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Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de fragmentação

segunda-feira, 26 de junho de 2023

Atualizado às 08:18

A legitimidade formal do presidente eleito nas eleições de 2022 é inegável. Com apenas 1,8% dos votos válidos, Lula da Silva obteve a vitória. A legalidade desse pleito com resultado apertado é crucial, pois demonstra a força do Estado de Direito por meio do voto popular soberano. No entanto, a legitimidade política vai além da formalidade. Como ensinou Max Weber, ela envolve a capacidade de obter obediência a um determinado mandato. Considerados esses dois aspectos da legitimidade, podemos tirar lições dos quase seis primeiros meses do atual governo.

As medidas adotadas pelo Judiciário, executivo e legislativo, por meio da CPI, em relação aos eventos de 8/1 e ao histórico golpista do ex-presidente que nos governou, são necessárias. Elas deveriam reforçar a ideia de que o Estado de Direito é parte integrante da vida social, econômica e política do país. O respeito à essência do verdadeiro espírito democrático e aos processos correspondentes não pode ser negligenciado sob nenhuma lógica que distorça essa compreensão. O populismo, com suas narrativas abundantes, trouxe para a cena política a ideia de que a superação dos problemas de um país pode ser alcançada à sombra do autoritarismo e da exceção à ordem legal. Nesse sentido, acredito que Lula da Silva e seu governo representam a dignidade de nossa democracia, embora essa afirmação precise continuamente ser comprovada por meio de ações, políticas, palavras e iniciativas. No fundo, os eleitos são meros locatários temporários da dignidade democrática.

Embora o governo esteja caminhando bem em termos de legitimidade formal, é no processo de legitimidade política que surgem os maiores problemas da administração de Lula. Vejamos.

Inicialmente, é evidente que o presidente conquistou seu mandato nas urnas, mas também é claro que o centro político que o apoiou perdeu na disputa do Congresso Nacional. A base política efetiva do governo é muito pequena, talvez menos de 20% do total de deputados e senadores. De maneira pragmática, o presidente formou um ministério com ampla representação partidária, na esperança de que essa forma peculiar de representação no Executivo se refletisse no Congresso. No entanto, isso não ocorre por várias razões. A principal delas está relacionada ao fato de que os "representantes" sentados nos ministérios não têm controle razoável de suas próprias bases no Congresso. A fragmentação excessiva das bancadas de deputados e senadores não direciona mais as votações apenas com base em interesses políticos e, até mesmo, pessoais dos atores do Congresso. Na verdade, a fragmentação política ocorre em um contexto de agendas microscópicas. Além dos temas claramente políticos, as questões ideológicas exercem uma influência dramática na formação de maiorias contrárias ao governo. Não é incomum que temas de uma bancada, como a evangélica, se misturem com votações sobre questões fiscais. Mesmo em assuntos legislativos que teriam conexões lógicas, como o uso de armas pelos cidadãos e a segurança pública, os debates acabam assumindo dimensões e caminhos não necessariamente convergentes.

A perda de controle político do governo, nesse contexto, não é apenas resultado de sua organização mais ou menos eficiente, mas está diretamente relacionada à capacidade dos congressistas de se organizar em torno de temas para fazer prevalecer seus interesses fragmentados. Além disso, os ministros não podem garantir ao governo o cumprimento do que foi prometido durante as negociações para ocuparem seus cargos no Executivo. Existe uma grande distância entre a aparência na foto de posse e o poder real.

Seguindo a lógica política atual, percebe-se que os partidos políticos já não dependem tanto de verbas como no passado para desempenharem seus papéis como franquias de determinadas lideranças. Além dos generosos fundos partidários construídos com recursos públicos, os políticos conseguiram associar a dinâmica formal das votações à obtenção de favores governamentais para atenderem às suas demandas. Embora o Fundo Partidário garanta o "dia a dia" da vida política, as emendas surgem como uma "sobremesa refrescante" para aqueles que precisam manter suas bases sociais com benefícios visíveis (embora não necessariamente úteis à sociedade).

No entanto, as questões não param por aí. O loteamento de cargos não se restringe apenas aos ministérios, mas se estende a todas as estruturas e órgãos do Estado. Ainda não existem cálculos precisos sobre isso, mas os apadrinhados da classe política participam das decisões mais importantes do Estado brasileiro, mesmo sem que se tenha certeza da capacidade desses indicados em relação aos assuntos que deliberam. No Brasil, o "poder político" se confunde totalmente com o "poder tecnocrático". A desmontagem da Lei das Estatais, com a participação do Judiciário, e a falta de atenção aos conflitos de interesses dos nomeados para cargos públicos são exemplos do alcance e magnitude da influência da classe política sobre o Estado. Vale ressaltar que o loteamento de cargos pelos políticos pode resultar até mesmo em "bancadas" conflitantes dentro de órgãos e empresas estatais. Isso está longe de ser algo republicano.

Como podemos ver, a democracia no Brasil possui algumas virtudes formais e fortalezas políticas capazes de impedir, por exemplo, uma tentativa de golpe de Estado. No entanto, do ponto de vista da República, o Brasil está capengando. A situação se agrava ainda mais se o governo falhar por conta própria.

Os primeiros seis meses de governo demonstraram que a administração federal carece de direcionadores estratégicos capazes de orientar as decisões individuais tomadas pelo Executivo e suas iniciativas em conjunto. Por exemplo, quando se trata de meio ambiente, é difícil conciliar ações que favorecem a produção de carros, a exploração da Margem Equatorial e os compromissos ambientais que colocam o Brasil no centro da política internacional. Além disso, na política externa, sinais contraditórios em relação a ditadores como Putin e Maduro contrasta com a defesa interna da democracia. Nesse sentido, a boa notícia no momento é a visita de Lula a Paris, bem-sucedida em termos de agenda e articulação de ideias o que coloca corretamente o Brasil na arena internacional.

A ausência de direcionadores estratégicos amplia a fragmentação no Congresso e aumenta as pautas de entendimento (ou falta dele), ao mesmo tempo em que alimenta a nociva barganha entre as bancadas. É um processo impossível de discernir onde começa e onde termina o interesse verdadeiramente público.

Além disso, a democracia requer a perspectiva de sucessão para funcionar, enquanto a ditadura é baseada na ideia de perpetuação do líder supremo. Atualmente, no cenário brasileiro, não se sabe se Lula será seu próprio sucessor, e existe uma alta probabilidade de o ex-capitão que nos governou se tornar inelegível. Com isso, as iniciativas de longo prazo do governo são limitadas pela falta de visibilidade em relação ao exercício futuro do poder. As eleições municipais, marcadas por questões específicas e regionais, podem se tornar um termômetro mais preciso do futuro da política brasileira em 2024.

Em resumo, as variáveis políticas no Brasil se tornaram disfuncionais e demonstram, para aqueles que desejam uma avaliação menos marcada pelos fatos diários, que não há condições razoáveis e estruturais para um verdadeiro desenvolvimento com propósitos republicanos. Precisamos parar de torcer e começar a trabalhar em prol da democracia. Evitamos o precipício em relação à legitimação formal dos poderes, mas ainda estamos perigosamente enfraquecendo-a.