação criminal e/ou civil em vista da complexidade dos processos e controles internos de uma empresa que pode induzir a conclusões que sejam aparentes, mas completamente falsas e improcedentes. Por exemplo, uma investigação sobre fraude contábil que não alcança a quantificação dessa fraude é inócua porquanto insuficiente para a caracterização material dos ilícitos. Não se pode especular a respeito a partir de inferências realizadas a partir de certos achados, tais quais documentos e mensagens trocadas entre os possíveis fraudadores.

A teoria do domínio da organização, consagrada em diversos ordenamentos jurídicos, atribui à pessoa jurídica responsabilidade penal pelos crimes praticados em seu nome ou interesse, mesmo que não seja possível identificar um autor individualizado. A justificativa reside na compreensão de que a organização, como um ente coletivo, possui uma estrutura e uma cultura que podem facilitar a prática de atos ilícitos. Assim, a responsabilidade penal se estende à pessoa jurídica, que se beneficia direta ou indiretamente dos crimes cometidos. Uma cultura empresarial focada em benefícios que sejam fruto de alto desempenho tende a ser a mais propensa aos ilícitos e à ultrapassagem dos controles e processos (override).

A responsabilização dos administradores e auditores independentes é indissociável da responsabilização da pessoa jurídica. Esses agentes possuem deveres específicos de diligência e cuidado, sendo responsáveis por garantir a a confiabilidade das informações contábeis e da elaboração das demonstrações financeiras colocadas junto ao público. A legislação de diversos países prevê a responsabilização civil e criminal dos administradores e auditores independentes que, por dolo ou culpa, contribuíram para a ocorrência de fraudes.

As implicações das fraudes contábeis para os investidores e demais stakeholders são devastadoras. Os investidores podem sofrer perdas significativas com a queda do valor das ações, a falência da empresa ou a perda de confiança no mercado. Os credores podem ter dificuldades para recuperar seus créditos, e os funcionários podem perder seus empregos. Além disso, as fraudes contábeis podem gerar um efeito em cascata, afetando outros agentes econômicos e a economia como um todo.

A comparação entre os sistemas jurídicos de diferentes países revela divergências quanto à responsabilização das pessoas jurídicas por crimes. Apenas a título de ilustração, nos Estados Unidos, o Federal Sentencing Guidelines estabelece diretrizes para a aplicação de penas a empresas condenadas por crimes federais, com foco na responsabilização individual dos administradores. No Brasil, a Lei nº 9.613/1998, que dispõe sobre os crimes de lavagem de dinheiro e ocultação de bens, direitos e valores, também prevê a responsabilização penal das pessoas jurídicas, mas com um enfoque mais genérico. Todas as legislações vislumbram a culpabilidade na órbita do ambiente complexo de uma empresa.

Na Europa, a "Diretiva 2001/95/CE", que estabelece um quadro geral para combater a lavagem de dinheiro, incentiva os Estados-membros a adotarem medidas para responsabilizar as pessoas jurídicas por crimes de lavagem de dinheiro. A França, por exemplo, possui uma legislação específica sobre a responsabilização penal das pessoas jurídicas, que se aplica a diversos tipos de crimes, incluindo as fraudes contábeis. Nesse diapasão, a Europa não privilegia a individualização da conduta em casos de crimes empresariais.  Nesse sentido, o Entity Control no que diz respeito a materialização concreta das atividades dos executivos na governança corporativa é muito mais relevante.  

O impacto das fraudes contábeis na reputação das empresas é inegável. A perda de confiança dos investidores, dos clientes e dos demais stakeholders pode levar ao declínio das vendas, à dificuldade em obter financiamento e à perda de talentos. Além disso, as empresas que se envolvem em fraudes contábeis podem ser alvo de investigações por parte dos órgãos reguladores e sofrer sanções administrativas e judiciais.

Em conclusão, a responsabilização penal das pessoas jurídicas por fraudes contábeis é um tema de grande relevância para o direito empresarial e para a sociedade como um todo. A "teoria do domínio da organização", ao atribuir responsabilidade penal à pessoa jurídica, busca coibir a prática de atos ilícitos, restaurar a confiança no mercado e incentivar a adoção de práticas de governança corporativa mais eficazes. No entanto, a aplicação dessa teoria enfrenta diversos desafios, que exigem um aprimoramento constante do marco legal e das práticas de governança corporativa. A prevenção das fraudes contábeis é um desafio complexo, que exige a adoção de medidas por parte de todos os stakeholders envolvidos, desde os gestores até os colaboradores, passando pelos órgãos reguladores e pelo sistema judiciário. As explicações e narrativas sobre fraudes contábeis de modo simplório têm duas características: são simples de entender e são muito erradas e igualmente fraudulentas.