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Entre a lucidez e a cegueira: o horizonte

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Atualizado às 07:41

O singelo e marcante sinal do ano de 2023 é a da democracia oscilante. Os atos atentatórios à estabilidade democrática ocorridos em 8 de janeiro deste ano propiciaram aos poderes do Estado condições para que o ambiente de normalidade constitucional fosse mantido. A reação organizada e liderada pelo STF foi contemporânea e necessária ao tempo da disparada de pedras contra os palácios dos poderes centrais da República. Todavia, temos de reconhecer igualmente que o feito imediato é insuficiente no correr do tempo mais longínquo.

A democracia brasileira ganhou contornos incertos nos últimos anos, bem como vacila em face de dois sinais gritantes, dentre outros que poderíamos citar: (i) o declínio do apelo cidadão em relação aos valores políticos e éticos, sobretudo a liberdade e a democracia, em troca do individualismo excessivo e consoante com a satisfação imediata e líquida (no conceito de Bauman) dos anseios de consumo e (ii) a imensa e crescente desigualdade econômica e de oportunidades. Neste contexto, a suspeita sobre a democracia e o establishment tem sido permanente. Um fenômeno ocidental.

No contexto acima, é impossível que se possa imaginar que sem mudanças estruturais haja real estabilidade democrática e institucional. Para tanto, a superestrutura política teria de contribuir decisiva e fortemente para forjar um caminho de longo prazo em prol do desenvolvimento econômico com a redução gradual, mas sensível da desigualdade social. Aqui não estamos a tratar de uma aspiração idealista e pouco pragmática. Trata-se em verdade da única alternativa concreta e possível para mudar o curso antidemocrático que se formou na última década no Brasil. Nesse sentido, o 8 de janeiro está vivíssimo.

Está claro que a possibilidade de que ocorram as transformações necessárias a refortalecer a democracia e os valores difusos é mínima. A fragmentação política e ausência de direcionadores estruturais e estratégicos do governo inviabilizam estas transformações. É verdade que há reformas importantes e encaminhadas, tal qual a tributária - louvor a Haddad, no caso. Destas reformas devem vir algum crescimento adicional em vista de melhores expectativas de confiança para consumir e investir. O PIB em 2024 pode crescer, quem sabe, até 3%, um número relativamente otimista. A inflação poderá ser domada nos limites da meta do Banco Central. Até mesmo a capengante situação fiscal poderá dar sinais vitais mais positivos. Aqui não faço previsões, apenas registro o que se vê na mídia e na visão dos especialistas. Todavia, este "ponto na curva" não é e não tem condições de ser tendencial. O mercado financeiro e de capital deve até melhorar e rechear os bolsos dos investidores.

Infelizmente, a legitimidade da política (e da classe política) permanece dependente da superação do amplo ceticismo social perante a democracia. Mais que desesperança de que o Brasil seja um país mais igualitário, o ambiente em relação à política tornou-se niilista: infelizmente estagnamos no lamaçal do subdesenvolvimento, na ausência de saúde verdadeiramente universal e de serviços públicos capazes de espalhar igualdade. Basta ver o sofrível quadro da educação. A título de ilustração: o resultado do PISA - Programa Internacional de Avaliação de Estudantes mostra que o Brasil supera tão somente 9 (Argentina, Jamaica, Albânia, Indonésia, Palestina, Marrocos, Uzbequistão, Jordânia, Panamá) dentre 81 países da amostra. Sejamos sinceros: não vamos a lugar algum dessa forma.

É a sensação de que os membros da elite fazem o que querem a despeito dos limites entre o público e o privado que acentua a descrença na política e no establishment. Considerado o fato de que a mobilidade social é uma quimera para a maioria da população, a política tornou-se no imaginário popular uma atividade de privados a gatunar o interesse público. A complicação é que a saída do eleitor, diante dessa visão, não é nem mudar o voto e nem fiscalizar melhor o eleito: nasce daí a ideia de que virá um libertador a desmanchar todas as estruturas e forjar redentoramente as soluções. O populismo extremado não é mais uma corruptela da democracia. Assume, de fato, a feição da própria democracia para larga porção da sociedade.

Observar a evolução da administração de Javier Milei, nesse sentido, será muito interessante. O exame mais detido dos votos do exótico presidente argentino mostra que sua base é mais transversal que a imaginada: desde os mais pobres até os mais ricos votaram em Milei. Se quebrará as pernas do sistema, conforme promete, é algo a ser verificado. Todavia, as condições de apoio popular estão dadas. A sua plataforma política foi clara e libertária e o povo aderiu. Resta agora a confirmação de que a apoiará.

Por aqui, a tropicalização do populismo e libertarismo pode ser até mais sutil e menos arroubada. Contudo, o cenário e o solo são férteis para aventuras políticas mais à frente. Há mais: no mundo das fake news e do admirável mundo novo da tecnologia, percebe-se cada vez mais difícil que se possa estruturar planos lógicos para reformar a economia e as políticas sociais. O foco do eleitor é o curto prazo: prometer uma bolsa-família é mais relevante que construir um plano educacional que revolucione o ensino básico. Assim, a sociedade perdeu a proporção dos problemas nos quais estamos metidos o que abre espaço para soluções políticas "fáceis" e quase sempre erradas. Basta ver os confusos e contraditórios resultados das políticas ambientais, fruto da inconsistência das proposições.

A latência do populismo e a demanda por soluções rápidas é o caminho para o autoritarismo. Isso porque o controle social num ambiente como esse torna-se desafiador. Talvez vejamos isso rapidamente na Argentina. A lei e a ordem não são mais vislumbradas como barreiras civilizatórias e de valores para que as mudanças ocorram dentro de parâmetros institucionais pré-definidos. Não precisamos ler Husserl, Scheler ou Gadamer para entender o que isso pode significar. Em verdade estamos em tempos de influencers. Inclusive na política. O denominado imperativo em torno da ideia do bem e do mal, inclusive de ordem pública e geral, mostra-se fluida, não para afirmar os valores (inclusive democráticos), mas, contrario sensu, para escolher a ausência de valores. O libertarismo de Milei assim se organizou para desorganizar, não é mesmo? No caso do Brasil, talvez seja a indiferença a marca mais visível da pouca importância dos valores sociais e políticos.

A lupa em relação à economia (e talvez ao comportamento dos políticos) mostra que 2024 pode ser um ano realmente melhor, mesmo diante de riscos por todos os lados. Entretanto, se o olhar penetrar o binóculo e observar o longo prazo, a dinâmica das estruturas nos levam ao precipício da política.

Do ponto de vista racional, não há, por ora, o que evite o pessimismo em relação ao futuro. Isso deveria nos pôr em ação para construirmos um país melhor. O resto é figura de linguagem. Que venha 2024!